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A nova dinâmica resolutiva do Ministério Público

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09/02/2015 às 10:31
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4- Busca por uma identidade própria ao Ministério Público

A consolidação do perfil resolutivo do MP, além de conferir maior agilidade na resolução dos conflitos sociais, empresta uma identidade própria à instituição. Doravante, o MP não se faz conhecido ao povo somente pelo atuar processual, alimentando na cabeça do vulgo a falsa crença de que não passa de um apêndice (passivo) do Judiciário. Esse conjunto de ideias e de práticas que acompanha a dinâmica resolutiva da instituição tem a força de deslocar o centro de gravidade do Ministério Público para si mesmo, afastando-o da dependência ou submissão a elementos extrínsecos e colocando em suas mãos o curso de seu destino.

Estimular e aperfeiçoar os mecanismos resolutivos conquistados pela instituição pode propiciar que ela, por conduzir seus próprios procedimentos e ter o domínio sobre o curso a ser atribuído a cada um, tenha um maior conhecimento sobre suas estruturas e seus mecanismos de ação. Este autoconhecimento institucional implica em um maior fortalecimento no desempenho das atribuições conferidas pela Constituição, pois não pode ser senhor de si e de suas ações quem antes não se compreende. E aqui não podemos esquecer a clássica lição do maior dos estrategistas:

“If you know the enemy and know yourself, you need not fear the result of a hundred battles. If you know yourself but not the enemy, for every victory gained you will also suffer a defeat. If you know neither the enemy nor yourself, you will succumb in every battle” (Tzu, 2003, p. 18)[17].


5- Diferenças entre o MP Demandista e o MP Resolutivo

MP Resolutivo

MP Demandista

Proativo

Reativo

Assunção de responsabilidade

Transferência de responsabilidade

Proximidade com o cidadão

Distanciamento da comunidade

Resgate da legitimidade democrática

Perda de legitimidade democrática

Problemas complexos e sem uma fórmula pré-definida

Problemas submetidos a um exercício intelectual (lógica legal-racional)

Trabalho criativo e pragmático

Trabalho rotineiro e formal

Unidade de ação e domínio de seu curso

Ação difusa, mecânica e burocratizada

Busca por resultados (“fazer a diferença”)

Indiferença por resultados extra-autos (ou extraprocessuais)

Art. 127 da CF: Ao MP incumbe: “...a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.

Art. 1º. da LC n. 40/81:

“O MP, instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, é responsável perante o Judiciário, pela defesa da ordem jurídica e dos interesses indisponíveis da sociedade, pela fiel observância da Constituição e das leis...”.

Art. 127 da CF: “O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado...”.

5.1- Proatividade e reatividade

O Ministério Público de perfil demandista se caracteriza por simplesmente reagir aos fatos sociais, aguardando que os fatos se tornem patológicos, conflituosos, para serem submetidos à apreciação judicial. É uma postura institucional reativa (inercial, fragmentária) a negar parcela valiosa de atribuições extrajudiciais do MP e que se inspira no antigo art. 1º. da Lei Complementar n. 40/81:

“O Ministério Público, instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, é responsável perante o Judiciário, pela defesa da ordem jurídica e dos interesses indisponíveis da sociedade, pela fiel observância da Constituição e das leis...”.

O fato mais evidente e grave da vida institucional do Ministério Público nos dias de hoje é a manifesta incapacidade dessa velha prática demandista e de outros mecanismos tópicos ligados a essa prática de assegurar a eficiência ao serviço prestado pela instituição. Como ruínas ou escombros, só conservam a aptidão para impedir novas germinações ou o desenvolvimento de novas práticas.

