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Responsabilidade civil pela perda de uma chance:

compatibilidade com o sistema jurídico brasileiro e sua aplicabilidade

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04/08/2014 às 14:18
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4        A RESPONSABILIDADE PELA PERDA DE UMA CHANCE NO DIREITO BRASILEIRO

Rafael Pateffi da Silva (2009) realizou um estudo aprofundado acerca da teoria da perda de uma chance e constatou que sua utilização, no Brasil, teve origem no Rio Grande do Sul, devendo-se o pioneirismo à ocorrência de uma palestra proferida pelo professor François Chabas, na década de 90, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Atualmente, a jurisprudência brasileira apresentou grande evolução quanto ao reconhecimento da responsabilidade civil pela perda de uma chance. Há uma quantidade grande de julgados nos tribunais estaduais e cerca de quinze, aproximadamente, no Superior Tribunal de Justiça. (carnaúba, 2012, p. 140-141).

Contudo, ainda não restou pacificada a questão da classificação da teoria, no que tange sua natureza jurídica. Ela ora é vista como uma espécie de lucro cessante, ora como dano emergente e, até mesmo, como um dano moral ou um meio termo entre as espécies já existentes.

Cabe agora, analisar, com maior profundidade, a situação em que se encontra a teoria no direito brasileiro, tendo por base a adequação dessa ao ordenamento jurídico do país. É relevante, também, observar o posicionamento da doutrina e da jurisprudência, que vem contribuindo para direcionar a utilização da teoria ao longo do tempo.

4.1  Regulamentação jurídica e adequação da teoria no ordenamento jurídico brasileiro

O ordenamento jurídico pátrio não prevê, expressamente e de maneira específica, a reparação da perda de chances. Cabe, então, à doutrina e à jurisprudência delimitar os contornos de sua incidência no mundo jurídico. Contudo, a partir de uma análise mais atenta tanto do Código Civil de 2002, quanto da Constituição Federal, é possível verificar a clara aplicabilidade da teoria no âmbito do ordenamento brasileiro.

Os Arts. 186 e 927 do CC/02 traduzem a possibilidade de reparação de qualquer situação de dano, seja material ou moral. Além disso, o Art. 402 do CC/02 apresenta o princípio da reparação integral dos danos, o que contribui para reforçar a admissibilidade da teoria. Assim, o princípio da reparação total do dano visa alcançar, novamente, o equilíbrio desfeito com o dano gerado, retornando-se ao status quo ante, sempre que possível.

Torna-se, ainda, essencial atentar-se para a cláusula geral de responsabilidade prevista na Constituição Federal, disposta em seu Art. 5°, V. Dessa previsão constitucional, conclui-se que quem causar qualquer dano a outrem deve repará-lo proporcionalmente.

Outrossim, Sérgio Savi (2006) acrescenta que a aplicação da teoria não infringiria o Art. 403, CC/02. Tal dispositivo ressalta que se deve afastar os danos hipotéticos, o que se aproxima, nitidamente, da teoria, pois ela também estabelece limitações acerca dos danos passíveis de reparação, à medida que exige que a chance seja séria e real.

Ressalte-se que, como já foi mencionado ao longo do trabalho, a certeza do dano mostra-se no fato de que uma chance fora perdida. E é isso que será objeto de indenização.

Rafael Peteffi da Silva (2009) assevera, ainda, que, com o progresso da estatística, situações meramente aleatórias poderão apresentar maior concretude, possibilitando a quantificação do prejuízo e posterior reparação.

Sendo assim, diferentemente do Código Civil anterior, de 1916, que, em seus Arts. 159, 1536 e 1538, enumerava restritivamente os bens protegidos pelo instituto da responsabilidade civil, o atual Código Civil não apresenta nenhum entrave ao reconhecimento da reparação pela perda de chances. É necessário, apenas, que vítima preencha os requisitos clássicos para caracterização da responsabilidade civil, quais sejam: conduta, dano, nexo de causalidade e nexo de imputação. Resta, ainda, indispensável que a vítima tenha demonstrado que a chance perdida é real e séria.

Dessa forma, o dano decorrente da perda de uma chance mostra-se, visivelmente, abrangido pela cláusula geral de responsabilidade. O dispositivo legal que abarca tal conceito de dano é consideravelmente amplo, abrangendo todas as espécies de danos, devendo, portanto, englobar também a perda de uma chance.

