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Radicalismo religioso no Poder legislativo e a liberdade religiosa

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25/11/2014 às 14:22

Resumo:


  • O direito à liberdade religiosa é essencial em um Estado Democrático, mas pode ser ameaçado pela ação de legisladores radicais que buscam impor suas crenças por meio de leis, ofendendo direitos fundamentais.

  • Projetos de lei que refletem dogmas religiosos radicais, como os voltados para a "cura gay" ou "bolsa estupro", não encontram ressonância na sociedade e podem subverter a ordem pública e a dignidade humana.

  • A liberdade religiosa, sendo um direito fundamental, deve ser protegida de abusos e imposições, garantindo que a influência religiosa no processo legislativo não se converta em doutrinação e restrição das liberdades individuais.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Dessa forma, mostrar-se-á que certos legisladores, imbuídos de crenças radicais, vem tentando impor suas doutrinas à população através da lei. Isso ofende direitos fundamentais, especialmente a liberdade religiosa.

Resumo: O direito à liberdade religiosa é imprescindível a um Estado Democrático de Direito. Ocorre que, dentro das religiões, encontram-se aqueles tidos como radicais, os quais não acompanham a evolução da sociedade e, por conseguinte, da doutrina religiosa. Esses são perniciosos à sociedade, sobretudo, quando alcançam o poder. Dentre os três poderes, o de maior aptidão para influenciar as condutas humanas é o Poder Legislativo, já que ele é o responsável por editar lei à qual todos devem obediência, moldando o comportamento humano. Dessa forma, mostrar-se-á que certos legisladores, imbuídos de crenças radicais, vêm tentando impor suas doutrinas à população através da lei. Isso ofende direitos fundamentais, especialmente a liberdade religiosa.

Palavras-chave: liberdade religiosa. Poder Legislativo. doutrina. dogma. radicalismo religioso.

Sumário: Introdução; II – Estado Laico; III – Influência Religiosa Negativa; IV – Liberdade Religiosa nas Constituições Brasileiras; V – Origem Documental e Legal da Liberdade Religiosa; VI – Liberdade Religiosa no Panorama Nacional; VII – O Lobby na Elaboração de Leis; VIII – Soluções Dadas pelo Ordenamento Jurídico; Conclusão; Bibliografia.


INTRODUÇÃO

As religiões são norteadas por dogmas que, como o próprio nome indica, não evoluem, mas a sociedade sim. Desse modo, as religiões se veem obrigadas a abandonarem certas crenças, o que é natural e salutar, sob pena de se tornarem anacrônicas e ficarem à margem da lei.

Ocorre que dentro das religiões há certos líderes que não aceitam isso e se tornam radicais, mas que, ainda assim, conseguem angariar seguidores que compartilham do mesmo entendimento.

Essa “ala” radical, quando no poder, tende a impor suas crenças que, muitas das vezes, não são mais aceitas e praticadas dentro da própria doutrina, quanto menos pela sociedade.

Dentro desse contexto é que surge a tentativa de “imposição doutrinária” na condução da sociedade, tentando-se alcançar cargos de poder para tanto, especialmente o poder legislativo, o qual tem a função de impor condutas.

Essa função se evidencia através da lei, que deve encontrar ressonância na Constituição Federal, a qual, por sua vez, assegura, no título referente aos direitos e garantias fundamentais, artigo 5º, inciso VI, que a todos são assegurados a liberdade de consciência e de crença.

O artigo 19º, inciso I, desse mesmo diploma legal, prevê que é vedado ao poder público estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança.

A doutrina pátria encontra nesses dispositivos a clarividência de que o Estado Brasileiro é laico, isto é, não adota nenhuma religião oficial.

Assim, a princípio, convicções religiosos ou de cunho religioso, caso sejam utilizadas para motivar a elaboração de leis, poderiam ferir a liberdade constitucional de crença.

Nesse sentido, esta pesquisa objetivará analisar projetos de lei, leis e alterações legislativas a fim de identificar eventual violação à condição de Estado laico prevista na Constituição Federal.

A presente pesquisa avulta de importância quando se tem em vista as discussões recentes de temas como “cura gay” e “bolsa estupro”, que se ligam, umbilicalmente, à religião.

A influência das crenças, experiências e vicissitudes humanas na elaboração de leis sempre existirá e, aliás, enriquece a lei de conteúdo humano.

No entanto, a lei elaborada pelo legislador não deve vir carregada com crenças dogmáticas, cegas, que se abstêm de dialogar com outros conhecimentos de mundo e acaba por não atender aos anseios sociais.