Ultimamente, a instituição tem sido obrigada a adotar uma postura assumidamente proativa e resolutiva, em que seus recursos e esforços são concentrados na busca por respostas preventivas para os problemas comunitários. Ao invés de reagir contra incidentes ou fatos consumados (que em boa parte das vezes não encontram uma solução adequada com o crivo judicial), o MP passa a trabalhar para a solução dos próprios problemas em conjunto com a comunidade. Neste novo perfil institucional, o promotor de justiça assume um caráter antecipador, ou seja, passa a se antecipar aos fatos, nutrindo uma nova atitude mental e uma renovada disposição para a ação.

5.2- Assunção e transferência de responsabilidade

O MP demandista funciona como uma correia de transmissão: simplesmente transmite o conflito social às mãos do Judiciário. E ao transferir perde, sensivelmente, o controle do curso e do tempo da ação para solucionar o conflito, submetendo-se aos mecanismos emperrados da máquina judiciária.

Além disso, assume uma postura burocrática de “evitar responsabilidades” (shuns responsibility – MacIver, 1965, p. 241), refugiando-se por trás da máquina do Judiciário. Duas situações podem ocorrer: a justiça soluciona a contento o conflito ou não. Em ambas as situações, o promotor demandista, de forma oportunista, obterá alguma vantagem. Se o resultado for ineficiente (sem relevância social), terá um bode expiatório ao alcance da mão (a ineficiência judicial); se obtiver êxito na demanda, colherá os frutos de uma demanda iniciada por ele.

Já o perfil resolutivo assume, primariamente, a responsabilidade de conduzir um conflito com o objetivo de encontrar-lhe a solução mais adequada.

5.3- Proximidade e distanciamento da comunidade

O promotor resolutivo, por lidar com problemas cuja abordagem não conta com uma fórmula pré-definida, tende a dialogar mais, a buscar soluções que têm na persuasão um elemento importante, e, por isso, sua proximidade com o cidadão e com a comunidade é maior.

O grande mérito de uma autoridade democrática é fazer com que o poder que lhe é atribuído tenha sua maior expressão na persuasão. As sociedades democráticas impõem um esforço justificativo especial por parte daqueles que exercem o poder. O mero argumento de autoridade já não satisfaz no âmbito de uma cultura que desconfia do poder e que se nutre do pluralismo (Vigo, 2010, p. 56). E no dizer de B. Russell (1949, p. 139), o derradeiro objetivo de qualquer reformador que tenha em vista a liberdade só poderá ser atingido mediante persuasão. A tentativa de impor-se a liberdade pela força (ou naked power, na definição do próprio Russell, 1948, p. 39) sobre aqueles que não desejam aquilo que consideramos liberdade, terá sempre de constituir um fracasso.

Em toda sociedade há um elemento de força e um elemento de persuasão, e onde seu progresso e desenvolvimento dependem mais da persuasão e menos da força, temos uma melhor sociedade (Murray, 1941, p. 50), dada a perspectiva factível de minimização dos conflitos.

Não há espaço na arena jurídica, ensina Atienza (1991, p. 25), para o determinismo metodológico (em que as decisões jurídicas não precisam de uma justificação, porque procedem de uma autoridade legítima ou são o resultado de simples aplicações de normas gerais), nem para o decisionismo metodológico (em que as decisões jurídicas não podem ser justificadas, já que são puros atos de vontade). Exigem-se hoje, em tempos de expansão do princípio democrático, razões justificativas (e não meramente explicativas) onde sejam identificados os valores que tornam a decisão correta, boa e conveniente para uma dada situação.

A aplicação pura e simples da lei sem uma justificação especial, através de meios judiciais, conquista a submissão do cidadão pelo temor da pena, mas não conquista a adesão e a cooperação ativas.

O agente demandista, por conta dos ritos e da linguagem que envolvem os processos judiciais, sem falar na ambiência solene e formal, cava um abismo entre si e a comunidade. Esse distanciamento e desconexão entre o agente ministerial e o sistema social resulta numa deformada e insuficiente resolução dos conflitos de uma sociedade democrática pós-moderna.