4.2  Posicionamento da doutrina

A responsabilidade pela perda de uma chance tem sido tema bastante recorrente na atualidade, tendo recebido destaque ao longo dos anos. Contudo, não se verificam estudos muito aprofundados acerca do tema, com exceção de poucos autores, que se debruçaram para analisar a fundo a aplicabilidade da teoria, contribuindo para a melhor definição dos conceitos envolvidos.

Dentre esses autores, pode-se citar Rafael Peteffi da Silva (2009), com sua dissertação de mestrado, e Sérgio Savi (2006). Quanto aos outros doutrinadores que vem se referindo ao tema, notam-se breves comentários sobre o assunto em suas obras sobre responsabilidade civil. Entretanto, mesmo que analisada de forma superficial, observa-se uma grande aceitação da teoria, tanto por parte de autores clássicos, quanto por parte dos contemporâneos.

Quanto aos autores clássicos, importa analisar o posicionamento de Agostinho Alvim, Aguiar Dias, Carvalho Santos, Caio Mário (2002) e Miguel Maria de Serpa Lopes (2000). Em relação aos autores contemporâneos, que se expressaram a respeito do tema, pode-se apresentar as opiniões de Judith Martins-Costa (2003), Silvio Venosa (2003), Sérgio Novais Dias, Rafael Peteffi da Silva (2009), Sérgio Cavalieri (2010), Flávio Tartuce (2012) e Rui Stoco (2004).

Agostinho Alvim apreciou a questão da perda de uma chance tanto no âmbito da responsabilidade do advogado, quanto no caso de um concurso de animais. Em ambas as situações, constata-se que houve o acolhimento da teoria por parte do jurista. Na primeira situação, o autor considera que há um dano diverso da perda da causa judicial, consistente na perda da chance de reexame da matéria pelo tribunal. No segundo contexto, Alvim reconhece o valor patrimonial da chance perdida pelo candidato a participar do concurso. (ALVIM apud SAVI, 2006, p. 36-37).

José de Aguiar Dias parece reconhecer a aplicabilidade da teoria, porém atrelando a perda de uma chance a uma espécie de lucros cessantes, analisando também sua ocorrência no âmbito da responsabilização do advogado. O autor também reconhece a perda da oportunidade de ver a demanda julgada por instância superior como a perda de um direito, o que se pode afirmar a partir de um trecho de sua crítica a uma sentença proferida: “Mas, o dano na espécie, era a perda de um direito, o de ver a causa julgada na instância superior. Se a vitória não podia ser afirmada, também o insucesso não o podia” (DIAS apud SAVI, 2006, p. 40).

 O referido autor, portanto, admite a indenização da chance perdida, deparando-se, porém, com dificuldades para quantificar o dano. Isso ocorre, tendo em vista a inserção da perda de uma chance na categoria de lucros cessantes, esbarrando, assim, no requisito de certeza do dano.

Carvalho Santos também concebe a perda de uma chance como algo atrelado a lucros cessantes e, ao fazer isso, inviabiliza a pretensão de indenização da perda de uma chance por si só considerada. Ele pondera ser necessária a prova de que o recurso judicial, se interposto, seria provido, por reputar duvidoso o direito de se exigir qualquer indenização nesses casos. Assim, o autor não vislumbra um dano consistente na perda da oportunidade de obter o recurso analisado por instância superior. (SANTOS apud SAVI, 2006, p. 39).

Contudo, deve-se ressaltar que, se realmente fosse possível a produção desse tipo de prova, visualizar-se-ia um caso de lucros cessantes, devendo o advogado arcar com o pagamento de tudo aquilo que seu cliente teria direito, caso o recurso fosse provido. No entanto, como já fora mencionado o objeto da indenização não é o resultado final, mas sim a perda da possibilidade de ter o recurso apreciado pelos tribunais.

Enquanto isso, Caio Mário (2002, p. 42) e Serpa Lopes (2000, p. 391) apresentam posicionamento favorável à aplicação da teoria, exigindo, contudo, para sua caracterização, a existência de uma probabilidade suficiente e o seu enquadramento como uma chance séria e real.