Isso porque, em um Estado não-confessional, como não poderia deixar de ser, existem inúmeros indivíduos com crenças diferentes e, até mesmo, aqueles descrentes, logo, lei imbuída de dogmas religiosos radicais não será amplamente aceita socialmente e, em última instância, pode se tornar violadora de direitos e garantias fundamentais.


II – ESTADO LAICO

Roberto Romano, professor de Ética e Filosofia Política na Universidade de Campinas – UNICAMP, explica que o “termo “laico” tem origem na palavra laos, que significa o povo, o leigo, quem não tinha condições de ser autônomo”. Mais adiante ele arremata: “laicismo significa exatamente o sinônimo de democracia” (DINIZ, 2013).

Em outras palavras, Estado laico é aquele que não possui religião oficial. Antes, contudo, de se adentrar no caso brasileiro, que é, formalmente, laico. Citam-se, a título de comparação, países que são confessionais, isto é, laicos.

Dos países que adotam religião oficial, os mais notáveis são os países do oriente médio, que adotam o islamismo como religião oficial, entre eles: Irã, Iraque, Afeganistão e Paquistão.

Curiosamente, na Síria, não há religião oficial, mas exige-se que o chefe de Estado seja seguidor do Islão. Na Argentina, a Igreja Católica recebe amparo e subvenção do Estado, no entanto, o Catolicismo não é adotado como religião oficial (Wikipédia, 2007).

O Brasil, por sua vez, trata-se de Estado laico ou não confessional, nos termos do artigo 5º, inciso VI, e do artigo 19º, inciso I, da Constituição Federal de 1988.

Embora a condição de Estado Laico não seja recente, nem sempre foi assim. O Brasil se tornou não confessional, oficialmente, com o Decreto n.º 119-A de 07 de janeiro de 1890 de autoria de Ruy Barbosa. Até então, o Brasil adotava o Catolicismo Romano como religião oficial (LAFER, 2009).

A primeira Constituição brasileira, a de 1824, trouxe em seu artigo 5º a seguinte previsão: “A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo” (Portal da Legislação, 2014).

A bem da verdade, o Brasil jamais impediu a liberdade de crença, como ocorre, ainda nos dias de hoje, em alguns países, que se valem do aparelhamento estatal para perseguir fiéis de outras religiões.

No entanto, os cultos de outras religiões somente podiam ser realizados no âmbito dos lares. Veja bem, podiam, sim, ser realizados, não era prática clandestina, contudo, não havia liberdade.


III – INFLUÊNCIA RELIGIOSA NEGATIVA

O Poder legislativo, ao lado do Poder Executivo, é o que possui maior legitimidade social, já que seus membros são escolhidos pelos cidadãos através do voto. Assim, toda lei vigente é, em tese, lei querida pelos cidadãos.

 Não é por outra razão que se deve seguir os ditames legais na condução da vida, sob pena de punição, pois, se há descumprimento da lei, descumpre-se, consequentemente, a vontade social.

O Poder Judiciário, se, por um lado, não detém membros eleitos pelos cidadãos, por outro lado, possui os mais competentes, que ocupam seus cargos após passarem por concurso público.

A função desse poder é pacificar, através do processo, conflitos sociais eventualmente gerados, dizendo o direito ao caso concreto.

Nada mais natural que o juiz, ao decidir o caso concreto, proferindo decisão, opte por condenar ou não, fundando-se não apenas na lei, como, também, em seu conhecimento pessoal, em suas vivências e, inclusive, em suas crenças.

Nota-se, então, a influência, sobretudo do Poder Legislativo e do Judiciário, na condução da sociedade.

Isso porque, se lei inconstitucional entrar em vigor, todos devem obediência a ela até que seja retirada, formalmente, do ordenamento jurídico. Essa retirada, em regra, se dará com efeitos retroativos, de modo que, eventuais relações sob sua batuta devem ser nulificadas.

Não obstante, isso nem sempre será suficiente para evitar prejuízos ou repará-los.

Do lado do poder judiciário, o juiz detém o poder de decidir o caso concreto, mas, claro, sem se afastar das determinações legais. Porém, o juiz sempre goza de certa margem de discricionariedade, ainda que alguns a neguem, pois, no fundo, a escolha entre aplicar esta ou aquela solução ao caso concreto é exclusivamente sua, desde que fundamentada.

