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Controle externo da atividade policial:

um faz de conta à brasileira

02/07/2014 às 13:40
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A Constituição, que atribuiu ao MP o controle externo da atividade policial, remete à lei a tarefa de regulamentar a atribuição. Até os dias de hoje, só há um artigo de lei a traçar pálido esboço da função.

Muitas das conquistas inscritas na Constituição de 1988 se deram como reação ao então passado autoritário recente e também como uma forma de prevenir abusos futuros. Dentre as memórias sensíveis e dolorosas da sociedade brasileira estavam os abusos cometidos pelo braço armado do Estado: as polícias. E de olho nesse passado autoritário, violento, abusivo e truculento, os constituintes, numa tentativa de criarem múltiplos mecanismos de fortalecimento da democracia, atribuíram ao Ministério Público o controle externo da atividade policial.

O Estado distingue-se das demais associações pelo fato de deter, com exclusividade, o poder de coagir as pessoas a cumprirem suas determinações legais. E a atividade policial é o espectro mais visível do poder superior do Estado, podendo, facilmente, incorrer em violações aos direitos fundamentais dos indivíduos. Esses abusos de poder constituem desordem tão frenquente e séria que a proteção contra eles é, em toda sociedade, problema da maior importância.   

As instituições livres e democráticas, dentre as quais se destaca o Ministério Público, têm a função de reduzir ao mínimo os abusos que nascem das desigualdades no poder, principalmente da relação tremendamente desigual e assimétrica travada entre o indivíduo e o Estado-polícia[1]. A relação Estado/indivíduo e Estado/sociedade é um dos problemas mais agudos da democracia moderna e do sistema constitucional de perservação dos direitos fundamentais sob o pano de fundo do pensamento moderno relativo à dignidade humana e à liberdade.

No Brasil, pela tradição autoritária e arbitrária do Estado, o sentido da injustiça e do abuso assume um impulso historicamente mais potente que qualquer concepção positiva de justiça. Nossas polícias foram estruturadas como braços armados de grupos oligárquicos ao longo do tempo. Essa é a herança ou o estigma que acompanha o aparelho policial do Brasil, ainda não permeado totalmente pelos princípios da teoria e do pensamento democrático moderno.

Todo poder é perigoso por sua própria natureza, pois seu titular está sempre propenso a dele fazer abuso. E o fato do Estado deter o monopólio da coerção física tende a converter seus agentes em promotores de seus próprios interesses, abusando, fatalmente, de suas atribuições (Duverger, 1975, p. 62; Friedrich, 1970, p. 30, Dahl, 1998, p. 98). No século XIX, Lorde Acton, um católico liberal de grande estatura intelectual, escreveu numa carta para um amigo a frase famosa: “Todo o poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente”. Esta proposição deixa claro que o abuso do poder é algo a se levar em conta sempre que se atribua poder a algum ser humano sem a presença de eficientes mecanismos de controle (interno e externo).

Mesmo num Estado democrático, o exercício do poder é extremamente expansivo (Simon, 1955, p. 134) e com pouco senso de responsabilidade histórica, pois tende a exercer uma tutela sobre a sociedade e o indivíduo só comparável ao Estado totalitário. Até mesmo o antigo Estado absoluto, como diz Ortega y Gasset (1987, p. 130), respeitava instintivamente a sociedade. Busca-se fortalecer o Estado democrático à custa da sociedade e do indivíduo, e para isso, a estratégia é interferir (e restringir) em suas esferas próprias e autônomas. É a criatura nutrindo-se dos criadores.

Também há uma firme crença de que o Estado democrático ao corresponder ao desejo da maioria deve conceder remédio a todas as misérias humanas, de qualquer espécie que sejam. E nestas circunstâncias de aliviar todas as dores, não ocorre a ninguém em pensar se existem outros meios ou recursos para evitar algumas delas ou se aquelas tratadas em cada caso concreto, efetivamente receberam o melhor tratamento (um tratamento compatível com a situação dada). E é claro que a intervenção do Estado a cada desvirtuamento ou miséria da sociedade ou do indivíduo gera uma espécie de círculo vicioso: à medida que aumenta a intervenção governamental, mais se fortalece o pensamento de sua necessidade e com mais insistência pede-se a sua extensão. Instala-se uma espécie de “estatolatria” a refletir dois sentimentos ou estados atitudinais: medo diante da poderosa máquina estatal e seus agentes arrogantes; e dependência das soluções oficiais.