5.4- Perda e resgate de legitimidade democrática

O confinamento do promotor em seu gabinete, em torno de prazos e procedimentos mecânicos, torna-o, na prática, um burocrata sem responsabilidade perante a população. Essa burocratização da instituição ministerial afasta-a, cada vez mais, dos parâmetros democráticos. O perfil resolutivo reaproxima os membros da comunidade e de seus problemas, possibilitando o resgate da legitimidade democrática.

5.5- A forma de solucionar os problemas

O Ministério Público demandista encaminha os problemas como num jogo de palavras cruzadas: junta os fatos na horizontal e aguarda as soluções na vertical, num estreito exercício intelectual guiado por fórmulas processuais, mais ou menos mecânicas, num trabalho rotineiro e irracionalizador. A vertente resolutiva da instituição lida com problemas complexos (pois ainda não reduzidos à procedimentalização oficial), carentes de uma abordagem uniforme e ortodoxa e, por isso mesmo, a exigir um trabalho criativo de diálogo e de persuasão, uma nova forma de gestão e de resolução.

5.6- Trabalho criativo ‘versus’ labor rotineiro

A heterogeneidade e a variabilidade dos conflitos conduzidos pelo MP resolutivo exigem uma abordagem distinta e criativa na busca por uma solução substancialmente adequada (relevante socialmente). O agente ministerial resolutivo está especialmente obrigado a ser hoje mais inteligente que ontem e amanhã mais que hoje, a reprimir seus preconceitos, suas limitações e estreitezas intelectuais. Se não houver uma determinação em dar maior evidência, concreção e elegância às atitudes e pensamentos aplicáveis ao exercício de uma função pública fecunda, tudo será em vão.

Todo agente resolutivo está animado de um dinamismo finalista, vez que não se satisfaz com a mera observância das fórmulas legais.

O perfil demandista, por seu turno, contenta-se com respostas processuais, mediante análise rotineira e formal de questões procedimentais. E tudo quanto se torna rotineiro perde, por uma lei universal, segundo Mill (1964, p. 78), o princípio vital e, não possuindo mais espírito atuante diante de si, continua a girar mecanicamente embora a obra a que se destina fique por fazer.

De fato, esse caráter mecânico e infrutífero se revela em muitas ações submetidas à justiça que acabam extintas sem a resolução do mérito, ou seja, não solucionam, efetivamente, o conflito. Isso significa que o Judiciário embora tenha como função “decidir” o conflito, na maioria das vezes não o elimina, a “obra fica por fazer”.

5.7- Busca por resultados efetivos (ou socialmente relevantes) e a indiferença por resultados extraprocessuais

O Ministério Público puramente demandista nunca se preocupou em alcançar resultados socialmente relevantes, conformando-se com os prazos e os resultados processuais. O problema é que a estatística e os números processuais (tanto na área cível quanto na criminal) podem impressionar pela quantidade, mas não repercutem, na forma devida, nos complexos problemas sociais[18].

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E por que nas duas décadas seguintes à Constituição, a instituição não despertou para o problema? Isso porque as gerações de agentes ministeriais nutridas por esse modelo não se imaginavam dentro de uma estrutura política maior e cooperativa, com uma responsabilidade sociopolítica bem definida. E com essa postura indiferente, burocrática e mecânica, o MP brasileiro, desde a Constituição de 88 (que em suas disposições já houvera dotado a instituição de uma nova roupagem), contraiu uma séria dívida política com a sociedade brasileira: a de participar ativamente na solução dos problemas sociais que afligem dita sociedade, como insegurança pública, degradação do meio ambiente, corrupção política, caos na saúde e na educação, ineficiência na prestação dos serviços públicos etc.