O ponto nevrálgico da questão é que legisladores e julgadores não devem se valer de dogmas religiosos, isto é, crença cega para legislar e julgar.

Caso exemplar era o projeto de lei da “Cura Gay”, PDL 234/11, proposto pelo Deputado João Campos (PSDB-GO). O Projeto visava, meramente, sustar dispositivos de Resolução do Conselho de Psicologia, para que os homossexuais pudessem ser tratados por psicólogos (FOREQUE, Flávia; FALCÃO, Márcio, 2013).

Ocorre que, como é sabido, o tratamento psicológico para facilitar a aceitação da sexualidade existe e é muito difundido, o que não se deve é levar isso para o lado patológico, pois, há mais de duas décadas, opção sexual deixou de ser considerada doença. Além disso, não se trata de “curar”, mas sim, facilitar a aceitação.

Então, projeto de lei nesse sentido é inócuo e inconstitucional, pois se trata de texto calcado em mera crença radical, constante na Bíblia (romanos, capítulo 1, versículo 27)[1], em completo desvencilhamento da realidade social, psicológica e científica, ou seja, nada mais é que doutrinar (fim particular) através da lei (fim público).

A laicidade do Estado também é vulnerada no projeto que cria o Estatuto do Nascituro, apelidado de “Bolsa Estupro”, já que em seu texto prevê bolsa-auxílio de três meses a mulheres que engravidarem em decorrência de estupro e optarem por não realizar o aborto (G1, 2013).

O viés religioso radical do projeto acima é claro, porquanto privilegia a perpetuação do sofrimento, do trauma e da dor da vítima de estupro, em função da crença cega de que vida é divina e não cabe a nenhum ser-humano decidir sobre ela.

Seria mais humano e democrático se o projeto destinasse recursos para tratar o psicológico das vítimas de estupro, e não viciar sua liberdade de escolha por meio de promessa financeira.

Os projetos mencionados não foram aprovados, fazendo valer a força da maioria, como deve mesmo ser em um Estado Democrático de Direito. Não obstante, a mera existência desses projetos já é temerária, pois evidencia o uso, por alguns legisladores da “ala” religiosa radical, de seus poderes para legislar em favor de sua crença, e não no interesse da nação, tencionando à violação da Constituição Federal.


IV – LIBERDADE RELIGIOSA NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

IV.I – CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1824

A primeira Constituição brasileira, a de 1824, trouxe em seu artigo 5º a seguinte previsão: “A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo” (Portal da Legislação, 2014).

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IV.II - CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1891

O artigo 2º dispunha sobre a ampla liberdade de culto, enquanto os artigos 3º e 5º estabeleciam a liberdade de organização religiosa, sem a intervenção do poder público. Além disso, não há menção a Deus no preâmbulo (TERAOKA, Thiago Massao Cortizo, 2010).

Portanto, não obstante o Decreto n.º 119-A, de 07 de janeiro de 1890 ter sido o fato gerador da separação definitiva entre Estado e Igreja Católica, a constitucionalização disso ocorre com esta Constituição de 1891, tornado a liberdade religiosa direito fundamental.

IV.III - CONSTITUIÇÃO DE REPÚBLICA DE 1934

No preâmbulo há menção a Deus, sem prejuízo de se encontrar inserta no texto constitucional a liberdade de culto, desde que não contrariasse a ordem pública e os bons costumes.

IV.IV - CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1937

Sem menção a Deus no preâmbulo, manteve a liberdade de culto, nos seguintes termos: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...) b) estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos” (Portal da Legislação, 2014).

IV.V – CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1946

Diferentemente de sua predecessora, há menção à proteção de Deus no preâmbulo. No entanto, continua a assegurar a liberdade de culto.

A Constituição de 1946 trouxe algumas novidades atinentes à liberdade de culto, como a previsão do ensino religioso facultativo, a possibilidade de efeitos civis no casamento religioso, imunidade tributária e a escusa de consciência (vedação à perda dos direitos políticos, no caso de recusa, por convicção religiosa, de cumprir encargo ou serviço a todos imposto) (Portal da Legislação, 2014).

IV.VI – CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1967-69

A Constituição em foco também fez alusão à proteção de Deus no seu preâmbulo.

De modo inédito, previu a colaboração entre o Estado e as organizações religiosas, no interesse público, como assistência, saúde e educação.

Os demais dispositivos constitucionais são similares ao da Constituição de 1946, mantendo a proibição do Estado estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos (Portal da Legislação, 2014).

