Este artigo tem o firme propósito de provocar a reflexão da comunidade jurídica sobre o controvertido assunto, abordando o aspecto da necessária liberação do bem arrendado (aqui, veículo) em razão do término do contrato com exercício da opção de compra (verdadeiro instituto de arrendamento mercantil).
Interessante ressaltar, ab initio, o precedente do Superior Tribunal de Justiça, por sua Terceira Turma(1), que entendeu anular a cláusula que previa o reajuste das parcelas pela variação do dólar, substituindo este indexador contratualmente fixado (adesão) pelo inpc por força da onerosidade excessiva resultante de sua alta repentina, ocorrida em janeiro de 1999, insustentável tornara-se a política de paridade cambial até então praticada pelo governo.
Com efeito, a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que instituiu o novo Código Civil (vacatio legis ânua após publicação, consoante dispositivo 2.044), trouxe em seu bojo a onerosidade excessiva (associada à imprevisão), já introduzida em nosso ordenamento jurídico pelo Código de Proteção e Defesa do Consumidor – Lei nº 8.078/90 -, permitindo a aplicação do princípio para revisar ou resolver o contrato (artigos 317, 478 e 480).
" Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação. " (destacamos)
Não se pode olvidar, ainda, que a celeuma existente acerca da inaplicabilidade da teoria da imprevisão, de natureza civil, para os casos de revisão de contratos de leasing celebrados em dólar, porquanto quiçá aplicável a teoria consumerista da excessiva onerosidade, cairá por terra com a vigência do novel diploma civil, eis que em sua redação ambos os princípios foram integrados com a finalidade de proteger os cidadãos amplamente, ceifando discussões despiciendas. Pode parecer, ao leitor mais afoito, que a imprevisão deva ser causa, pré-requisito para a aplicação da oneração excessiva – "em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis" - ; acreditamos, no entanto, que o legislador procurou dispor em sintonia com o que comumente ocorre, isto é, superveniência de fato imprevisível que onere excessivamente o contrato, deixando embutidos outros conceitos, como desvantagem exagerada, abusividade, hipossuficiência, adesão, etc., aplicáveis caso a caso.
A par de milhares de ações buscando a tutela para cada caso concreto, ações coletivas foram propostas, especialmente pelo primeiro legitimado, o Ministério Público (art. 5º da Lei nº 7.347/85), procurando abranger o maior número possível de consumidores lesados e ao mesmo tempo evitando a sobrecarga do Poder Judiciário com "n" demandas individuais. Tanto individuais como coletivas obtiveram, via de regra, liminares que permitiram o resgate do saldo contratual com base no inpc.
Referidas ações tramitam rumo ao entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça (embora se trate de precedente específico); todavia, em função do prazo dos contratos (geralmente 24 meses), estes encontram-se findos e, tanto nos verdadeiros como naqueles entendidos como de compra e venda a prazo, ou seja, com opção de compra exercida ou antecipação do "vrg" diluindo-o nas prestações, respectivamente, tendo os arrendatários optado pela aquisição do bem arrendado, obviamente.
Eis a vexata quaestio !
Muitos anos ainda separam os consumidores, hipossuficientes, da solução definitiva dos conflitos de interesses com as instituições arrendadoras. Estas, cientes da "longevidade" de contendas desse jaez, alegam a necessidade do respeito ao due process of law, ou seja, a liberação do veículo tout court após o trânsito em julgado, que, a princípio, se dará no STJ. Acreditam, e procuram fazer crer, que o bem arrendado é a garantia do contrato, devendo, pois, assim permanecer até o "esgotamento" da matéria sub judice.
Sabem as instituições financeiras que os consumidores (arrendatários) não resistirão à ação perniciosa do tempo sobre seus veículos, necessitando trocá-los por novos ou aliená-los a terceiros com o fito de evitar a conseqüente e inarredável diminuição de seu valor, seja pelo preço de mercado, seja pelo gasto excessivo com manutenções; enfim, prejuízos de grande monta.
Ao Poder Judiciário toca coibir tal desiderato, podendo (poder-dever) valer-se de mecanismos existentes no processo civil e que visam, também, reequilibrar as partes diante da aplicação dos princípios da celeridade e do devido processo legal. Trata-se da tutela cautelar.
Na feliz expressão de HUMBERTO THEODORO JÚNIOR(2), temos:
" A tutela cautelar é parte integrante da jurisdição, já que sem ela fracassaria em grande parte a missão de pacificar, adequadamente, os litígios. "
Constatada a situação de que os contratos chegaram a termo e a opção de compra fora exercida, ainda que sob o pálio de liminares determinando a substituição do indexador dólar pelo inpc, viável e, mais que isso, recomendável, pensamos, é a ilação de que, ultimados os pactos, a diferença encontrada entre os índices aplicados (inpc em lugar do dólar) acaso válida a tese de captação de recursos no exterior (deve restar provada a vinculação da tomada do empréstimo com a carteira de leasing da arrendadora, id est, que a vultosa soma em dinheiro captada no exterior foi aplicada especificamente na área de arrendamentos mercantis – e destinada ao arrendatário -, e não para giro ou mútuo), estará "garantida" pela caução oferecida pelo arrendatário para liberação do bem por perecer.