Judith Martins-Costa mostra-se adepta à indenização por perda de chances, elucidando isso em um importante comentário acerca da matéria:

Embora a realização da chance nunca seja certa, a perda da chance pode ser certa. Por estes motivos, não vemos óbice à aplicação criteriosa da Teoria. O que o art. 403 afasta é o dano meramente hipotético, mas se a vítima provar a adequação do nexo causal entre a ação culposa e ilícita do lesante e o dano sofrido (a perda da probabilidade séria e real), configurados estarão os pressupostos do dever de indenizar. (MARTINS-COSTA, 2003, p. 362).

Sílvio de Salvo Venosa, por sua vez, considera a perda da chance como um terceiro gênero de indenização, estando ele entre o dano emergente e o lucro cessante. Para ele, havendo probabilidade considerável, o dano poderá ser ressarcível. (VENOSA, 2003, p. 198-199).

Entretanto, Sérgio Novais Dias não reconhece o valor da chance em si considerada, tratando-a como uma espécie de lucro cessante. Ele considera exigível, assim, a certeza de que o recurso seria provido no casos que envolvem perda de prazos por advogados. (NOVAIS apud SAVI, 2006, p. 42).

Rafael Peteffi (2009) enxerga a responsabilidade pela perda de uma chance sob dois prismas: sendo utilizada como uma categoria de dano específico, independente do dano final ou sendo utilizada como um recurso à causalidade parcial, caso em que se visualiza a perda da vantagem esperada, ou seja, o dano final.

Sérgio Cavalieri (2010) considera a perda de uma chance como dano passível de indenização, contudo, afirma que o melhor posicionamento doutrinário é aquele que se respalda na possibilidade de indenizar a perda cuja probabilidade de sucesso fosse superior a cinquenta por cento. Logo, ele conclui que nem todos os casos de perda de uma chance seriam indenizáveis.

Deve-se atentar, também, para o fato de que o autor esclarece que se há erro médico que provoque, desde a origem, o fato de que decorre o dano, visualizar-se-ia caso de dano diretamente causado pelo médico e não de perda de uma chance. (CAVALIERI, 2010, p. 81).

Tal autor afirma que a perda de uma chance guarda certa relação com o lucro cessante, visto que é utilizada nos casos em que o ato ilícito retira da vítima a oportunidade de alcançar situação futura melhor.

Ele ressalta a importância de se basear em um fato não hipotético, um fato razoável, afastando-se, pois, de uma mera possibilidade aleatória e da eventualidade. Deve-se, assim, evitar que a teoria da perda de uma chance favoreça oportunismos. A chance perdida poderá resultar em prejuízos tanto materiais, quanto imateriais, desde que seja séria e real.

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Rui Stoco (2004), todavia, mostra-se contrário à tese, reputando inaceitável a responsabilização de um sujeito por um fato que não ocorreu, o que seria, pois, algo hipotético. Ele acredita que a perda de uma chance geraria a reparação pelo resultado. Dessa forma, por acreditar que é impossível se perquirir a íntima convicção do juiz, não se deve sustentar a perda de uma chance nas situações em que o causídico deixa de recorrer. (STOCO, 2004, p. 489-490).

Assim como o último autor, Flávio Tartuce (2012) manifestou-se a respeito da questão, negando a aplicabilidade da teoria. Ele acredita ser a perda de uma chance algo hipotético e eventual, ao trabalhar sempre com suposições. Contudo, ele não descarta a possibilidade de, futuramente, mudar seu entendimento.  

Para melhor exprimir o posicionamento de Tartuce, torna-se válida a citação de um trecho de sua obra:

Isso porque tais danos seriam hipotéticos ou eventuais, sendo certo que os arts. 186 e 403 do CC exigem o dano presente e efetivo. A perda de uma chance, na verdade, trabalha com suposições, com o “se”. [...] Todavia, temos acompanhado as manifestações doutrinárias e jurisprudenciais e, no futuro, pode ser que esse parecer seja alterado. É importante salientar que a evolução de consciência da civilística nacional conduz à admissão desses novos danos reparáveis, antes não admitidos. (TARTUCE, 2012, p. 425).