Essa dívida só começará a ser solvida quando o perfil resolutivo da instituição (já indicado na CF/88, art. 127, caput) for efetivamente consolidado na prática diária dos milhares de promotores de justiça espalhados pelo país. Dotada desse elan resolutivo, a instituição terá condições de lutar por resultados substancialmente relevantes para a sociedade. Mas para isso precisa se colocar, efetivamente, dentro da estrutura política do Estado.


6- Estratégias de crescimento institucional que privilegiam o demandismo

6.1- Alegada hipossuficiência da sociedade e a função paternal da autoridade

Durante os trabalhos constituintes, o MP trabalhou com a hipótese da hipossuficiência da sociedade brasileira para conseguir mecanismos importantes na sua tutela. Conseguiu, inclusive, impedir a criação do ombudsman, sob o argumento de que já existia uma instituição apta a desempenhar as mesmas funções, o próprio Ministério Público. A partir da Constituição de 1988, conforme constata Arantes (2007, p. 327), veio se construindo no Brasil uma espécie de subsistema jurídico, caracterizado pelo surgimento de novas leis que substituem a titularidade individual pela titularidade supraindividual de direitos e por meio do qual o MP vem se transformando em órgão tutelar da sociedade.

O Estado democrático é extremamente expansivo[19] e com pouco senso de responsabilidade histórica, pois tende a exercer uma tutela sobre a sociedade e o indivíduo só comparável ao Estado totalitário. Até mesmo o antigo Estado absoluto, como diz Ortega y Gasset (1987, p. 130), respeitava instintivamente a sociedade. Essa tendência tutelar busca fortalecer o Estado democrático à custa da sociedade e do indivíduo, e para isso, a estratégia é interferir (e restringir) em suas esferas próprias e autônomas. É a criatura nutrindo-se dos criadores.

Quando o Estado ou suas instituições (Ortigão, 1888, p. 136) se constitui protetor ou tutor universal da sociedade torna-se objeto de uma superstição grosseira e perigosa. A fé posta na proteção do Estado é uma derivação da fé no milagre. Essa fé dissolve todas as aptidões, todas as iniciativas, todas as forças de uma sociedade.

Há uma firme crença de que o Estado democrático ao corresponder ao desejo da maioria deve conceder remédio a todas as misérias humanas, de qualquer espécie que sejam. E nestas circunstâncias de aliviar todas as dores, não ocorre a ninguém em pensar se existem outros meios ou recursos para evitar algumas delas ou se aquelas tratadas em cada caso concreto, efetivamente receberam o melhor tratamento (um tratamento compatível com a situação dada). E é claro que a intervenção do Estado a cada desvirtuamento ou miséria da sociedade ou do indivíduo gera uma espécie de círculo vicioso: à medida que aumenta a intervenção governamental, mais se fortalece o pensamento de sua necessidade e com mais insistência pede-se a sua extensão. Instala-se uma espécie de “estatolatria”.

E essa “estatolatria”, vertida no vezo de acionar o Estado para solucionar todo e qualquer problema, acaba tornando a estrutura estatal pesada e ineficiente, pois, como diz Spencer (1977, p. 38), a cada nova regulamentação (ou intervenção) implica a nomeação de novos servidores, aumento da burocracia e do poder dos órgãos administrativos.

A doutrina do estatismo (no caso do MP, o demandismo) implica a estatização da vida, a absorção de toda espontaneidade social pelo Estado, ou seja, a anulação da espontaneidade histórica, que definitivamente sustenta, nutre e impulsiona os destinos humanos. Quando a massa se sente insatisfeita, ou simplesmente tem algum forte desejo, é para ela uma grande tentação essa possibilidade permanente e segura de conseguir tudo – sem esforço, luta, dúvida ou risco -, sem precisar fazer nada além de apertar a mola e ligar a portentosa máquina estatal (no caso, representar ou requerer ao Ministério Público).

