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Abolicionismo e minimalismo penal

A contração do avanço expansionista do direito penal contemporâneo

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06/11/2014 às 11:55
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Um diagnóstico do atual estágio do Direito Penal, com especial destaque ao seu avanço expansionista, efeitos nefastos e ineficácia como instrumento de controle social.

RESUMO: A pesquisa buscou a contextualização dos Movimentos de Política Criminal conhecidos como Abolicionismo e Minimalismo Penal no horizonte expansionista do Direito Penal contemporâneo, de cunho demagógico e midiático, marcado pela adoção do discurso neopunitivista, baseado na máxima intervenção, prima ratio, criminalização de condutas, recrudescimento das penas e desrespeito aos Direitos Humanos, mormente no sistema de justiça criminal adotado nos países latino-americanos, deslegitimados e estruturalmente incapacitados de cumprir as funções úteis que fundamentam a sua existência. O Estado Democrático de Direito se notabiliza pela ordem constitucional que consagra direitos individuais e sociais, que se volta para o mister de efetivar restrições aos poderes estatais em favor dos cidadãos. A constitucionalização do Direito Penal dá relevo e envergadura ao princípio da dignidade da pessoa humana e alavanca debates acerca da intensidade, proporção e efetividade da intervenção estatal por meio das normas penais e de suas drásticas consequências na vida dos indivíduos. A proposta abolicionista se desenvolve em torno da criação de alternativas para o processo de justiça criminal, de natureza legal ou não-legal, propondo a criação de microorganismos sociais baseados na solidariedade e fraternidade, com vistas à reapropriação social dos conflitos entre agressores e ofendidos e a criação espontânea de métodos ou formas de composição. Os postulados do Minimalismo Penal, ao contrário dos abolicionistas, não defendem o fim do Direito Penal, mas sua mínima intervenção, e encontram sustentação remota no Iluminismo, que teve Beccaria como representante exponencial. Este modelo engloba inúmeras propostas, todas vinculadas, entretanto, à defesa da contração, em maior ou menor nível, do Direito Penal repressivo. O minimalismo aceita o Direito Penal, mas busca alternativas humanistas de redução da sua incidência. A pesquisa procurou destacar as propostas elaboradas por Foulcault, Mathiesen, Hulsman, Baratta, Ferrajoli e Zaffaroni, este último, grande propulsor do movimento minimalista.

Palavras-chave: Abolicionismo penal; Minimalismo penal; Direito Penal contemporâneo; Expansionismo penal; Justiça criminal; Efetividade da intervenção estatal; Contração do Direito Penal repressivo.


1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por escopo proceder a um diagnóstico do atual estágio do Direito Penal, com especial destaque ao seu avanço expansionista, efeitos nefastos e ineficácia como instrumento de controle social.

Pretende-se demonstrar como ao longo do tempo tem se processado uma verdadeira inflação legislativa na área criminal, tornando o Direito Penal a panaceia para todo e qualquer problema social ou individual. Em meio a esse processo o Direito Penal tem sentido a interferência de questões que estariam melhor tratadas em outros ramos do Direito, onde poderiam contar com soluções mais eficazes e vantajosas para as partes envolvidas. Além disso, o Direito Penal vai aos poucos sendo invadido por procedimentos e sanções alheios a sua natureza, um processo de desnaturação, deformação e expansão que vai muito além dos seus estreitos limites racionais.

O estudo ora levado a efeito justifica-se pela necessidade de conscientização quanto aos níveis de perversão e inflação desmedidas empreendidos sobre o Direito Penal, de modo que esse processo contraproducente e irracional possa cessar e interromper o ciclo de consequências funestas sob os pontos de vista social e de preservação dos valores humanos, especialmente da liberdade e da dignidade.

Mediante o desenvolvimento de uma reflexão aprofundada do fenômeno expansionista penal e de suas causas, será possível apresentar um panorama sobre o tema para, a seguir, propor caminhos, alternativas, soluções, mudanças radicais ou não (Abolicionismo ou Minimalismo Penal), mas absolutamente necessárias à reversão do processo em curso. Tal caminho tem como referencial teórico a concepção de um Direito Penal baseado nos princípios da intervenção mínima, fragmentariedade, subsidiariedade e ultima ratio, depurado de usurpações e fusões, bem como reservado rigorosamente a um restritíssimo campo de atuação no qual seja considerado indispensável ou irrenunciável.