Diante das colocações apresentadas, pode-se concluir que há uma ampla aceitação por parte da doutrina brasileira quanto ao reconhecimento da perda de uma chance como um dano ressarcível, apesar de se verificar algumas posições divergentes acerca de sua natureza jurídica. A maioria dos doutrinadores se baseiam no pilar da limitação da técnica, devendo, portanto, ser a chance séria e real. Contudo, alguns poucos juristas ainda vêm se mostrando resistentes à adoção da teoria.           

4.3  Posicionamento da jurisprudência

A maioria da jurisprudência brasileira vem reconhecendo a possibilidade de indenização pela perda de uma chance. Contudo, é possível verificar ainda muitos equívocos nas decisões proferidas por parte de juízes e tribunais.

É recorrente observar a aplicação da teoria de forma inadequada, principalmente, no que tange ao estabelecimento do quantum indenizatório. Ocorre, também, muitos casos em que há a vulgarização da teoria, aplicando-a em situações cujo dano seria meramente hipotético.

Mesmo após décadas de seu surgimento no Brasil, verifica-se uma grave confusão entre os conceitos: indenização por conta da perda da vantagem e indenização pela perda da oportunidade de obter uma vantagem ou evitar um prejuízo. Apenas a última hipótese caracteriza a teoria da perda de uma chance. Ou seja, objetiva-se indenizar a chance perdida e não a própria vantagem esperada.

Deve-se ressaltar que, tendo em vista que o que se indeniza é a possibilidade de atingir um resultado esperado, o valor da indenização deverá ser menor que o valor da vantagem esperada. A incerteza acaba por interferir, então, no campo da mensuração do quantum indenizatório. Sendo assim, quanto maior a chance de se alcançar o resultado esperado, maior a indenização cabível ao prejudicado.

Ademais, os tribunais não enfrentam apenas a dificuldade de estabelecer o quantum debeatur. Muita confusão é gerada também em torno do fato de se acreditar que a única forma de manifestação da teoria estaria ligada aos danos morais. Vale atentar para o fato de que a natureza do “dano chance perdida” será a mesma do “dano vantagem esperada”.

Observa-se uma séria dificuldade em se estabelecer certos conceitos. Em alguns julgados, a chance perdida é vista como uma modalidade de dano moral, em outros casos, ela é reconhecida como lucros cessantes e, ainda, pode ser considerada uma espécie de dano emergente. (SAVI, 2006, p. 44).

Contudo, apesar dos equívocos apresentados na tentativa de se aplicar a teoria da perda de uma chance, é satisfatório observar o quão ela vem se alargando no âmbito da jurisprudência. Atualmente, essa teoria está sendo empregada em diversas áreas como: no campo trabalhista, no meio médico, nos casos que envolvem a atuação do advogado, entre outros.

Nesse sentido, resta válido transcrever a ementa de determinados julgados, com o objetivo de demonstrar com maior clareza a aplicação da teoria. Deverão, ainda, ser apresentadas decisões adotando entendimentos acerca da natureza jurídica, visando, assim, explicitar as divergências e equívocos que vêm surgindo por parte de juízes e tribunais.

No que tange a aplicação da perda de uma chance como uma modalidade de dano moral, vale citar um julgado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:

MANDATO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO. INDENIZAÇÃO POR DANOS CAUSADOS EM VIRTUDE DE PERDA DE PRAZO. DANOS MORAIS JULGADOS PROCEDENTES. A responsabilidade do advogado é contratual e decorre do mandato. Erros crassos como perda de prazo para contestar, recorrer, fazer preparo do recurso ou pleitear alguma diligência importante são evidenciáveis objetivamente. Conjunto probatório contrário à tese do Apelante. É certo que o fato de ter o advogado perdido a oportunidade de recorrer em consequência da perda do prazo caracteriza negligência profissional. Da análise quanto à existência de nexo de causalidade entre a conduta do Apelante e o resultado prejudicial à Apelada resta evidente que a parte autora da ação teve cerceado o seu direito de ver apreciado o seu recurso à sentença que julgou procedente a reclamação trabalhista, pelo ato de seu mandatário, o qual se comprometera ao seu fiel cumprimento, inserido que está, no elenco de deveres e obrigações do advogado, aquele que interpor o recurso à sentença contra qual irresignou-se o mandante. Houve para Apelada a perda de uma chance, e nisso reside o seu prejuízo. Estabelecidas a certeza e de que houve negligência do mandatário, o nexo de causalidade e estabelecido o resultado prejudicial, demonstrado está o dano moral. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO. (RIO DE JANEIRO, 2003).