Para os defensores do estatismo (Hobhouse, 1927, p. 136), os diretores da democracia são criaturas ignorantes que podem ser arrastadas facilmente pelo caminho que devem seguir, como se fossem ovelhas. A arte de governar consiste em conseguir que os homens façam o que querem as inteligências diretoras, sem que saibam, realmente, o que estão fazendo, conduzindo-lhes sem mostrar-lhes o fim perseguido até que seja já demasiado tarde para voltar atrás.

Essa teoria concebe os homens como conglomerados de seres pessimistas e débeis, a que se deve tratar protetoramente. O Estado não pode ser um narcótico paralisante das ações individuais produtivas, mas um estímulo para o esforço pessoal.

A noção de que a sociedade precisa ser tutelada é uma dessas verdades parciais que levam a erros totais, como o de que o povo ainda não está maduro para viver a democracia plenamente. Daí admitir pré-condições para o exercício da democracia é um desdobramento lógico fácil de alcançar e de aceitar.

Qualquer corpo social cuja autonomia seja permanentemente substituída pela autoridade paternalista é mantido num estado perpétuo de infância e dependência. Consequentemente, se as decisões coletivas sempre forem tomadas por autoridades paternalistas isso significa, muito claramente, que, no âmbito dos negócios públicos, as pessoas jamais sairão da infância política e jamais obterão cidadania plena.

A tutela da sociedade pelo Estado (entenda-se, suas múltiplas instituições) ou uma autoridade de tipo paternal pode até ser legítima, desde que seja provisória e parcial, principalmente em sociedades desassistidas econômica e socialmente (ou imaturas). Isso porque o fim principal dessa tutela é proporcionar a capacidade da sociedade de dirigir-se a si mesma. Se a autoridade estatal prolonga-se para além da época prevista para o seu desaparecimento, falha em alguma coisa; se ela própria prolongar-se, e para tal se organiza, pratica abominável abuso. O uso desse poder tutelar (função paternal da autoridade, no dizer de Y. Simon, 1955, p. 16) tem caráter substitutivo e pedagógico e, portanto, aspira ao próprio desaparecimento.

Em relação ao bem próprio, quer do indivíduo quer do grupo, a possibilidade de autogoverno determina o desaparecimento da autoridade; e a possibilidade de progresso em direção ao autogoverno cria, para a autoridade, a obrigação de encaminhar-se em tal sentido. A indevida procrastinação do autogoverno nunca pode escusar-se com a invocação do princípio de autoridade de tipo paternal, no qual se inclui um requisito: o de gerar a autonomia. Na medida em que um governo (em todos os seus setores) exerce autoridade paternal, é tranquilamente certo afirmar-se que o melhor governo é o que menos governa (Simon, 1955, p. 23). O exercício bem sucedido da autoridade está em condições de desaparecer ou ter reduzido seu alcance.

O dinamismo da autonomia, contido na essência do estatismo ou da autoridade paternal, conforma-se ao espírito democrático, mas seu alcance ainda é maior, pois é traço comum a todo governo justo, democrático ou não. Um regime democrático que procede de acordo com a justiça não pode exercer autoridade do tipo paternal sem se dedicar, ao mesmo tempo, e de forma completa, ao esforço de criação da autonomia. Mas um regime não-democrático, desde que justo, não agirá diferentemente. É uma questão de justiça, não de democracia, a extinção da autoridade paternal por força da possível realização da autonomia (pessoal e coletiva).

O estatismo é precário e um sucedâneo à autorregulação social, e não oferece meios eficientes para uma educação cívica do povo. Isto só vivendo a democracia, pois é o ambiente democrático o melhor educandário para o povo, onde ele passará a aprender dentro do próprio processo democrático, tornando-se responsável por seu destino; sem vivência democrática não se formará no povo a ideia do que seja democracia (os hábitos democráticos, só praticando, se adquirem), o que, similarmente, ocorre com o cego de nascença que não tem a noção de cor, nem o surdo a dos sons, e que experimentam um choque quando pela primeira vez são expostos a tais sensações. Bom ou ruim, o som e a cor devem ser experimentados pelo indivíduo falto de sensibilidade apurada, assim como a democracia, pelo povo carecido de condições ideais de cultura ou de riqueza.