Para Ortega y Gasset (1987, p. 131), o Estado de nosso tempo é uma máquina formidável, que funciona prodigiosamente, de uma maravilhosa eficiência pela qualidade e precisão de seus meios. Colocada no meio da sociedade, basta tocar numa mola para que suas enormes alavancas se ponham em ação e operem fulminantemente sobre qualquer parte do corpo social.

Posto diante do Estado, continua o filósofo espanhol, o homem-massa (usufrutuário privilegiado e passivo da democracia e da civilização) tende a vê no Estado uma coisa sua, uma espécie de faz-tudo, e diante de qualquer dificuldade, conflito ou problema na vida pública de um país, passa a exigir que o Estado o assuma imediatamente, que se encarregue diretamente de resolvê-lo com seus meios gigantescos e incomparáveis.

Este é o maior perigo que hoje ameaça a civilização: a estatização da vida, o intervencionismo do Estado, a absorção de toda espontaneidade social pelo Estado; isto é, a anulação da espontaneidade histórica, que definitivamente sustenta, nutre e impulsiona os destinos humanos. Quando a massa se sente insatisfeita, ou simplesmente tem algum forte desejo, é para ela uma grande tentação essa possibilidade permanente e segura de conseguir tudo – sem esforço, luta, dúvida ou risco -, sem precisar fazer nada além de apertar a mola e ligar a portentosa máquina.

Todavia, essa "portentosa máquina", numa democracia, não detém poderes ilimitados e absolutamente livres de controle ou insindicáveis[2]. O arbitrário está reduzido ao mínimo compatível com as imposições práticas. O poder exercido num ambiente democrático carrega uma necessidade constante de autojustificação e se apóia na consciência jurídica institucional, não sendo, absolutamente, um fiat arbitrário. O exercício do poder, em qualquer espaço que se manifeste, precisa vir acompanhado de um sentido teleológico, de modo a recomendá-lo à aceitação dos homens. Não se prende uma pessoa pela prisão em si; um indivíduo não é revistado por um policial para satisfazer um desejo doentio do agente do Estado. Em qualquer situação, o exercício do poder estatal precisa ter um fundo substancial (ou teleológico) que o justifique; esse fundo não é simplemente a vontade do indivíduo (agente estatal), conduto pelo qual o Estado (entidade abstrata) se faz concreto. Daí porque, como ensinam  Prélot (1974, p. 80) e G. Lumia (2003, p. 34), o fenômeno político mais importante não é o poder, mas a obediência; é por isso que  as democracias contam, sobretudo, com o consenso dos cidadãos, enquanto as ditaduras se fiam amplamente na força dos aparatos repressivos.

A eficácia na contenção dos abusos e das ilegalidades cometidas pelas polícias é proporcional à existência de mecanismos de controle e à intensidade de sua vigilância. Impõe-se, naturalmente, às instituições democráticas controladoras, o dever de dar novas possibilidades de desenvolvimento às liberdades individuais e evitar qualquer perigo que as ameacem. Num Estado de Direito Democrático toda energia coletiva se concentra no esforço de subordinar a lei, a moral e todas as instituições sociais às necessidades de harmonia social. Há por trás do Estado muitos inimigos da liberdade e é mediante o Estado (através de órgãos públicos de controle, bem entendido) que os combatemos. Restringir a ambição desordenada que dá ensejo ao abuso e coibir o princípio da força como regulador das relações humanas são alguns  dos objetivos de qualquer função controladora. 

Passados mais de 25 anos da promulgação da Constituição Federal, o controle externo da atividade policial ainda permanece numa zona cinzenta das atribuições ministeriais, cercado de dúvidas e incertezas, quase relegado ao reino dos mitos desacreditados. Dificuldades na identificação e na definição clara das providências que podem e devem ser adotadas para implementar, de forma eficiente, a atribuição em plano nacional, ainda persistem. Falta um roteiro hábil a nortear os agentes ministeriais e isso faz com que a instituição, em seus vários órgãos de execução, adote a censurável e obsoleta estratégia de "tentativas e erros" na operacionalização da matéria. Cada agente molda sua promotoria de acordo com suas ideias, preconceitos, idiossincrasias, sob uma forma experimental, arbitrária e, muitas vezes, excêntrica, refletindo um caráter personalístico pouco compatível com a postura institucional impressa na estrutura, atividades e ações do Ministério Público.

