A Constituição Federal exigiu, em seu art. 37, XXI, que as obras, serviços, compras e alienações sejam contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes.
As exceções à regra da licitação devem ser previstas em lei. É o caso da contratação direta, mediante dispensa, no caso de emergência.
Com efeito, a contratação direta emergencial se baseia em situações excepcionais, em que um fato extraordinário, que foge á previsibilidade ordinária do administrador, traz a necessidade irresistível de a Administração contratar em curto espaço de tempo que se mostra incompatível com a tramitação de uma licitação.
Nesse sentido, reza o art. 24, IV da Lei nº 8.666/93, in verbis:
“Art. 24. É dispensável a licitação:
(...)
IV - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos;”
A contratação emergencial, quando a situação urgente é causada pela própria Administração, é indesejável. A falta de planejamento, o atraso ou a omissão do administrador não podem abrir as portas para se dispensar a competição decorrente do certame licitatório, pois isso poderia dar espaço para direcionar a contratação pública, contrariando a exigência constitucional da impessoalidade. Trata-se do que se denominou de “emergência fabricada”.
No entanto, ainda que haja desídia do administrador, haverá uma necessidade pública que, muitas vezes, não pode ficar insatisfeita enquanto se espera a realização regular de uma licitação Nesses casos, o Tribunal de Contas da União e a Advocacia-Geral da União passaram a admitir, em caráter excepcional, a contratação direta pelo tempo estritamente necessário à realização de novo certame, desde que seja apurada, concomitantemente, a causa da dispensa e responsabilizados eventuais culpados.
Segundo Lucas Rocha Furtado[1], “[o] entendimento do Tribunal de Contas da União vinha sendo no sentido de considerar que a desídia do administrador não poderia justificar a contratação emergencial sem licitação”. No entanto, prossegue o Procurador do Ministério Público Especial, “com o advento do Acórdão nº 1.876/2007, o Plenário do TCU sinalizou mudança nesse entendimento”.
Com efeito, naquele julgamento, o TCU decidiu o seguinte:
TCU: “RECURSOS DE RECONSIDERAÇÃO EM PROCESSO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS. QUESTÕES RELACIONADAS A LICITAÇÕES E CONTRATOS. DISPENSAS FUNDAMENTADAS EM SITUAÇÃO DE EMERGÊNCIA. PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO APRESENTADO PELO ADMINISTRADOR. NÃO-PROVIMENTO DO RECURSO APRESENTADO PELA EMPRESA.
1. A situação prevista no art. 24, VI, da Lei nº 8.666/93 não distingue a emergência real, resultante do imprevisível, daquela resultante da incúria ou inércia administrativa, sendo cabível, em ambas as hipóteses, a contratação direta, desde que devidamente caracterizada a urgência de atendimento a situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares.
2. A incúria ou inércia administrativa caracteriza-se em relação ao comportamento individual de determinado agente público, não sendo possível falar-se da existência de tais situações de forma genérica, sem individualização de culpas”.
(Acórdão 1876/2007-Plenário, Processo nº 008.403/1999-6, Rel. Aroldo Sedraz, 14.09.2997).
Seja qual for a origem da emergência, será cabível a contratação direta, o que não é desprovido de consequências jurídicas. Ao tratar do tema na esfera do Poder Executivo Federal, a Orientação Normativa nº 11/2009 da Advocacia Geral da União, dispôs o seguinte:
ON nº 11/2009 da AGU: “A contratação direta com fundamento no inc. IV do art. 24 da Lei nº 8.666, de 1993, exige que, concomitantemente, seja apurado se a situação emergencial foi gerada por falta de planejamento, desídia ou má gestão, hipótese que quem lhe deu causa será responsabilizado na forma da lei”.
Assim, é preciso distinguir ainda a contratação de serviços públicos contínuos, cuja interrupção seria danosa à sociedade, das contratações feitas sem essa nota de regularidade temporal, a exemplo de serviços para desenvolvimento de soluções de tecnologia da informação (Instrução Normativa nº 04/2010 da SLTI-MPOG).