IV.VII – CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988

Esta Constituição faz menção à proteção de Deus no preâmbulo, prevê a escusa de consciência, bem como a proibição de estabelecer, subvencionar ou embaraçar o funcionamento de cultos religiosos ou igrejas (art. 19, inciso I, da CR/88).

A Constituição da República de 1988 mantém os direitos referentes à liberdade religiosa previstos originariamente na Constituição de 1946, como a imunidade dos templos de qualquer culto, no tocante aos impostos (art. 150, inciso VI, alínea “b”, da CR/88).

O seu artigo 5º, inciso VI, dispõe ser inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias (VADE MECUM, 2014).


V – ORIGEM DOCUMENTAL E LEGAL DA LIBERDADE RELIGIOSA

O direito à liberdade religiosa foi prevista em lei, pela primeira vez, na Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia em 1976, com o seguinte teor: “todos os homens têm igual direito ao livre exercício da religião com os ditames da consciência” (SILVA, 2000, p.158).

Posteriormente, em 1787, a Constituição dos Estados Unidos da América foi aprovada, na Convenção da Filadélfia. Algumas colônias, na época, reivindicaram a inserção de uma carta de direitos, nascendo, assim, as dez emendas da Constituição, que foram aprovadas em 1791 (SILVA, 2000, p. 158).

A primeira emenda era justamente a liberdade de religião e culto. Dessa forma, torna-se a liberdade religiosa direito constitucional. Segue o texto da primeira emenda:

“Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de palavra ou de imprensa; ou o direito do povo de reunir-se pacificamente, ou de petição ao governo para a reparação de seus agravos”(MPSC,2003)[2].

Portanto, a origem da liberdade religiosa como direito fundamental, contida em um “bill of rigths”, é norte americana, o que influenciou diversas constituições posteriores.

Contudo, a primeira notícia que se tem de previsão da liberdade religiosa em documento remonta ao Império Máuria da Índia, no século III A.C., escrito por Asoka, no que se nominou “Éditos de Asoka” (FUNDAÇÃO AIS, 2010).


VI – A LIBERDADE RELIGIOSA NO PANORAMA NACIONAL

A liberdade religiosa é de tamanha importância para nossa sociedade, que foi erigida pelo direito à condição de cláusula pétrea, porquanto se encontra prevista no Título Dos Direitos e Garantias Fundamentais, que, conforme artigo 60, §4º, inciso IV, da Constituição da República de 1988, não poderá ser objeto de emenda que tencione abolir os direitos aí contidos.

Imperioso aludir que a organização religiosa é uma espécie de associação, embora esteja prevista em dispositivo próprio, a par das associações, no Código Civil Brasileiro de 2002, em seu artigo 44, a seguir transcrito:

“Art. 44. São pessoas jurídicas de direito privado:

I – as associações;

II – as sociedade;

III – as fundações;

IV – as organizações religiosas;

V – os partidos políticos;

VI – as empresas individuais de responsabilidade limitada.

§1º São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento.”

À luz da tradicional técnica de hermenêutica jurídica de que “o legislador não escreve palavras inúteis”, é forçoso reconhecer que as entidades religiosas possuem peculiaridades em relação às meras associações, como demonstra o parágrafo primeiro, cuja redação foi dada pela Lei 10.825/2003, em que fica evidenciado maior liberdade para as organizações religiosas se organizarem e se estruturarem, não devendo obrigatoriedade aos artigos 53 a 61 do Código Civil Brasileiro.

No entanto, essa liberdade não é absoluta, pois, como é sabido, não existe direito absoluto no ordenamento jurídico vigente, e a expressão mais evidente disso é o dever de se negar registro às pessoas jurídicas, entre elas, as organizações religiosas, quando contrárias à ordem pública, à moral e aos bons costumes.

O Decreto-Lei n.º 9.085/1946, que continua em vigor, assim como a Lei 6.015/1973 (Lei dos Registros Públicos), que possuem dispositivos praticamente idênticos, dispõem em seus artigos 2º e 115º, respectivamente, o seguinte:

“Não poderão ser registrados os atos constitutivos de pessoas jurídicas, quando seu objeto ou circunstância relevante indique destino ou atividade ilícitos ou contrários, nocivos ou perigosos ao bem público, à segurança do Estado e da coletividade, à ordem pública ou social, à moral e aos bons costumes” (VADE MECUM, 2014).

