2) DA IMPOSSIBILIDADE DE CONCEBER O ANTENISMO COMO SERVIÇO DE TELECOMUNICAÇÃO AUTÔNOMO
11. Na linha do que foi exposto no tópico anterior, forçoso é concluir que não é possível instituir por meio de lei um serviço de telecomunicação autônomo para enquadramento das atividades desenvolvidas pelos antenistas, sob o argumento, por exemplo, de que não há dever de universalização do serviço de TV aberta, pois foi classificado como serviço a ser prestado no regime privado pelo plano geral de outorgas (atualmente vigente na redação do Decreto nº 6.654, de 2008).
É certo que a Lei nº 9.472, de 1997, delegou ao Poder Executivo federal a competência para definição de quais serviços de telecomunicação serão prestados sob o regime público e quais o serão em regime privado, conforme se vê do inciso I do artigo 18 de tal lei:
Art. 18. Cabe ao Poder Executivo, observadas as disposições desta Lei, por meio de decreto:
I - instituir ou eliminar a prestação de modalidade de serviço no regime público, concomitantemente ou não com sua prestação no regime privado;
II - aprovar o plano geral de outorgas de serviço prestado no regime público;
III - aprovar o plano geral de metas para a progressiva universalização de serviço prestado no regime público;
IV - autorizar a participação de empresa brasileira em organizações ou consórcios intergovernamentais destinados ao provimento de meios ou à prestação de serviços de telecomunicações.
Parágrafo único. O Poder Executivo, levando em conta os interesses do País no contexto de suas relações com os demais países, poderá estabelecer limites à participação estrangeira no capital de prestadora de serviços de telecomunicações. (grifamos)
Nessa linha, foram editados os Decretos 2.534, em 1998, e 6.654, em 2008, pelos quais apenas para o serviço telefônico fixo comutado foi estabelecido o regime público, conforme se vê dos artigos 1º e 3º do decreto de 2008, e assim as obrigações de universalização e continuidade só existiriam para tal tipo de serviço nos termos do art. 79 da Lei nº 9.472, de 1997:
Decreto nº 6.654, de 2008:
Art. 1º O serviço telefônico fixo comutado destinado ao uso do público em geral é o prestado nos regimes público e privado, nos termos dos arts. 18, inciso I, 64, 65, inciso III, e 66 da Lei no 9.472, de 16 de julho de 1997, e do disposto neste Plano Geral de Outorgas.
§ 1o Serviço telefônico fixo comutado é o serviço de telecomunicações que, por meio da transmissão de voz e de outros sinais, destina-se à comunicação entre pontos fixos determinados, utilizando processos de telefonia.
(...)
Art. 3o Aos demais serviços de telecomunicações, não mencionados no art. 1o, aplica-se o regime jurídico previsto no Livro III, Título III, da Lei no 9.472, de 1997 [regime privado].
Lei nº 9.472, de 1997:
Art. 79. A Agência regulará as obrigações de universalização e de continuidade atribuídas às prestadoras de serviço no regime público.
§ 1° Obrigações de universalização são as que objetivam possibilitar o acesso de qualquer pessoa ou instituição de interesse público a serviço de telecomunicações, independentemente de sua localização e condição sócio-econômica, bem como as destinadas a permitir a utilização das telecomunicações em serviços essenciais de interesse público.
§ 2° Obrigações de continuidade são as que objetivam possibilitar aos usuários dos serviços sua fruição de forma ininterrupta, sem paralisações injustificadas, devendo os serviços estar à disposição dos usuários, em condições adequadas de uso.
12. Contudo também é óbvio e indelével que as concessionárias dos serviços se obrigaram, por meio do contrato firmado com o Ministério das Comunicações, a atenderem ao município como um todo, sem haver em tal pacto diferenciação entre as áreas urbana e rural de tal unidade federativa, conforme se vê das minutas de contratos de tal natureza, até porque qualquer diferenciação implicaria discriminação quanto às condições de acesso e fruição do serviço, vedada pelo art. 3º, III, da Lei no 9.472, de 1997.
Tal obrigação contratual, da maior monta, não pode ser simplesmente desprezada pelo Parlamento brasileiro, estabelecendo um serviço de telecomunicação que faça com que parte dos beneficiários de tal obrigação tenha que pagar para gozar plenamente de tal direito, ao contrário dos demais segmentos da sociedade, que o usufruem gratuitamente.
A injustiça de tal propositura legislativa mostra-se mais evidente ao termos em conta que as populações prejudicadas pelo inadimplemento da referida obrigação contratual (de transmitir o sinal de TV aberta a todo o município de modo adequado) são justamente as mais vulneráveis de nossa sociedade e muitas mais excluídas das políticas públicas, quer por suas condições socioeconômicas (moradoras de morros, encostas), quer pela distância de suas residências para com os grandes centros urbanos (moradoras de áreas rurais e periferias).
