1.INTRODUÇÃO E HISTÓRICO
Desde a promulgação da emenda 66/2010 tem-se debatido no âmbito jurídico nacional sobre a extinção/derrogação do instituto da separação judicial. A própria redação um tanto obscura da emenda é fonte de dúvidas acerca da permanência na separação judicial, conforme salienta a professora da FGV Regina Beatriz Tavares da Silva (2010, p.01), para quem:
Da forma como foi proposta, sem contemplar algumas modalidades de separação que consideramos importantes, a emenda cria insegurança jurídica. Bastaria ter acrescentado essas situações no texto, e acabaria com problemas de interpretação.
Assim, o art. 226 da CF, emendado, passou a ter a seguinte redação: “O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio” (grifo meu). Destarte, não foi revogado expressamente o art. 1571, III, do Código Civil, que diz ser a separação judicial uma das causas de término da sociedade conjugal. Teria realmente o instituto deixado de existir e logo o consequente esvaziamento material (revogação tácita) do referido artigo? Pretende-se, dessa forma, discorrer brevemente sobre a questão ora posta.
1.2 Breve Histórico do Divórcio no Brasil
Em tempos antigos era o casamento considerado socialmente uma instituição divina, tendo surgido, inclusive, o brocado “o que Deus uniu, o homem não separe”. É evidente que tal assertiva popular prosperava pela força que a Igreja Católica ostentava perante a comunidade e, reflexamente, nos meios legislativos e judiciários.
No entanto, a evolução social e consequentes transformações dela advindas fez surgir uma pressão pela positivação da já difundida prática da separação de fato. Assim, em 1977 foi publicada a Lei 6515 que oficializou a possibilidade legal da separação/divórcio. A lei (com posteriores modificações sofridas em 1982) exigia prazo (inicialmente 05 anos de separação de fato e mais tarde o prazo foi reduzido para um ano) e/ou condições para que se efetuasse a separação judicial:
Art 4º - Dar-se-á a separação judicial por mútuo consentimento dos cônjuges, se forem casados há mais de 2 (dois) anos, manifestado perante o juiz e devidamente homologado.
Art 5º - A separação judicial pode ser pedida por um só dos cônjuges quando imputar ao outro conduta desonrosa ou qualquer ato que importe em grave violação dos deveres do casamento e tornem insuportável a vida em comum.
§ 1º - A separação judicial pode, também, ser pedida se um dos cônjuges provar a ruptura da vida em comum há mais de 5 (cinco) anos consecutivos, e a impossibilidade de sua reconstituição.
§ 1° A separação judicial pode, também, ser pedida se um dos cônjuges provar a ruptura da vida em comum há mais de um ano consecutivo, e a impossibilidade de sua reconstituição. (Redação dada pela Lei nº 8.408, de 1992)
Como se pode ver, foi-se, aos poucos, tornando-se mais exíguos os prazos necessários para que se efetivasse a separação ou o divórcio, até a consolidação do prazo de um ano de um ano entre a separação judicial e o divórcio ou a separação de fato por dois anos e o posterior pedido de divórcio.
BORGES FILHO (2011) resume a evolução histórica do divórcio em três períodos: a) pré-divórcio (inexistência de divórcio), desde a publicação do código civil de 1916 (admitindo-se apenas o desquite, que não extinguia o vínculo jurídico), b) o surgimento do divórcio, no ano de 1977, com a Lei 6515, a qual exigia prévia separação judicial ou de fato como requisito e c) o divórcio direto, após a Constituição de 1988, que extinguiu a exigência da separação judicial como requisito para a concessão do divórcio.
Aqui é salutar fazer breve distinção entre a separação judicial e o divórcio. Mariana Pretel e Pretel resume bem ao afirmar que:
Enquanto a separação judicial promove a dissolução da sociedade conjugal, o divórcio se caracteriza como uma forma de dissolução do casamento válido e que permite aos cônjuges contrair novas núpcias.
A diferença substancial entre a separação judicial e o divórcio seria que os divorciados poderiam se casar novamente e os separados, não. (p.01).