Nesse contexto, será demonstrado que o sistema de justiça criminal adotado pelos países latinoamericanos, excessivamente inflados pela onda expansionista, encontram-se deslegitimados e estruturalmente incapacitados de cumprir as funções úteis que fundamentam o seu existir. Em contraponto a esse cenário, a corrente minimalista postula a longo prazo a abolição do sistema penal, mas admite que esta abolição deva passar necessariamente, a curto e a médio prazos, de um lado, por uma profunda transformação, através de processos de descriminalização e de redução da pena, e de outro lado, pela reformulação do Direito Penal, de modo que ele seja utilizado como instrumento contra a violência do próprio sistema de justiça criminal.

Para a corrente minimalista, com destaque para Zaffaroni, a deslegitimação do sistema penal deve-se principalmente ao fato dele não se revelar estruturalmente apto a cumprir as funções declaradas em seu discurso oficial, funções que buscam justificar a sua existência e perpetuação.

A Criminologia Crítica e seus apanhados e estudos têm revelado que o sistema penal não consegue nem diminuir os índices de criminalidade, nem promover a ressocialização do criminoso através da prisão (modelo adotado pelos sistemas penais capitalistas). Também apresenta alto grau de seletividade, o que se nota na seleção dos bens a serem tutelados pela lei penal, bem como no recrutamento da sua clientela. Outro fator concorrente e relevante para a sustentação do discurso de deslegitimação do sistema penal é a sua violência operacional, que na realidade tende a criar mais problemas do que aqueles que propriamente visa combater.

Além disso, espalham-se mundo afora no momento atual, mormente nos Estados Unidos e na Europa, com ramificação em toda a América Latina, os chamados Movimentos de Lei e Ordem. Tais movimentos difundem, por meio de um punitivismo ideológico, midiático e demagógico (neopunitivismo), uma situação de pânico e insegurança generalizados em toda população.

Argumentos como o aumento da criminalidade, principalmente do terrorismo, narcotráfico e crimes hediondos, são utilizados como justificativas para o endurecimento das políticas de segurança pública, e o neopunitivismo é apresentado como remédio milagroso para a resolução das altas taxas de criminalidade (tráfico de drogas, homicídios, roubos, latrocínios etc). Aumenta-se a repressão, por um lado, baseada no antigo regime punitivo-retributivo, e, por via transversa, é fortalecida a prevenção especial negativa, baseada na neutralização do criminoso através de prisões de segurança máxima, perpétuas e da pena de morte.

Os resultados do avanço do neopunitivismo são o surgimento de leis penais de cunho altamente repressivo, a violação de direitos fundamentais e garantias constitucionais penais e processuais penais, sem o mínimo de observação empírica, pesquisa criminológica e sociológica e o recrudescimento das penas, sobretudo de privação de liberdade, respaldados pelo clamor da população pela pena de morte, redução da maioridade penal, hediondez de determinadas condutas etc.

Esse quadro desalentador espelha a incapacidade do sistema de justiça criminal de gerar respostas para tais problemas e impõe aos penalistas e aos criminólogos críticos a necessidade de construção de um discurso político-criminal voltado para a desmitificação do sistema penal, para a contenção da sua violência e para a busca de formas extrapenais de resolução dos conflitos.

Dessa forma, o presente artigo possui como objetivo o estudo aprofundado dos movimentos de política criminal conhecidos como Abolicionismo e Minimalismo Penal, buscando responder o que vêm a ser e quais os seus fundamentos e demonstrar, com amparo em propostas elaboradas por Foulcault, Mathiesen, Hulsman, Baratta, Ferrajoli e Zaffaroni, que ambos apresentam-se como tendências político-criminais aptas a responder ao expansionismo penal, por meio de um amplo processo de descriminalização, despenalização e desjudicização, baseado no incondicional respeito aos Direitos Humanos e às garantias constitucionais do Estado Democrático de Direito, com o objetivo final de substituir o atual sistema penal por formas mais democráticas e efetivas de resolução dos conflitos.