No primeiro caso, a interrupção da prestação é maléfica para sociedade e desnatura a própria natureza prestação do serviço, que tem na continuidade uma de suas características essenciais. Logo, ainda que causa que resultou na situação de emergência, como decidiu o TCU, decorra da falta ou insuficiência do planejamento administrativo, a situação de emergência legal estará caracterizada, podendo ensejar a contratação direta.
A contratação direta, contudo, não significa burla aos princípios administrativos. Em primeiro lugar, a lei exige que o contrato seja somente celebrado após procedimento simplificado de concorrência, para justificar a escolha do executante, de modo a garantir uma disputa entre potenciais fornecedores (art. 26, parágrafo único, II da Lei nº 8.666/93).
Se se tratasse da compra de bens mediante dispensa com base no pequeno valor (art. 24, II da Lei nº 8.666/93), a competição se daria pelo sistema de cotação eletrônica, conforme manda art. 4º, §2º do Decreto nº 5.450/2005, que foi regulamentado pela Portaria nº 306/2001 do MPOG. No entanto, a hipótese dos autos é diversa, o que não exime o gestor de buscar a realização, na maior medida possível, do princípio da competição (art. 3º da Lei nº 8.666/93).
Assim, embora temporária, a jurisprudência revestiu a contratação emergencial de outras cautelas. Vale a pena transcrever as exigências que têm sido feitas pela Corte de Contas Federal:
TCU: “alerta à ELETROBRAS-Distribuição Piauí de que, quando da realização de dispensa de licitação nos termos do art. 24, inc. IV, da Lei nº 8.666/1993, é indispensável a consulta ao maior número possível de fornecedores ou executantes para o integral atendimento dos incisos II e III do parágrafo único do art. 26 da Lei nº 8.666/1993, a fim de que efetivamente possa ser selecionada a proposta mais vantajosa para a Administração” (item 9.3, TC-001.233/2011-4, Acórdão nº 955/2011– Plenário).
TCU: “Representação acerca de possíveis irregularidades ocorridas na aquisição de sistema de intercepção e monitoração telefônica pela Secretaria da Segurança Pública - Sesp/PR, no âmbito do Convênio SENASP/MJ n. 150/2002. Determinação sobre a formação das justificativas de preços nas contratações diretas e sobre a negociação para obter a melhor proposta para a Administração.
9.1. [...] conhecer da Representação, para, no mérito, considerá-la parcialmente procedente;9.2. [...] acolher as razões de justificativa apresentadas pelo responsável Sr. [omissis], Secretário da Segurança Pública do Estado do Paraná;9.3. determinar à Secretaria da Segurança Pública do Estado do Paraná que, quando da realização de aquisições à conta de recursos federais:
9.3.1. observe o disposto no inciso III do Parágrafo único do art. 26 da Lei n.º 8.666, de 1993, formalizando devidamente a justificativa preço para as contratações diretas (dispensa ou inexigibilidade de licitação), de modo a demonstrar a adequação dos custos orçados ou a conformidade da proposta apresentada aos preços de mercados;9.3.2. intente, sempre que possível, junto ao contratado, ainda que nos casos dispensa ou inexigibilidade de licitação, negociação com vistas à obtenção de proposta mais vantajosa para a Administração, conforme o art. 3º da Lei n.º 8.666, de 1993;[VOTO]3. No mérito, observo que as ocorrências apontadas pela unidade técnica convergem, essencialmente, para os seguintes pontos: [...]; b) a ausência de justificativa de preço; [...].[...]16. Quanto ao segundo ponto, consistente na ausência de justificativa de preço, conforme estabelece o Parágrafo único, inciso III, do art. 26 da Lei n.º 8.666, de 1993, muito embora não se tenha seguido a formalidade requerida pela Lei, com a demonstração da adequação dos custos orçados, mediante, por exemplo, a consulta aos preços praticados pela empresa contratada em outras oportunidades, entendo que nem por isso se deva concluir pela ocorrência de irregularidade.
17. Primeiramente, observo que o valor inicialmente estimado pela Sesp/PR [...] contou com a anuência expressa do órgão concedente, ou seja, a Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça - Senasp, a qual, por conhecedora e disseminadora do sistema em questão, faz presumir que estava hábil a atestar a adequação do orçamento apresentado.