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O art. 129, inc. VII, da Constituição Federal, que atribuiu ao MP o controle externo da atividade policial, remete à lei a tarefa de regulamentar a atribuição. Até os dias de hoje, só há um artigo de lei (com cinco incisos!) de hierarquia federal, o art. 9º. da Lei Complementar n. 75/1993 (Lei Orgânica do Ministério Público da União), a traçar pálido esboço da função. Essa penúria normativa é muito bem ressaltada pelo Conselho Superior da Polícia Federal, através da Resolução n. 1/2010-CSP/DPF, de 26.03.2010: "O controle externo da atividade policial pelo Ministério Público está adstrito às hipóteses previstas no art. 9º. da Lei Complementar n. 75, de 1993...". O objetivo da referida resolução policíaca é "evitar abusos ou excessos no exercício das atividades funcionais entre autoridades policiais e membros do Ministério Público". Ou seja, em bom português, é o controle sobre o controle, o fiscalizado traçando os limites da atividade do fiscal.

Já a Lei Federal n. 8.625/1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público) não traz absolutamente nada sobre o referido controle. Por conta desse desleixo, toda a instituição, e pior ainda, toda a sociedade brasileira, está obrigada a confiar em impressões intuitivas, pessoais, sem um marco normativo denso e sério que possa ser o norte magnético na árdua tarefa de controlar os abusos policiais.

Diante da apatia e do desinteresse do legislador nacional em regulamentar efetiva e responsavelmente dito controle externo, a evolução dos parcos mecanismos jurídicos se realiza lentamente sob o influxo de forças centrífugas, elementos inconscientes e condições limitadoras, principalmente as de caráter corporativo e antagônico. 

O que era para ser um controle, passa a ser um descontrole da atividade policial, por conta de uma esperteza tradicional da classe política brasileira: define os fins, mas não fornece os meios. Põe um fardo nas costas de uma instituição e fica a rir da ineficiência na sua execução. Na folha de papel da Constituição o controle externo da atividade policial está inscrito em letras garrafais, mas nas relações objetivas de poder tudo continua como sempre foi desde os tempos de Tobias Barreto que dizia: "Do meu país só conheço duas coisas: o exator que me cobra os impostos e o soldado que me mete medo na rua – estou satisfeito!".  


Referências:

DAHL, Robert A. La democracia – una guía para los ciudadanos. Tradução de Fernando Vallespín. Madrid:Taurus, 1998.

DUVERGER, Maurice. As modernas tecnodemocracias – Poder Econômico e Poder Político. Tradução de Max da Costa Santos. Rio de Janeiro:Paz e Terra, 1975.

FRIEDRICH, Carl J. Uma introdução à teoria política. Tradução de Leônidas Xausa e Luiz Corção. Rio de Janeiro:Zahar, 1970.

GINSBERG, Morris. Ensayos de sociologia y filosofia social. Tradução de Adolfo Maillo. Madrid:Aguilar, 1961.

LUMIA, Giuseppe. Elementos de teoria e ideologia do Direito. Tradução de Denise Agostinetti. São Paulo:Martins Fontes, 2003.

ORTEGA Y GASSET, José. A rebelião das massas. Tradução de Marylene Pinto Michael. São Paulo:Martins Fontes, 1987.

PRÉLOT, Marcel. A ciência política actual. Tradução de Jonas Negalha. Amadora (Portugal):Livraria Bertrand, 1974.

SIMON, Yves. Filosofia do governo democrático. Tradução de Edgard Godói da Mata-Machado. Rio de Janeiro:Agir, 1955.


Notas

[1] "Ya por capacidad innata, ya por un resultado de instituciones injustas, los hombres son desiguales en poder. En ausencia de control, sólo serían libres los que tienen un amplio poder" (Ginsberg, 1961, p. 151).

[2] O Estado, alfa e ômega de si mesmo, existente por si próprio e a si próprio suficiente, superior a todos os valores humanos, é fenômeno incompatível e inaceitável em ambiente democrático.

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Sobre o autor
João Gaspar Rodrigues

Promotor de Justiça. Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes/RJ. Membro do Conselho Editorial da Revista Jurídica do Ministério Público do Amazonas. Autor dos livros: O Ministério Público e um novo modelo de Estado, Manaus:Valer, 1999; Tóxicos..., Campinas:Bookseller, 2001; O perfil moral e intelectual do juiz brasileiro, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2007; Segurança pública e comunidade: alternativas à crise, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2009; Ministério Público Resolutivo, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2012.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, João Gaspar. Controle externo da atividade policial:: um faz de conta à brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4018, 2 jul. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29942. Acesso em: 19 abr. 2024.

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