2 EXPANSIONISMO PENAL E NEOPUNITIVISMO

2.1 Os discursos neopunitivistas (“Lei e Ordem” e “Tolerância Zero”)

A mídia, no final do século passado e início do atual, foi a grande propagadora e divulgadora do movimento de Lei e Ordem. Profissionais não habilitados (jornalistas, repórteres, apresentadores de programas de entretenimento, etc.) chamaram para si a responsabilidade de criticar as leis penais, fazendo a sociedade acreditar que, mediante o recrudescimento das penas, a criação de novos tipos penais incriminadores e o afastamento de determinadas garantias processuais, a sociedade ficaria livre daquela parcela de indivíduos não adaptados (GRECO, 2013).

Não é necessária estatística para afirmar que a maioria das sociedades modernas, a do Brasil dramaticamente, vive sob o signo da insegurança. O roubo com traço cada vez mais brutal, “sequestros-relâmpagos”, chacinas, delinquência juvenil, homicídios, a violência propagada em “cadeia nacional”, somados ao aumento da pobreza e à concentração cada vez maior da riqueza e à verticalização social, resultam numa equação bombástica sobre os ânimos populares (GRECO, 2013).

O convencimento é feito por intermédio do sensacionalismo, da transmissão de imagens chocantes, que causam revolta e repulsa no meio social. Homicídios cruéis, estupros de crianças, presos que, durante rebeliões, torturam suas vítimas, corrupções, enfim, a sociedade, acuada, acredita sinceramente que o Direito Penal será a solução de todos os seus problemas (GRECO, 2013).

O Estado Social foi deixado de lado para dar lugar a um Estado Penal. Investimentos em ensino fundamental, médio e superior, lazer, cultura, saúde, habitação são relegados a segundo plano, priorizando-se o setor repressivo. A toda hora o Congresso Nacional anuncia novas medidas de combate ao crime (GRECO, 2013).

O mito do Estado Mínimo é sublinhado, debilitando o Estado Social e glorificando o “Estado Penal”. É a constituição de um novo sentido comum penal que aponta para a criminalização da miséria como um mecanismo perverso de controle social para, através deste caminho, conseguir regular o trabalho assalariado precário em sociedades capitalistas neoliberais (DORNELLES).

Sempre vem a lume o exemplo norte-americano, principalmente do movimento denominado Tolerância Zero, criado no começo da década de 90, na cidade de Nova York (GRECO, 2013).

Essa teoria, jamais comprovada empiricamente, serve de álibi criminológico para a reorganização do trabalho policial empreendida por William Bratton, responsável pela segurança do metrô de Nova York, promovido a chefe de polícia municipal. O objetivo dessa reorganização: refrear o medo das classes médias e superiores – as que votam – por meio da perseguição permanente dos pobres nos espaços públicos (ruas, parques, estações ferroviárias, ônibus e metrô etc.). Usam para isso três meios: aumento em 10 vezes dos efetivos e dos equipamentos das brigadas, restituição das responsabilidades operacionais aos comissários de bairro com obrigação quantitativa de resultados, e um sistema de radar informatizado (com arquivo central sinalético e cartográfico consultável em microcomputadores a bordo dos carros de patrulha) que permite a redistribuição contínua e a intervenção quase instantânea das forças da ordem, desembocando em uma aplicação inflexível da lei sobre delitos menores tais como embriaguez, a jogatina, a mendicância, os atentados aos costumes, simples ameaças e outros comportamentos anti-sociais associados aos “sem-teto” (WACQUANT).

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A política de tolerância zero é uma das vertentes do chamado movimento de Lei e Ordem. Por intermédio desse movimento político-criminal, pretende-se que o Direito Penal seja o protetor de, basicamente, todos os bens existentes na sociedade, não se devendo perquirir a respeito de sua importância. Se um bem jurídico é atingido por um comportamento anti-social, tal conduta poderá transformar-se em infração penal, bastando, para tanto, a vontade do legislador. Nesse raciocínio, procura-se educar a sociedade sob a ótica do Direito Penal, fazendo com que comportamentos de pouca monta, irrelevantes, sofram as consequências graves desse ramo do ordenamento jurídico (GRECO, 2013).