A prática democrática com seus desdobramentos procedimentais (igualdade política, sufrágio universal, participação efetiva etc.) é tão importante que chega a neutralizar diferenças de capacitação intelectual. Para esta neutralização basta que seja conferido um considerável relevo à informação e à discussão dos negócios públicos, com exposição clara das questões para possibilitar um entendimento perfeito por parte do cidadão participante.

Se a melhor ordem política é aquela na qual os membros ganham, individual e coletivamente, maturidade e responsabilidade ao enfrentar escolhas morais, isso significa que eles devem ter a oportunidade de agir com autonomia. Assim como a autonomia individual necessariamente inclui a oportunidade de errar, bem como a de agir corretamente, isso também se aplica a um povo. Na medida em que um povo é privado da oportunidade de agir com autonomia e é governado por guardiães (instituições como Ministério Público, Judiciário etc.), ele tem menos probabilidade de desenvolver um senso de responsabilidade por suas ações coletivas. Na medida em que é autônomo, ele pode às vezes errar e agir injustamente (Dahl, 2012, p. 306), mas com o tempo aprenderá a agir com responsabilidade e justiça.

Ao adotar a hipossuficiência da sociedade para se arvorar em seu defensor legítimo, o Ministério Público adotou uma política institucional de vistas curtas e fortaleceu o estatismo, implícito em tal doutrina (retardando o ímpeto emancipatório da sociedade brasileira), e privilegiou o seu perfil demandista, pois era a vitrine que, na época, melhor o expunha aos olhos da sociedade.

Todavia, a emancipação da sociedade civil da autoridade paternal ou do estatismo libera energias novas, para cujo domínio requer-se um revigorado esforço e uma nova mentalidade institucional. E essa nova mentalidade parece ser a via que leva ao Ministério Público Resolutivo.

6.2- A prática de “ocupar espaços”

Historicamente, o Ministério Público adotou a política de “ocupar espaços” a todo transe, numa ampliação de suas atribuições como forma de firmar-se e fortalecer-se como Instituição (Rodrigues, 1999, p. 133; Sinhoretto, 2006, p. 173) [20]. Além disso, o legislador infraconstitucional tem, a todo propósito, aberto novas formas de intervenção do MP, seja quando regula a proteção ao idoso, à criança e ao adolescente, ao portador de deficiência etc., seja no que se refere a questões fundiárias, parcelamento do solo urbano, usucapião, defesa de investidores no mercado financeiro etc.

Há, sem dúvida alguma, como fruto dessas posturas uma sobrecarga funcional dos membros do Ministério Público na área civil nem sempre compatível com a letra e o espírito da Constituição Federal. Por tal perspectiva não é difícil lobrigar a impossibilidade prática da instituição de se desincumbir de todas essas atribuições de forma, substancial e formalmente, adequada. E essas dificuldades funcionais têm rendido algumas críticas nem sempre justas. No dizer de Marchais (1974, p. 44) “sobrecarregam o burro e gritam com indignação quando ele tropeça”.

Se uma instituição é criada e estruturada constitucionalmente com o propósito expresso e exclusivo de atender certos objetivos, é provável que realize essa tarefa com alguma vitalidade. Todavia, se os objetivos não são bem definidos ou são desvirtuados, abrindo margem a que se agreguem novas atribuições, há uma tendência natural a certo relaxamento institucional no desempenho. Por isso que a política de “ocupar espaços” pelo MP trouxe inúmeros prejuízos à instituição, cujo preço começa a ser cobrado pela insurgência de contrainstituições.