Assim, pelo sistema dualista adotado pelo ordenamento pré-emenda 66 (ou ainda em vigor, conforme entendimento de parcela doutrinária), havia as causas terminativas (separação judicial e nulidade do casamento) e as dissolutivas (morte e divórcio). CABRAL (p.121) explica que “entendem os doutrinadores que a separação judicial tem por consequência terminar apenas a sociedade conjugal, pondo fim aos deveres recíprocos entre os cônjuges, e ao regime de bens”. Em sentido diverso, continua a referida autora, “as causas dissolutivas rompem o vínculo, dissociando os cônjuges do laço jurídico que os ligava. Somente mediante novo processo de habilitação os ex-conjuges poderão contrair novas núpcias” (ibidem).
2. MANUTENÇÃO DO INSTITUTO DA SEPARAÇÃO JUDICIAL: ARGUMENTOS PRÓ-CORRENTE ECLÉTICA
Segundo a doutrina mais moderna e, especialmente, os ensinamentos de Elpidio Donizetti, após a emenda 66/2010 surgiram três movimentos: a) o abolicionista¹, que defende a total extinção da separação judicial, ficando a discussão de culpa, pertinente quando da delimitação de alimentos naturais ou civis/côngruos relegada ao divórcio ou a uma possível ação de responsabilidade civil; b) a corrente diametralmente oposta, chamada de “exegética-racionalista”, que afirma não ter a emenda alterado em nada a redação das normais infraconstitucionais processuais ou materiais sobre o tema e, por fim, c) a corrente eclética, que defende apenas a impossibilidade do legislador de estabelecer prazos para o pedido de divórcio, restando a separação judicial mantida intacta e a discussão da culpa, ou mantida da própria ação de separação, ou no divórcio, ação de responsabilidade ou mesmo extinta a noção de culpa.
Reforça a tese na manutenção da separação judicial no ordenamento jurídico brasileiro o Enunciado da V Jornada de Direito Civil: “A EC 66/2010 não extinguiu a separação judicial e extrajudicial”. Ademais, partindo do pressuposto da mínima intervenção do Estado na família em sintonia com uma hermenêutica teleológica-gramatical da referida emenda, é possível se chegar a conclusão de que ao dizer que o casamento “pode” ser dissolvido pelo divórcio, o legislador pretendia não elidir as opções extintivas da sociedade conjugal, mas apenas facilitar os meios, oferecendo a possibilidade de se chegar ao divórcio sem, obrigatoriamente, passar pela separação judicial.
Desse modo, a separação judicial, grosso modo, um lapso de tempo que permitiria ao casal, talvez, uma reconciliação, mantendo assim o vínculo conjugal. Nesse sentido, é vasta a jurisprudência adepta da corrente eclética:
TJSC. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE CONVERSÃO DE SEPARAÇÃO JUDICIAL EM DIVÓRCIO. ALEGADO DESCUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES ASSUMIDAS NO MOMENTO DA SEPARAÇÃO. IRRELEVÂNCIA. ARTIGO 36, II, DA LEI N. 6.515/1977 NÃO RECEPCIONADO PELA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL. TRANSCURSO DE MAIS DE OITO ANOS DA DATA DO TRÂNSITO EM JULGADO DA SEPARAÇÃO JUDICIAL. ADVENTO DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 66/2010. NORMA DE EFICÁCIA IMEDIATA. SUPRESSÃO DO REQUISITO TEMPORAL. RECURSO DESPROVIDO.
I – A alegação de descumprimento de obrigações assumidas no momento da separação – prevista no inciso II do artigo 36 da Lei n. 6.515/1977 – não obsta a conversão de separação judicial em divórcio, porquanto a Constituição Federal, em seu artigo 226, § 6º – com redação alterada pela EC n. 66/2010 –, não prevê nenhuma condição para a dissolubilidade do casamento civil pelo divórcio.
Vale destacar que a norma constitucional de eficácia plena não pode ser limitada por lei, somando-se ao fato de que a sua edição operou-se sob a égide da Carta de 1967, cujas regras não foram recepcionadas na Constituição de 1988 ou no Código Civil de 2002.
II – Conforme entendimento doutrinário dominante, merece destaque o fato de que, com o advento da Emenda Constitucional n. 66/2010, deixou de ser requisito objetivo a prévia separação judicial por mais de 1 (um) ano ou a comprovada separação de fato por mais de 2 (dois) anos.
Contudo, encontrando-se as partes separadas, deve-se garantir-lhes o procedimento conversivo, até mesmo para que permaneçam válidas e exigíveis as obrigações assumidas naquele momento.