Para a lei penal não se reconhece outra eficácia senão a de tranquilizar a opinião pública, ou seja, um efeito simbólico, com o qual se desemboca em um Direito Penal de risco simbólico, ou seja, os riscos não se neutralizariam, mas ao induzir as pessoas a acreditarem que eles não existem, abranda-se a ansiedade ou, mais claramente, mente-se, dando lugar a um Direito Penal promocional, que acaba se convertendo em um mero difusor de ideologia (BATISTA).

Não se educa a sociedade por intermédio do Direito Penal. O raciocínio do Direito Penal Máximo nos conduz, obrigatoriamente, à sua falta de credibilidade. Quanto mais infrações penais, menores são as possibilidades de serem efetivamente punidas as condutas infratoras, tornando-se ainda mais seletivo e maior a cifra negra (GRECO, 2013).

Assim, resumindo o pensamento de Lei e Ordem, o Direito Penal deve preocupar-se com todo e qualquer bem, não importando o seu valor. Deve ser utilizado como prima ratio, e não como ultima ratio da intervenção do Estado perante os cidadãos, cumprindo um papel de cunho eminentemente educador e repressivo, não permitindo que as condutas socialmente intoleráveis, por menor que sejam, deixem de ser reprimidas (GRECO, 2013).

Todavia o fenômeno do crescimento desmedido do Direito Penal também ocorre no mundo anglo-saxão. Herbert Packer, em um livro intitulado The limits of criminal sanction, registra que a partir do século passado houve um enorme alargamento das leis penais pelo fato de ter sido entendido que a criminalização de toda e qualquer conduta indesejável representaria a melhor e mais fácil solução para enfrentar os problemas de uma sociedade complexa e interdependente em contínua expansão (GRECO, 2013).

Nos Estados Unidos, Kadish em trabalho a que deu o nome de The crisis of overcriminalization fala do emprego “supérfluo ou arbitrário” da sanção criminal, contendo uma massa de crimes, que em seu quantitativo superam as disposições incriminadoras previstas nos Códigos Penais. No Canadá – segundo informa Leclerq –, a comissão encarregada da reforma penal, fez, em 1974 um levantamento dos crimes previstos na legislação canadense, tendo chegado ao número assustador de 41.582 tipos de infrações criminais (LUISI).

Enfim, o falacioso discurso do movimento de Lei e Ordem, que prega a máxima intervenção do Direito Penal, somente nos faz fugir do alvo principal, que são, na verdade, as infrações penais de grande potencial ofensivo, que atingem os bens mais importantes e necessários ao convívio social, pois que nos fazem perder tempo, talvez propositadamente, com pequenos desvios, condutas de pouca ou nenhuma relevância, servindo, tão somente, para afirmar o caráter simbólico de um Direito Penal que procura ocupar o papel de educador da sociedade, a fim de encobrir o grave e desastroso defeito do Estado, que não consegue cumprir suas funções sociais, permitindo que, cada dia mais, ocorra um abismo econômico entre as classes sociais, aumentando, assim, o nível de descontentamento e revolta na população mais carente, agravando, consequentemente, o número de infrações penais aparentes, que, a seu turno, causam desconforto à comunidade que, por sua vez, começa a clamar por mais justiça. O círculo vicioso não tem fim (GRECO, 2013).


3 O ABOLICIONISMO

3.1 O abolicionismo e suas dimensões teórica e prática

Inicialmente, há que se referir a dupla via abolicionista, como perspectiva teórica e movimento social, eis que o abolicionismo suscitou, desde o início, a relação entre teoria e prática e, rompendo com os muros acadêmicos, aparece, simultaneamente, como teorização e militância social e, portanto, como práxis (ANDRADE, 2006).

Uma das características mais comuns de seus líderes é a de terem fundado grupos de ação ou de pressão contra o sistema penal e de haverem levado adiante movimentos ou organismos com participação de técnicos, presos, liberados, familiares e simpatizantes, isto é, pessoas com alguma experiência prática no campo da criminalização (ANDRADE, 2006).