Atualmente, a preocupação sobre as atribuições do Ministério Público gira em torno da eficiência e da efetividade da intervenção do MP, especificamente, no processo cível. E para tanto, a solução que se apresenta, jurídica e tecnicamente adequada, é uma categoria dialeticamente paradoxal: a restrição/ampliação de suas atribuições. A restrição diz respeito às atribuições compatíveis com sua finalidade constitucional (“defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”). A ampliação liga-se à atuação, dentro destes limites finalísticos e constitucionais, de forma qualificada e com largos mecanismos disponíveis, dentro da máxima consagrada de que quem tem fins deve dispor de meios. Esse enxugamento de atribuições, sob o foco da Constituição, ajuda a tornar a instituição flexível e adaptada às potencialidades e exigências de uma nova época em que a busca por resultados e eficiência é o núcleo vital.

6.3- Modelo de equiparação ao Judiciário (garantias, prerrogativas, vedações, estrutura e divisão funcional)

O Ministério Público adotou durante anos, como fórmula de crescimento e evolução institucional, a equiparação à Magistratura. Cresceu, permitam-nos o prosaísmo, como uma anêmona grudada num tubarão! Graças a isto e a toda uma doutrina construída em torno, a instituição se firmou como essencial e fundamental ao regime democrático, sendo insculpida constitucionalmente em matizes bem fortes.

Todavia, tudo tem seu preço: a assemelhação ao Poder Judiciário, que se refletiu em sua organização administrativa e de carreira, em sua postura funcional, na natureza de suas atribuições, provocou um fenômeno que se poderia chamar de “jurisdicionalização” do Ministério Público e perda de identidade.

Há quase 20 anos, Freyesleben (1993, p. 162-163) escrevia que o Ministério Público “recebeu novas e importantes atribuições com a nova ordem constitucional sem a correspondente estrutura para exercê-las a contento. E que a estrutura foi criada e é mantida para ser composta de Promotores de Justiça pareceristas. O grande defeito do Ministério Público está em seguir vivendo à semelhança da estrutura do Judiciário. Este sim, pode e deve ter estrutura de pareceristas! O Ministério Público é dividido em entrâncias e em instâncias, porque assim se divide o Judiciário. Na administração, possui os mesmos e correlatos órgãos, alterada a denominação, mas funcionando identicamente e para os mesmos propósitos. Não há uma única Promotoria de Justiça que não exista em razão de uma Vara. Esse é o problema estrutural do Ministério Público e que, se não resolvido, continuará lhe afetando e emperrando.(...) A maior dificuldade residirá na ruptura com uma mentalidade que não consegue ver um promotor sem juiz”.

Toda essa doutrina de equiparação e de simetria colocou o Ministério Público na órbita do Judiciário como um satélite, uma peça acessória, sem identidade e sem um objetivo institucional que não seja o de, eternamente, despachar processos e cumprir prazos processuais, alheio aos reais problemas sociais que constituem o pano de fundo de todo litígio ou demanda judicial.

Ao adotar esse hábito mimético, pleiteando todas as garantias do Judiciário ao longo de sua evolução institucional, o MP colheu onde não semeou. Esgotado este modelo, assume a instituição a hercúlea tarefa de arregaçar as mangas e provar, com trabalho eficiente, que faz jus a todas as garantias e prerrogativas que lhe foram atribuídas por descolamento da estrutura judiciária.

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Sobre o autor
João Gaspar Rodrigues

Promotor de Justiça. Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes/RJ. Membro do Conselho Editorial da Revista Jurídica do Ministério Público do Amazonas. Autor dos livros: O Ministério Público e um novo modelo de Estado, Manaus:Valer, 1999; Tóxicos..., Campinas:Bookseller, 2001; O perfil moral e intelectual do juiz brasileiro, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2007; Segurança pública e comunidade: alternativas à crise, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2009; Ministério Público Resolutivo, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2012.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, João Gaspar. A nova dinâmica resolutiva do Ministério Público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4240, 9 fev. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30584. Acesso em: 26 abr. 2024.

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