Ora, se a concessionária recebeu a outorga do Estado brasileiro para explorar o serviço de radiodifusão da TV aberta, não deve fazê-lo simplesmente do ponto de vista econômico, mas também atender aos princípios da igualdade na prestação dos serviços e nessa linha respeitar os direitos do usuário, especialmente ao recebimento de sinal adequado e em igualdade de condições com os demais usuários, sem discriminações de qualquer espécie, tal como descrito no capítulo anterior.
CONCLUSÃO
13. Deste modo, o Projeto de Lei nº 4.904/01 da Câmara dos Deputados (PLC nº 36/2005), nos termos em que foi proposto, há de ser rejeitado por implicar comercialização do sinal da TV aberta, tendo em vista a incompatibilidade com o princípio da igualdade na prestação do serviço público, amplamente consagrado na doutrina jurídica, bem como com o direito ao acesso às fontes da cultura nacional (expresso no art. 215 de nossa Constituição brasileira), além de estabelecer grave violação aos direitos dos usuários previstos nos artigos 3º, I e III, da Lei nº 9.372, de 1997, bem como à finalidade de todo e qualquer serviço de telecomunicação estampada no art. 5º da citada lei.
Deve, pois, o referido PL ser reformulado, para que, explicitando a obrigação das concessionárias do serviço de TV aberta pela cobertura regular das áreas de sombra, a teor das referidas diretrizes jurídicas, faculte a contratação de terceiros para adimplemento deste dever (tal como o fez a Resolução nº 411 da ANATEL com relação aos serviços de TV a cabo), porém sem que isso implique cobrança de tarifas dos destinatários do serviço.
Destaco que se trata tão somente de explicitação de uma obrigação, pois esta já está prevista no próprio contrato de outorga de tal serviço de telecomunicação, firmado pelas concessionárias junto ao Ministério das Comunicações.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 19ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo: Malheiros, 2005.
CHAPUS, René. Droit Administratif General. Tomo 1. 5ª ed. Paris: Montchrestien, 1990.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 12ª ed. São Paulo: Atlas, 2000.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 32ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
SARDINHA, Luciana Rosa. Radiodifusão: o controle estatal e social sobre suas outorgas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004.
BRASIL. Edital nº 007, de 2010, CEL-MC para outorga da radiodifusão - Caldas Novas – GO. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=9A5866FA500F3F226DB2A99F52171324.proposicoesWeb1?codteor=1240708&filename=Tramitacao-TVR+769/2013. Acesso em: 13 de julho de 2014.
BRASIL. Parecer do Projeto de Lei da Câmara nº 36, de 2005, que cria o Serviço de Distribuição de Sinais de TV Aberta (DTVA), a ser apreciado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado. Disponível em: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=73772. Acesso em: 13 de julho de 2014.
BRASIL. Lei 4.117 (1962). Lei ordinária nº 4.117, de 27 de agosto de 1962. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4117.htm. Acesso em: 07 de junho de 2014.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm. Acesso em: 07 de junho de 2014.
BRASIL. Lei 8.977 (1995). Lei ordinária nº 8.977, de 06 de janeiro de 1995. Disponível em: http http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8977.htm. Acesso em: 07 de junho de 2014.
BRASIL. Decreto 2.206 (1997). Decreto federal nº 2.206, de 14 de abril de 1997. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1997/D2206.htm. Acesso em: 07 de junho de 2014.
BRASIL. Lei 9.472 (1997). Lei ordinária nº 9.472, de 16 de julho de 1997. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9472.htm. Acesso em: 07 de junho de 2014.
BRASIL. Decreto 2.534 (1998). Decreto federal nº 2.534, de 02 de abril de 1998. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D2534.htm. Acesso em: 07 de junho de 2014.
BRASIL. Medida Provisória 2.228-1 (2001). Medida Provisória 2.228-1, de 06 de setembro de 2001. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/2228-1.htm. Acesso em: 07 de junho de 2014.
BRASIL. Decreto 6.654 (2008). Decreto federal nº 6.654, de 20 de novembro de 2008. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Decreto/D6654.htm. Acesso em: 07 de junho de 2014.
BRASIL. Lei 12.485 (2011). Lei ordinária nº 12.485, de 12 de setembro de 2011. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12485.htm#art37. Acesso em: 07 de junho de 2014.
BRASIL. Resolução nº 411 da ANATEL (2005). Resolução nº 411 da ANATEL, de 14 de julho de 2005. Disponível em: http://legislacao.anatel.gov.br/resolucoes/20-2005/141-resolucao-411. Acesso em: 07 de junho de 2014.