Foucault fundou o Grupo de Informação sobre os cárceres (Groupe d’Information sur les Prisons); Hulsman iniciou a Liga Coorhhert, a qual, entre outras ações, apresentava todos os anos um pressuposto alternativo para o Ministério da Justiça; Mathiesen fundou o KROM (1969) norueguês, abreviatura de Norsk forening for Kriminal Reform (Associação Norueguesa para a Reforma Penal) e seus contrapontos escandinavos são o KRUM (Suécia, 1966) e o KRIM (Dinamarca e Finlândia, 1967) organizações que, sob amparo dos projetos abolicionistas, declaram como objetivo estratégico a abolição do sistema carcerário (ANDRADE, 2006).

Como perspectiva teórica, existe diferentes tipos de abolicionismos, com diferentes fundamentações metodológicas para a abolição, a saber, entre seus principais protagonistas: a) A variante estruturalista do filósofo e historiador francês Michael Foucault; b) A variante materialista de orientação marxista, do sociólogo norueguês Thomas Mathiesen; e c) A variante fenomenológica do criminólogo holandês Louk Hulsman e poderia ser acrescentada ainda a variante fenomenológico-historicista de Nils Christie (ANDRADE, 2006).

Enquanto alguns veem ao sistema de justiça penal como supérfluo e desnecessário, podendo abolir-se sem gerar uma crise do sistema (Hulsman), outros creem que é a pedra angular da repressão cuja abolição implicaria necessariamente a transformação da sociedade como um todo (SCHEERER, 1989).

3.2 Postulados do abolicionismo

A corrente abolicionista radical sustenta que a pena e o sistema de justiça criminal possuem efeitos mais nefastos que positivos; por isso mesmo, propõem os abolicionistas a eliminação total de qualquer espécie de controle “formal” decorrente do delito, que deve dar lugar a outros modelos informais de solução de conflitos (ZAFFARONI, 1990).

As posturas abolicionistas “não reconhecem justificação (legitimação) alguma ao direito penal e propugnam pela sua eliminação; impugnam desde a raiz seu fundamento ético-político ou consideram que as vantagens proporcionadas por ele são inferiores ao custo da tríplice constrição que produz: a limitação da liberdade de ação para os cumpridores da lei, o submetimento a juízo de todos os suspeitos de não a cumprir e o castigo de quantos se julguem que a descumpriram” (FERRAJOLI, 1995).

De acordo com HASSEMER e MUNÕZ CONDE, a perspectiva abolicionista funda-se no seguinte pressuposto: “se o Direito Penal é arbitrário, não castiga igualmente todas as infrações delitivas, independentemente do status de seus autores, e quase sempre recai sobre a parte mais débil e os extratos economicamente mais desfavorecidos, provavelmente o melhor que se pode fazer é acabar de vez por todas com este sistema de reação social frente à criminalidade, que tanto sofrimento acarreta sem produzir qualquer benefício” (HASSEMER e MUÑOZ CONDE, 2001).

3.3 Metas do abolicionismo

A meta do abolicionismo de HULSMAN (HULSMAN e BERNAT DE CELIS, 1997) é o desaparecimento do sistema penal, mas não a abolição total das formas coercitivas de controle social. A sociedade, aliás, já conta com inúmeras formas extrapenais de solução de conflitos (reparação civil, acordo, perdão, arbitragens etc.) e pode desenvolver muitas outras. O desaparecimento do sistema punitivo estatal (HULSMAN e BERNAT DE CELIS, 1997) “abrirá, num convívio mais sadio e dinâmico, os caminhos de uma nova justiça”.

O sistema penal formal deve ser abolido porque é patentemente maniqueista, configurado sob uma “máquina desconexa”, cujas instâncias, polícia, ministério público, magistratura, agentes penitenciários, atuam de forma compartimentada e excessivamente desconexa (HULSMAN e BERNAT DE CELIS, 1987).

A prisão é encarada como uma inutilidade, já que dessocializa e despersonaliza o preso. Lado outro, o sistema penal é extremamente burocratizado, não escuta bem as pessoas envolvidas nos conflitos, procura reconstruir os fatos de maneira superficial, fictícia, e a consequência disso é a aplicação de medidas fictícias, irreais (BIANCHINI e GOMES, 2013).