Ademais, a Emenda Constitucional 66/2010 não extirpou do direito positivado o instituto jurídico da separação (judicial ou consensual), mas apenas possibilitou aos interessados a dissolução direta do matrimônio por meio do divórcio, dispensados da observância do cumprimento de requisitos legais objetivos até então exigidos (artigos 1.574 e 1.580, ambos do Código Civil) (grifo meu).
Quanto à questão secundária da discussão de culpa no fim da sociedade conjugal, a jurisprudência dos tribunais tende a filiar-se à noção da extirpação da culpa, pelas mais variadas razões (quer pela inconstitucionalidade desta, quer pela tese de que o dever de prestação dos alimentos é corolário do dever de solidariedade, e não da culpa em si), senão vejamos:
TJ-MG - Agravo de Instrumento Cv AI 10707110253705001 MG (TJ-MG) Data de publicação: 23/05/2014
Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO - FIXAÇÃO DE ALIMENTOS - PENSÃO ALIMENTÍCIA PROVISÓRIA - EX-CÔNJUGE - DEVER DE ASSISTÊNCIA MÚTUA - PROVAS DE NECESSIDADE - ALEGAÇÃO DE CULPA NA SEPARAÇÃO - IRRELEVÂNCIA - MANUTENÇÃO DA DECISÃO AGRAVADA - RECURSO NÃO PROVIDO. - O dever de prover o sustento da ex-cônjuge, que se estende após o rompimento da relação, baseia-se no dever de assistência mútua. - A fixação da prestação alimentícia em favor da cônjuge/companheira demanda provas da necessidade, sendo seu deferimento a conseqüência natural da presença destas. - Após a entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 66 /2010, mostra-se inócua a discussão acerca da culpa na separação do casal. - Recurso não provido.
TJ-RJ - APELACAO APL 00119709320098190028 RJ 0011970-93.2009.8.19.0028 (TJ-RJ): Data de publicação: 25/03/2014
E M E N T A: Separação Litigiosa. Indenização. Dano moral. Alegação de adultério. Lide ajuizada pelo cônjuge virago. Pedido julgado procedente em parte. I - Necessidade de adequação do Direito aos novos conceitos de família instalados na sociedade, que não podem ser alijados do amparo jurídico em função da interpretação literal de dispositivos legais ainda não adaptados aos novos paradigmas sociais. A discussão acerca da culpa na separação judicial ou no divórcio viola os direitos e garantias fundamentais, em especial à dignidade da pessoa humana (grifo meu). Eventuais sanções da dita separação com culpa, hoje não encontram suporte fático constitucional. II - Após a Emenda Constitucional n. 66 /2010, a dissolução da sociedade conjugal prescinde de requisito maior, bastando a tal fim a condição de casado e a vontade da ruptura do vínculo conjugal. Precedentes deste Egrégio Tribunal conforme transcritos na fundamentação. III - Separação de um casal implica frustração, decepção e mágoa entre as Partes, até porque são inerentes à própria dissolução do casamento. IV - Ausência de comprovação da conduta adulterina imputada ao Cônjuge Varão pela Autora, desautorizando a verba moral postulada. Autora que não desincumbiu de demonstrar os fatos constitutivos do direito perseguido. Exegese do inciso I do artigo 333 da Lei de Ritos Civil. V - R. Sentença ultimando pela procedência dos pedidos que merece prestígio. VI - Recurso que se apresenta manifestamente improcedente. Aplicação do caput do art. 557 do C.P.C. c.c. art. 31, inciso VIII do Regimento Interno deste E. Tribunal. Negado Seguimento.
Ainda acerca da discussão de culpa, defendendo-se a necessidade de ação de responsabilidade independente (e não na separação judicial ou divórcio), decidiu o Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo:
TJ-SP - Apelação APL 00205961620118260100 SP 0020596-16.2011.8.26.0100 (TJ-SP) Data de publicação: 07/03/2013
Ementa: APELAÇÃO CÍVEL 1. Divórcio. Emenda Constitucional nº. 66 /2010. Aplicabilidade. 2. Indenização por Danos Morais. O novo regime constitucional de divórcio afasta aferição de culpa para sua decretação, sem prejuízo de apuração de eventuais danos por meio de ação própria, não se vislumbrando na hipótese prática de ato ilícito. 3. Regime de Bens. Separação convencional e absoluta de bens estipulado por meio de pacto antenupcial constante de escritura pública. Incomunicabilidade dos aquestos (inteligência do art. 1.687 do Código Civil ). Decisão mantida. Recurso Improvido.