Outro interessante caso que envolve a natureza de dano moral foi apresentado e comentado por Sérgio Savi (2006), em sua obra, de forma minuciosa. Trata-se da Apelação Cível n° 70003003845, julgada, em 2002, pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Nessa situação, o Autor formulou pedido de danos materiais e morais em face de uma empresa, que divulgou informações inverídicas a seu respeito, comprometendo, assim, na busca de um novo emprego por parte do Autor.

A sentença julgou procedente os pedidos do Autor, tanto no que tange aos danos materiais, quanto no que se refere aos danos morais. Contudo, houve a reforma da sentença, tendo o Tribunal reconhecido a perda de uma chance, indenizando somente com base em danos morais, excluindo, portanto, os danos materiais:

[...] Tenho que o maior prejuízo sofrido pelo autor foi a perda da chance de obter o emprego, ou seja, a possibilidade de concorrer com os demais candidatos em patamar de igualdade, com a mesma possibilidade de obter a vaga. No meu entender, tal prejuízo encontra-se na esfera dos danos morais, devendo ser levado em conta quando do arbitramento destes. Não vislumbro possibilidade de condenar a ré ao pagamento de salários que o autor perceberia caso conseguisse o emprego, pois tal fato não passa de presunção, não acompanhada da prova necessária para a condenação da empresa ré por danos materiais. (RIO GRANDE DO SUL, 2002).

A partir desse julgado, Sérgio Savi (2006) faz uma análise interessante da decisão que fora tomada pelo Tribunal, em virtude do fato de que poderia haver a possibilidade de se indenizar a perda de uma chance com base nos danos materiais. Savi (2006) menciona que de acordo com as provas produzidas nos autos, a decisão de primeira instância poderia estar correta, não necessitando ter-se provocado sua reforma.

Para o autor, poder-se-ia vislumbrar caso de lucros cessantes se a testemunha ouvida fosse a pessoa responsável pela contratação e se essa afirmasse que todas as provas realizadas pela parte autora já tinham sido superadas, restando as informações inverídicas como o único argumento para não contratação. Esse caso abrangeria a situação dos lucros cessantes, sendo que a sentença deveria condenar a título de danos materiais sobre o montante que o autor razoavelmente deixou de ganhar. (SAVI, 2006, p. 51).

Enquanto isso, se a pessoa responsável pela contratação afirmasse que as provas já haviam sido superadas pela parte autora, contudo, a vaga para o emprego estaria entre ela e um outro candidato, sendo que ainda haveria uma etapa de entrevistas e que só não fora ela chamada a participar por conta das informações inverídicas prestadas, configurar-se-ia caso de danos materiais por conta da perda de uma chance. Isso porque não se poderia dizer, ao certo, se a parte autora seria ou não contratada, havendo, no entanto, uma chance de, no mínimo, 50%, de a contratação ocorrer. Caberia, portanto, uma indenização com base em danos materiais, danos considerados emergentes e atrelados à perda de uma chance. (SAVI, 2006, p. 51).

Nesse sentido, pode-se perceber que muitos julgados vêm reconhecendo a perda de uma chance como uma modalidade de dano moral ou, até mesmo, exclusivamente, como um fator agregador do dano moral, ignorando seu caráter de dano material.

Vale ressaltar que uma conduta é capaz de ensejar até mais de uma espécie de dano. Dessa maneira, a perda de uma chance pode gerar um dano material e, ao mesmo tempo, representar um agregador do dano moral. Contudo, o que não pode ocorrer é a caracterização da perda de uma chance como um dano moral de maneira exclusiva. A perda de uma chance deve ser entendida como uma subespécie de dano material emergente.

Ademais, visualiza-se, muitas vezes, o uso inadequado da teoria no que tange ao quantum indenizatório, que, como já fora mencionado, não pode ser equivalente ao valor do resultado esperado. Como exemplo dessa inadequação, pode-se citar o Processo n° 0024800-07.2009.5.05.0651, julgado pela 2ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região, que realizou a indenização sobre o valor integral:

Transpondo tais ensinamentos ao caso concreto, penso, no entanto, que a chance de progressão funcional por merecimento era completamente garantida ao postulante.