18. Verifico, ainda, que houve uma redução no valor inicialmente estimado pela Sesp/PR e aquele efetivamente contratado junto à empresa [omissis], passando de R$ 1.596.011,00 [...] para R$ 1.500.000,00 [...], representando, assim, um decréscimo de 6,4%.[...]22. Desta forma, em que pese a Sesp/PR pudesse ter melhor formalizado a justificativa de preço da contratação, bem assim empreendido uma melhor negociação com a empresa [omissis], entendo que os argumentos apresentados podem ser acolhidos, cabendo, no entanto, a expedição de determinações corretivas ao órgão responsável, com vistas a melhor formalização da justificativa de preço e ao estabelecimento, sempre que possível, de negociação, objetivando, deste modo, a obtenção de uma proposta mais vantajosa para a Administração, nos termos da Lei n.º 8.666, de 1993.
AC-2314-43/08-P Sessão: 22/10/08 Grupo: II Classe: VII Relator: Ministro Guilherme Palmeira - FISCALIZAÇÃO - REPRESENTAÇÃO
TCU: “DISPENSA DE LICITAÇÃO. DOU de 05.04.2011, S. 1, p. 113. Ementa: alerta à CEPLAC/SUPOR/AFLO no sentido de que, na formalização dos processos de dispensa de licitação, observe com rigor os preceitos da Lei nº 8.666/1993, em especial as hipóteses em que a licitação é dispensável (art. 24), a obrigatoriedade nas obras e serviços da existência de orçamento detalhado em planilhas que expressem a composição de todos os seus custos unitários (art. 7º, § 2º, inc. II, c/c art. 7º, § 9º), a vedação da indicação de marcas (art. 7º, § 5º, c/ c art. 7º, § 9º), os critérios de publicidade (arts. 16 e 26, “caput”), os casos em que é obrigatório o instrumento contratual (art. 62, “caput”), bem como os elementos que a instruirão relacionados no parágrafo único do art. 26” (item 9.7.6, TC-014.388/2005-9, Acórdão nº 1.920/2011-1ª Câmara).
TCU: “alerta ao CREA/PI no sentido de que, quando da aquisição de bens ou contratação de serviços com licitação dispensável, nos casos autorizados pela Lei nº 8.666/1993, realize prévia pesquisa de preços no mercado local e, em caso de necessidade de contratações diversas de mesma natureza, atente para a necessidade de revezamento de fornecedores e/ou a juntada de cotações de diferentes fornecedores nos respectivos processos, além de evitar o fracionamento de despesas, observando-se os limites do art. 24 da supracitada Lei (item 9.5, TC-003.832/2008-7, Acórdão nº 1.038/2011-Plenário).
TCU: “alerta à Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri no sentido de que: a) utilização do instituto da dispensa de licitação por emergencialidade somente nos casos em que se comprovar a presença dos pressupostos estabelecidos pela Lei nº 8.666/1993, no seu art. 24, inc. IV, em que não haja realmente possibilidade de se realizar um procedimento licitatório normal, ante os prejuízos que isso poderia causar; b) instrução dos processos de dispensa por emergencialidade com a necessária e imprescindível justificativa de preços, não sendo suficiente apenas a inserção das cotações de preços obtidas com três ou mais empresas desacompanhada de análise fundamentada dos valores apresentados e contratados” (itens 1.5.1.2 e 1.5.1.3, TC-015.455/2009-0, Acórdão nº 4.442/2010-1ª Câmara).
Portanto, não comete ato de improbidade administrativa, nem crime de dispensa indevida de licitação, o gestor que, em razão de algum problema administrativo, vê-se na premente necessidade de efetuar uma contratação direta para satisfazer o interesse público, evitando um mal maior, num juízo de proporcionalidade, que seria deixar a população desprovida do resultado da contratação.
Nota
[1] FURTADO, Lucas Rocha. Curso de licitações e contratos administrativos. 2ª ed., Belo Horizonte: Ed. Forum, 2009, p. 78.