Não obstante, a análise do objeto ou circunstância relevante das organizações religiosas a fim de se identificar eventual contrariedade ao ordenamento jurídico nunca será fácil, pois, mesmo entidades religiosas que, a uma análise superficial, denota incompatibilidade, o estudo de seus estatutos e práticas acaba por revelar realidade diametralmente oposta. Exemplo é o caso do vampirismo[3], que se trata de crença no sobrenatural, assemelhando-se ao Espiritismo, e não a prática de sugar sangue até a morte da vítima, como poderia se pensar.

Por outro lado, dentro da própria Igreja Católica, esta amplamente aceita e praticada, existe, a título de exemplo, o “Opus Dei” (Obra de Deus), que prega a mortificação corporal (por exemplo, o uso de cilício na coxa – espécie de instrumento de tortura com pontas metálicas que machucam a pele).

 O seu próprio fundador, São Josemaría Escrivá de Balaguer, fazia apologia à dor, aduzindo: “Amada seja a dor”. “Santificada seja a Dor”. “Glorificada seja a dor” (WHITNEY, Mike, 2004).

Isso, sem sombra de dúvida, é imoral e contrário aos nossos costumes. No entanto, desde mil novecentos e cinquenta e sete (1957), o “Opus Dei” se encontra em atividade no Brasil, tendo como sede Marília, no estado de São Paulo, contando, em 2006, com mais 1.700 fiéis (OPUS DEI, 2006).

Caso real de como é difícil compatibilizar a garantia à liberdade religiosa com certas peculiaridades de algumas doutrinas, é a celeuma que se deu entre o Brasil e a religião Watchtower Bible and Tract Society, que proíbe o exercício de deveres cívicos, como prestação de serviço militar e voto.

Isso, obviamente, gerou conflito entre o Estado brasileiro e a doutrina referida, pois aquele entendia que as atividades exercidas pela doutrina Watchtower eram ilícitas, nitidamente anárquicas.

Não obstante, essa organização religiosa conseguiu o seu registro no território brasileiro, o que levou o Poder Executivo a suspender-lhe o funcionamento por seis meses, conforme permissivo do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 9.085/1946.

O deslinde, contudo, é que essa organização religiosa teve os direitos de liberdade de crença e culto reconhecidos, por conseguinte, todos os seus membros obtiveram a faculdade de propor “objeção de consciência” contra certos deveres cívicos a todos imposto (MORTE SÚBITA, 2014).

Assim, verifica-se que a própria liberdade religiosa, que, alhures afirmado, não é absoluta, já gera substanciais controvérsias. A par disso, membros das mais diversas doutrinas religiosas, quer sejam admitidas ou não, modernas ou clássicas, radicais ou tolerante, uma vez no poder, não devem colocar suas crenças acima do interesse público.

Isto é, não podem aproveitar sua posição de poder para subjugar a sociedade, realizando verdadeira imposição doutrinária por meio da lei, desvirtuando, por completo, a finalidade da lei que é atender aos fins sociais e às exigências do bem comum (Art. 5º, da LINDB).

Isso quer dizer que, até mesmo pela liberdade de crença, cada um pode crer no que bem entender, apenas não se pode nem deve impor isso aos seus pares através de edição de “lei doutrinária”.

O Estado, enquanto democrático, estabelece o diálogo e a liberdade como norte, e a lei como meio de manter a sociedade sob certo controle. Se a lei é viciada e a Constituição prevê que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5º, inciso II, da Constituição Federal), a sociedade se verá obrigada a respeitá-la e cumpri-la, o que se traduziria em verdadeira imposição doutrinária, em detrimento do direito fundamental à liberdade de crença.

Portanto, bancada religiosa no Congresso é a evidenciação do Estado Democrático através da participação de todos os setores, inclusive favorece à liberdade de crença.

Por outro lado, valer-se disso para doutrinar a sociedade, ou seja, confeccionar leis calcadas no que certa doutrina crê, sem outros parâmetros (sociais, psicológicos e científicos), acaba por violar, em verdadeiro ciclo vicioso, a própria liberdade de crença.

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Sobre o autor
Renato Mendonça Cardoso

Oficial de Registro de Títulos e Documentos e Civil das Pessoas Jurídicas - Formado pela Universidade de Patos de Minas/MG - Pós-Graduado em Direito Notarial e Registral, e Pós-Graduando em Direito Administrativo e Civil pela Universidade Anhanguera-Uniderp (Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes-LFG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Renato Mendonça. Radicalismo religioso no Poder legislativo e a liberdade religiosa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4164, 25 nov. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30553. Acesso em: 23 dez. 2024.

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