[...]

Destarte, reformo a decisão hostilizada, para deferir o pedido “1” da inicial, condenando a reclamada a pagar o valor integral correspondente às diferenças salariais vencidas desde julho de 2004, e vincendas, em decorrência do salário correspondente ao cargo do reclamante com cinco progressões funcionais vindicadas [...]. [grifamos]. (BRASIL, 2010).

Em outros casos, observam-se decisões que ignoram a avaliação da chance como sendo séria e real. Como exemplo, pode-se citar a Apelação Cível n° 45.988-1, julgada pela 5ª Câmara Cível, que deixou de realizar o reexame das chances de êxito dos recursos em questão, não aferindo se haveria grande probabilidade de reforma da decisão, como se pode verificar a seguir:

RESPOSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO E APELAÇÕES INTERPOSTAS FORA DO PRAZO LEGAL. DESCUMPRIMENTO DO DEVER DE DILIGÊNCIA. PERDA DE PRAZOS. NÃO CONHECIMENTO DOS RECURSOS. DANO. EXISTÊNCIA. FORMA DE LIQUIDAÇÃO. AÇÃO PROCEDENTE. O advogado tem o dever de manifestar recurso ordinário oportuno tempore, respondendo por sua interposição intempestiva. A perda do prazo, como ensina José Aguiar Dias, “constitui erro grave, a respeito do qual não é possível escusa, uma vez que os prazos são de direito expresso e não se tolera que o advogado o ignore” (Da Responsabilidade Civil, vol.1, p. 348, Forense – 1987 – 8ª edição). O prejuízo da parte consiste na perda da possibilidade de ver apreciado o mérito da causa na instância superior. Não se configurando qualquer causa de exclusão da responsabilidade civil do advogado, impõe-se a procedência do pedido indenizatório, com fixação da indenização através de arbitramento em liquidação de sentença, levando-se em conta que o dano correspondente apenas à perda de uma chance. (PARANÁ, 1996).

Por outro lado, também se torna válida a apresentação de um julgado em que se pode identificar a correta aplicação da teoria. É o caso da decisão proferida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, nos autos do Processo n° 01533.2007.112.03.00.5, em que se trabalhou a reparação no campo da probabilidade séria e real, sendo o quantum indenizatório calculado com base na perda da oportunidade e não com base no ganho almejado:

RESPONSABILIDADE CIVIL. VANTAGEM SÉRIA E REAL PERDIDA PELO EMPREGADO EM DECORRÊNCIA DE ATO ILÍCITO DO EMPREGADOR. PERDA DE UMA CHANCE. DANO PATRIMONIAL INDENIZÁVEL. A teoria da responsabilidade civil pela perda de uma chance torna indenizável a probabilidade séria de obtenção de um resultado legitimamente esperado que é obstado por ato ilícito praticado por agente ofensor. Se o reclamante tinha como justa e real a probabilidade de um ganho salarial decorrente de sua promoção ao cargo de supervisor de vendas da reclamada, porque aprovado em processo seletivo interno da empresa, mas viu perdida a chance de conquistar esse resultado em razão de ato ilícito praticado pelo empregador, quando da sua dispensa, manifestamente abusiva e ilícita, faz jus à reparação patrimonial decorrente deste ilícito. E aqui, independentemente dos ganhos perdidos, o que se indeniza é o prejuízo consistente na perda dessa oportunidade, a perda da chance real de alcançar a promoção legitimamente esperada. (BRASIL, 2008).

Sendo assim, diante do exposto, é indiscutível que a teoria vem sendo difundida e empregada de forma gradativa na jurisprudência brasileira. Sua aceitação vem se ampliando consideravelmente a ponto de ser reputada como um posicionamento majoritário. Contudo, ainda há muito o que se aprimorar, pois, como se pôde observar, alguns julgados não se valem da aplicação adequada da teoria, cometendo grandes equívocos, resultantes da inobservância de certos conceitos básicos.

Em contrapartida, há julgados exemplares, que, acertadamente, aplicam a teoria, como é o caso do Recurso Especial n° 788.549 – BA, mais conhecido como o caso do “Show do Milhão”, que será, minuciosamente, discutido a seguir.