CABRAL cita ainda uma razão sócio-humanitária para a manutenção da separação judicial, que é a possiblidade do cônjuge afetado por doença mental grave, manifestada após o casamento, possa se separar judicialmente, manter o vinculo conjugal, mas com possiblidade de manutenção de união estável com uma terceira pessoa, a qual “a doutrina denomina de separação remédio, e pode ser adotada caso o cônjuge sadio e de boa-fé pretenda continuar a zelar pelo cônjuge enfermo, inclusive garantindo-lhe as consequências previdenciárias e o pensionamento devido (p.121-122)”.
Há, por outro lado, de se respeitar a posição de eminentes doutrinadores como Pablo Stolze e Flávio Tartuce para quem a separação judicial mostra-se inadequada à contemporaneidade. TARTUCE (2011) assevera que:
Manter-se a burocracia de exigência da prévia separação de direito, para o fim do casamento, com a concepção de um modelo bifásico (separação + divórcio), não traz a citada eficácia pretendida. Em outras palavras, como sustentam vários juristas, caso de Paulo Lôbo e Zeno Veloso, se mantido o instituto da separação de direito, o trabalho do reformador constituinte terá sido totalmente inútil e desnecessário (p. 01).
Em consonância com esse pensamento decidiu o TJBA:
Apelação. Divórcio. agravo retido. Pedido de apreciação. Decisão. Ausência. Não conhecimento. Casamento. Dissolução. Emenda 66/10. Aplicação. Regime de bens. Comunhão universal. Pacto antenupcial. Ausência. Regime legal. Comunhão parcial. Imposição. Herança. Partilha. Exclusão. Sentença. Confirmação. Recurso. Desprovimento. Deixando o apelante de expressamente pedir a apreciação do agravo retido e inexistindo decisão a ensejar a interposição deste recurso, dele não se conhece, de acordo com o § 1º, do art. 523 do CPC. A emenda constitucional 66/10, de aplicação imediata, restou possibilitada a decretação do divórcio independentemente de tempo de separação, sendo de se enfatizar que se o casamento foi realizado após a lei 6515/77, ainda que conste da respectiva certidão que o regime de bens é o da comunhão universal, por falta de pacto antenupcial, prevalece o regime da comunhão parcial, relação essa que exclui a partilha de bens herdados por um dos consortes, sendo, portanto, merecedora de confirmação a sentença nesse sentido prolatada. Recurso desprovido.
CONCLUSÃO
Após este bastante sucinto apanhado teórico, pode-se chegar a conclusão de que é, no mínimo, desnecessário defender o fim da separação judicial pelas razões jurídicas e sociais elencadas, não havendo previsão expressa, constitucional ou em legislação ordinária, derrogando o instituto, em que se pese o respeito a posições doutrinárias e jurisprudenciais em contrário.
REFERÊNCIAS
BORGES FILHO, Adalberto Lima. O novo panorama do divórcio no Brasil. O fim da separação judicial (?). Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2931, [11] jul. [2011]. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/19528>. Acesso em: 23 jun. 2014.
CABRAL, Lidia Caldeira. Separação Judicial: um instituto derrogado?. 2011. Disponível em: http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista56/revista56_119.pdf. Acesso em 20.06.2014.
PRETEL, Mariana Pretel e. Comentários acerca da emenda constitucional 66. Disponível em: http://www.conteudojuridico.com.br/?colunas&colunista=151_Mariana_Pretel&ver=686#end. Acesso em 20.06.2014.
STOLZE, Pablo. A nova emenda do divórcio. Primeiras reflexões. Colégio registral do Rio Grande do Sul. 2010. Disponível em http://www.colegioregistralrs.org.br/doutrina.asp?cod=400. Acesso em 20.06.2014
TARTUCE, Flávio. ARGUMENTOS CONSTITUCIONAIS PELO FIM DA SEPARAÇÃO DE DIREITO. 2011. Disponível em www.flaviotartuce.adv.br. Acesso em 22.06.2014.
Nota
¹Pode-se citar, entre outros, o nome de Pablo Stolze, para quem “[...] fundamentalmente, suprime o instituto da separação judicial no Brasil e extingue também o prazo de separação de fato para a concessão do divórcio (STOLZE, 2010, p.01).