Cabe, aqui, mencionar novo julgado da colenda Terceira Turma do STJ(3), da lavra da eminente Ministra Nancy Andrighi, donde exsurge clara a lição de que a arrendante deve provar a captação "vinculada" da moeda estrangeira:
" A instituição financeira que faz contrato de arrendamento mercantil pela variação cambial do dólar tem que provar o uso e captação dos recursos no exterior. Se assim não fez, não pode prevalecer a correção pela variação da moeda norte-americana, ainda que não onerasse a outra parte. O entendimento é da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça e impediu a Ford Leasing S/A de manter cláusula considerada abusiva por consumidora. "
A valorizada segurança jurídica alinha-se com a celeridade processual na medida em que "adequada" tutela jurisdicional restará protegida pela caução da tutela cautelar.
Entendemos, s.m.j., que o direito da arrendadora, a partir do término da avença (leia-se opção de compra exercida), é o de ser ressarcida da eventual diferença apurada entre os índices (afastada a tese da excessiva – e imprevisível – onerosidade e acolhida a de captação externa de recursos – pacta sunt servanda); de crédito, portanto.
A distinção, sobre o enfoque de contratos finalizados, deve-se ao fato de o Superior Tribunal de Justiça em diversas oportunidades(4) ter entendido que não cabe antecipação de tutela para liberação do veículo durante o contrato. Naquela época, eram pedidas liminares para correção pelo inpc com expedição, após, do recibo de quitação. Em tempo e modo não havia como deferir-se tal pleito, entende-se.
Afirma OVÍDIO ARAÚJO BAPTISTA DA SILVA(5), ferrenho defensor da efetividade do processo e um dos impulsionadores da criação do instituto da antecipação da tutela, que:
" casos há, de urgência urgentíssima, em que o julgador é posto ante a alternativa de prover ou perecer o direito que, no momento, apresenta-se apenas provável, ou confortado com prova de simples verossimilhança. Em tais casos, se o índice de plausibilidade do direito for suficientemente consistente aos olhos – entre permitir sua irremediável destruição ou tutelá-lo como simples aparência -, esta última solução torna-se perfeitamente legítima. O que, em tais casos especialíssimos, não se mostrará legítimo será o Estado recusar-se a tutelar o direito verossímil, sujeitando seu titular a percorrer as agruras do procedimento ordinário, para, depois na sentença final, reconhecer a existência apenas teórica de um direito definitivamente destruído pela sua completa inocuidade prática. "
Incidental ou preparatória de ação principal de revisão de cláusulas contratuais, a cautelar permite a segurança do provimento final, uma vez que ao autor propicia a entrega do bem adquirido evitando seu perecimento, e ao réu a contracautela da caução para o caso de ser vitorioso em determinada causa que não receba o julgamento final no sentido do precedente aberto pela Terceira Turma do STJ. A definitio profisci seus requisitos são menos rigorosos que os da antecipação da tutela, eis que cognição alicerçada em fumaça do bom direito (arestos do STJ e demais julgados encontrados na jurisprudência) e perigo da demora, este caracterizado pela espera de anos para a realização do direito, que terá, ao final, se esvaído em sangue do perecimento paulatino.
Ainda, é de consignar-se a inviabilidade do instituto da antecipação da tutela diante de sua incompatibilidade para com a caução e, mais ainda, impossibilidade de antecipação com carga de irreversibilidade do provimento, e que, igualmente, importe em alienação de domínio.
Destarte, explicitadas as razões de nosso convencimento da possibilidade e acerto de decisão que aprecia pedido cautelar de liberação do veículo após quitação do contrato com base no inpc (fumus boni juris), mediante caução idônea de modo a assegurar a eventual diferença dos indexadores, e o concede liminarmente (periculum in mora), esperamos da comunidade jurídica as ponderações acerca de tão relevante e tormentoso thema.
Notas.
1.. Recurso Especial nº 268661, relatora ministra Nancy Andrighi.
2.. Curso de Direito Processual Civil, volume II, 32ª edição, Forense, 2001.
3.. Recurso Especial n° 373052, noticiado no "site" do STJ em 25/04/2002.
4.. Veja-se, verbi gratia, o julgamento do Agravo Regimental na Medida Cautelar nº 2902/Rio de Janeiro (2000/0057481-3).
5.. A "antecipação" da tutela na recente reforma processual, contida na coletânea A Reforma do Código de Processo Civil, coord. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, Saraiva, 1996.