4.4  Caso do “Show do Milhão”

 O caso do “Show do Milhão” fora julgado pelo Superior Tribunal de Justiça em 8 de novembro de 2005. Ele retrata, claramente, a utilização da teoria da perda de uma chance, empregando-a de forma louvável e exemplar. Nesse acórdão, foram respeitados os limites e conceitos da técnica, alcançando-se uma indenização adequada.

O litígio versava sobre um programa de televisão chamado “Show do Milhão” e veiculado pela emissora “SBT”, em que o participante concorria a um prêmio equivalente a um milhão de reais em barras de ouro, ao responder de maneira correta as perguntas formuladas. Caso o participante logre êxito até a penúltima pergunta, ele terá acumulado o montante de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais).

Contudo, ao responder corretamente a penúltima pergunta, abrem-se duas alternativas ao participante, podendo ele optar por responder a última pergunta, conhecida como “a pergunta do milhão”, ou parar aonde chegou. É importante fazer menção ao fato de que a última pergunta pode ser lida e é dado ao participante alguns segundos para resolver qual alternativa ele irá escolher dentro dessas já mencionadas.

Nessa situação, se a última pergunta fosse respondida corretamente, o participante ganharia um milhão de reais. Entretanto, se ele errasse a questão, perderia tudo o que tinha acumulado durante o programa, recebendo somente uma quantia simbólica de trezentos reais. Já se o participante optasse por não responder, ele sairia do programa com o montante acumulado de quinhentos mil reais.

No caso em comento, a participante, autora da ação, havia chegado à “pergunta do milhão”, acumulando, até então, a quantia correspondente a R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), por ter obtido sucesso em todas as outras etapas. No entanto, ao ter acesso à última pergunta, que, ao seu ver, não tinha resposta, ela optou por parar e sair do programa com os quinhentos mil reais.

Contudo, ao sair do programa, inconformada com a pergunta formulada de má-fé pela produção, a participante ajuizou demanda requerendo indenização com base em danos materiais e danos morais. Quanto ao valor requerido por danos materiais, esse totalizava o montante de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), que seriam devidos, sob o argumento de que ela havia perdido a oportunidade de receber essa quantia, em virtude da conduta da ré. Enquanto isso, os danos morais, se reconhecidos, deveriam ser arbitrados pelo juiz.

A pergunta em questão tratava do percentual de terras que a Constituição Federal reconhecia aos índios no território brasileiro. Entretanto, é cediço que a Carta Magna não estabelece nenhum percentual fixo destinado aos índios, conforme se pode extrair da leitura do Art. 231 da CRFB/88: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. (BRASIL, 2013). Dessa forma, de fato, não haveria uma resposta concreta para a “pergunta do milhão” formulada pela produção do programa.

A ré alegou, em sua defesa, que, se a autora soubesse a área do território nacional e também conhecesse a quantidade de terras que os índios, tradicionalmente, ocupam, ter-se-ia como alcançar um percentual, nos termos do Art. 231 da CRFB/88. Todavia, não cabe razão à alegação feita pela ré, tendo em vista que a pergunta era clara ao se referir ao fato de que a Constituição Federal estabelecia um percentual fixo.

Ademais, mesmo que se conferisse ênfase à alegação da ré, ela não deveria prosperar pelo simples fato de que, até hoje, a União Federal não concluiu o processo de levantamento e demarcação das terras ocupadas pelos índios, havendo, ainda, muitas tribos desconhecidas. Esse, inclusive, foi um dos argumentos ressaltados na sentença.

O caso foi, então, julgado pelo juízo da 1ª Vara Especializada em Defesa do Consumidor de Salvador, resultando na procedência parcial dos pedidos da autora. O pedido de danos materiais no montante de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais) fora concedido, restando improcedente o pedido de danos morais.

A sentença acolheu a teoria da perda de uma chance, referindo-se a ela expressamente, apresentando, porém, um grande equívoco ao calcular a indenização de forma inadequada. O juízo de primeira instância reconheceu o pagamento no valor de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), ou seja, no montante equivalente ao resultado final esperado, caso a participante acertasse a “pergunta do milhão”.