Brasília-DF, julho de 2014.
Notas
[2] Lei nº 8.977/95: “Art. 42. Os atuais detentores de autorização do Serviço de Distribuição de Sinais de TV por Meios Físicos - DISTV, regulado pela Portaria nº 250, de 13 de dezembro de 1989, do Ministro de Estado das Comunicações, outorgadas até 31 de dezembro de 1993, que manifestarem formalmente ao Ministério das Comunicações o seu enquadramento nas disposições desta Lei, terão suas autorizações transformadas em concessão para execução e exploração do serviço de TV a Cabo, pelo prazo de quinze anos, contado a partir da data da outorga da concessão.
§ 1º A manifestação de submissão às disposições desta Lei assegurará a transformação das autorizações de DISTV em concessão para a prestação do serviço de TV a Cabo e deverá ser feita no prazo máximo e improrrogável de noventa dias, a partir da data da publicação desta Lei.
§ 2º O Poder Executivo, de posse da manifestação de submissão às disposições desta Lei, tal como prevê este artigo, expedirá, no prazo máximo e improrrogável de trinta dias, o correspondente ato de outorga da concessão para a prestação do serviço de TV a Cabo.
§ 3º As autorizatárias do serviço de DISTV que ainda não entraram em operação e tiverem a sua autorização transformada em concessão do serviço de TV a Cabo terão o prazo máximo e improrrogável de doze meses para o fazerem, a contar da data da publicação desta Lei, sem o que terão cassadas liminarmente suas concessões.”
[3] AUBY, Jean-Marie e DUCOS-ADER, Robert. “Grands Services Publics et Entreprises Nationales”. 1ª ed. Vol. 1. Presses Universitaires de France, 1969, p. 34. Apud MELLO, Celso Antônio Bandeira de. “Curso de Direito Administrativo”. 19ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 638.
[4] “Toutes les activités de service public, exercées par des personnes publiques ou par de organismes de droit privé, et quel que soit leur caractère, administratif ou commercial, sont dominées par certains grands principes. A cause de leur généralité et de leur importance, ils méritent pleinement d'être présentés, em langage figuré, comme étant les lois du service public.
Ces principes sont intimement liés à l'essence même du service public, ou, en d'autres termes, à son caractère d'activité de plus grand service. Et dans toute la mesure où ils sont altérés, le service public cesse d´être exactement ce qu'il droit être. Il connaît une baisse de qualité.
Ces principes, dont Louis Rolland a mis l'existence em lumière (d'où leur désignation réquente de 'lois de Rolland'), sont les principes de mutabilité, de continuité et d'egalité.
C'est dire que le principe interdit que le service public soit assuré de façon différenciée, en fonction des convictions politiques ou religieuses de son personnel ou de celles des usagers du service.
Le principe d´égalité a, d´autre part, de mutiples conséquences.
(...)
Il manifeste encore ses exigences em ce qui concerne l´égualité des usagers des services publics.
Bien entendu, et l'égalité ne se confondant pas avec l'uniformité, c'est d'egalité proportionnele qu'il s'agit: égalité de traitment des situations semblables.
Plus précisément, et selon la formule jurisprudentielle habituelle, les différences de traitement doivent être em liaison avec 'des différences de situations appréciables'.
S'agissant des usagers des services publics, il sera ainsi légalment possible, notamment em matière tarifaire, de tenir compte de telles différences de leurs situations par rapport au service.
Le Conseil d'Etat, le Conseil constitucionnel et le législateur ont une conception commune, celle qui a été dite, du principe d'´égalité dvant le service public. Mias comme l'appréciation du carctère semblble ou différent des situatuions ne peut échapper à toute subjectivité, il ne faut pas s'étonner si, dans l'apllication du principe, des divervences de vues se manifestent”(CHAPUS, René. “Droit Administratif General”. Tomo 1. 5ª ed. Paris: 1990, p. 424-426. Tradução livre).
[5] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. “Direito administrativo”. 12ª ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 101-102.
[6] MEIRELLES, Hely Lopes. “Direito Administrativo Brasileiro”. 32ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 334.
[7] SARDINHA, Luciana Rosa. “Radiodifusão: o controle estatal e social sobre suas outorgas”. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 40-41.
[8] SARDINHA, Luciana Rosa. “Radiodifusão: o controle estatal e social sobre suas outorgas”. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 92-94.
[9] Conforme fundamental lição de Celso Antônio Bandeira de Mello sobre o princípio da igualdade, nas p. 37-40 de “O Conteúdo jurídico do princípio da igualdade” (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. São Paulo: Malheiros, 2005).