Entretanto, conforme a devida aplicação da teoria, o ressarcimento pela perda da chance jamais pode ser igual ao resultado almejado, devendo sempre ser inferior a este. Sendo assim, o montante apropriado ao caso não poderia ser correspondente à quinhentos mil reais,  valor condizente à obtenção do ganho esperado.

Dessa forma, visando a impugnar a decisão proferida, a ré interpôs recurso de apelação. Mas, o Tribunal de Justiça da Bahia negou provimento ao recurso, mantendo, integralmente, a sentença. Como última medida, a ré interpôs Recurso Especial, remetendo a matéria ao Superior Tribunal de Justiça, alegando violação ao Art. 1.059 do Código Civil de 1916.

A parte ré alegou que a chance de a autora responder de forma correta a “pergunta do milhão”, caso essa houvesse sido formulada de maneira adequada, seria de apenas 25% (vinte e cinco por cento), baseando-se num critério puramente matemático, já que havia quatro alternativas de resposta.

O Ministro Relator do acórdão, Fernando Gonçalves, entendeu por bem acolher esse argumento formulado pela ré, ora recorrente, minorando a indenização. Dessa forma, o valor devido a título de ressarcimento passou a ser de R$ 125.000,00 (cento e vinte e cinco mil reais), pois esse seria correspondente ao percentual de chances atribuídas à parte autora no que se refere à pergunta formulada no programa. Isso afastaria o enriquecimento sem causa de uma parte em detrimento de outra.

Torna-se válido citar um trecho da decisão proferida pelo Ministro Fernando Gonçalves, tendo em vista a adequação à técnica evidenciada no acórdão prolatado:

Na hipótese dos autos, não há, dentro de um juízo de probabilidade, como se afirmar categoricamente – ainda que a recorrida tenha, até o momento em que surpreendida com uma pergunta, no dizer do acórdão, sem resposta, obtido desempenho brilhante no decorrer do concurso – que, caso fosse o questionamento final do programa formulado dentro de parâmetros regulares, considerando o curso normal dos eventos, seria razoável esperar que ela lograsse responder corretamente à “pergunta do milhão”.

[...] Falta, assim, pressuposto essencial à condenação da recorrente no pagamento da integralidade do valor que ganharia a recorrida, caso obtivesse êxito na pergunta final, qual seja, a certeza – ou a probabilidade objetiva – do acréscimo patrimonial apto a qualificar o lucro cessante.

[...]

A quantia sugerida pela recorrente (R$ 125.000,00 - cento e vinte e cinco mil reais) – equivalente a um quarto do valor em comento, por ser uma probabilidade matemática de acerto da questão de múltipla escolha com quatro itens, reflete as reais possibilidades de êxito da recorrida. (BRASIL, 2005).

Como se pôde observar, a decisão mostrou-se exemplar, aplicando a teoria da perda de uma chance de forma correta ao estabelecer uma indenização inferior à integralidade do valor correspondente ao que receberia a participante se houvesse acertado a “pergunta do milhão”. Reconheceu-se que, diante da má formulação da pergunta, realmente havia ocorrido um dano e que ele deveria ser indenizado, contudo, limitando-se esse ao percentual de chances de acerto da questão.

Vale atentar para o fato de que o acórdão reconheceu a aplicação da teoria no caso em que a chance de obtenção de êxito equivalia a menos de 50% (cinquenta por cento). Isso porque, como já fora dito, a chance da participante lograr êxito na pergunta final seria de apenas 25% (vinte e cinco por cento).

Sendo assim, deve-se ressaltar, que para alguns juristas, como é o caso de Sérgio Savi (2006), a indenização não seria devida, por considerar que há uma limitação ao uso da técnica no percentual de 50% (cinquenta por cento). Para tais estudiosos, apenas a chance superior a 50% (cinquenta por cento) ensejaria um dano passível de ressarcimento, pois apenas essa situação seria vista como chance séria e real.

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Sobre a autora
Bruna Couto Boechat

Bacharel em Direito, formada na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Aprovada no Exame da Ordem XI.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BOECHAT, Bruna Couto. Responsabilidade civil pela perda de uma chance:: compatibilidade com o sistema jurídico brasileiro e sua aplicabilidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4051, 4 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30568. Acesso em: 20 abr. 2024.

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