3.4 O abolicionismo e o fim do Direito Penal como forma de controle social

LOUK HULSMAN (HULSMAN, 1984) elaborou seis passos para a abolição do Direito Penal como forma de controle social, a saber:

a) em primeiro lugar, mudando a linguagem e aceitando a relatividade do conceito de crime; não se deve falar em crime senão em “situação problemática” ou “acidente” (BIANCHINI e GOMES, 2013);

b) em segundo lugar, aceitando e incrementando as regras civis de indenização, muito melhores “que trabalhar com o conceito metafísico de culpabilidade” (HULSMAN, 1984); aliás, a maioria dos fatos criminalizáveis já são resolvidos pela sociedade de maneira informal, porque (diante da cifra negra altíssima) poucos são os que ingressam no sistema formal (é a “civilização” do Direito penal que já ocorre em muitos casos de abuso e violência sexual na Holanda) (BIANCHINI e GOMES, 2013);

c) em terceiro lugar, desuniformizando a resposta estatal punitiva para as situações problemáticas, pois muitas vezes o que a vítima deseja não é a punição formal do culpado, senão a reparação dos seus danos e prejuízos (BIANCHINI e GOMES, 2013);

d) em quarto lugar, diminuindo, a intervenção estatal na sociedade, principalmente quando se trata de resolver algum conflito de interesses (BIANCHINI e GOMES, 2013);

e) em quinto lugar, abrindo amplo espaço para o consenso, para os contatos “cara a cara” (BIANCHINI e GOMES, 2013);

f) em sexto e último lugar, incrementando a tolerância e o respeito às diversidades pessoais (BIANCHINI e GOMES, 2013).

Do ponto de vista político-criminal a proposta do abolicionismo é desinstitucionalizadora ou descentralizadora. Em poucas palavras: é não-intervencionista. Procura-se afastar o Estado da solução dos conflitos, deixando que a própria sociedade encontre mecanismos menos repressivos “capazes de alcançar a paz”. Criminalizar é centralizar e institucionalizar (BIANCHINI e GOMES, 2013).

E “quem persegue ou sugere uma política de descentralização e desinstitucionalização está imbuído de uma confiança muito maior nos processos de regulação sociais informais e não centralizados, ou menos formais e menos centralizados. As reticências a propósito da descriminalização parecem tanto mais incompreensíveis à medida que se percebe o papel que poderia ser desempenhado pelo sistema jurídico civil – feitas as necessárias adaptações – se lhe fosse dada a devida oportunidade” (HULSMAN, 1997).

3.5 Reações e críticas ao abolicionismo

A tese abolicionista sempre foi duramente criticada porque “não leva em conta a fascinação que provoca o mundo delitivo, que é um fenômeno que faz parte da nossa experiência cotidiana” (HASSEMER e MUÑOZ CONDE, 2001).

Não obstante o acerto de muitas das conclusões abolicionistas, dá-se que pregações em favor do desaparecimento do Direito Penal deixam de considerar o custo da anarquia punitiva (BIANCHINI e GOMES, 2013). “Ao monopolizar a força, delimitar seus pressupostos e modalidades e excluir seu exercício arbitrário por parte de sujeitos não autorizados, a proibição e a ameaça penal protegem as possíveis partes ofendidas contra os delitos, enquanto que o juízo e a imposição da pena protegem, por paradoxal que possa parecer, aos réus (e aos inocentes de quem se suspeita como réus) contra vinganças e outras reações mais severas. Sob ambos os aspectos a lei penal se justifica enquanto lei do mais fraco, orientada à tutela de seus direitos contra a violência arbitrária do mais forte” (FERRAJOLI, 1995).

O Direito Penal, quando chamado a atuar na diminuição da violência que abala a sociedade e compromete o bem viver das pessoas, dada a sua característica eminentemente repressiva, acaba gerando, também, violência – violência formal –, razão pela qual há que trazê-lo a limites mínimos e estritamente necessários, o que representa a preocupação central das correntes minimalistas (BIANCHINI e GOMES, 2013).

Apesar das reações e críticas, muitos dos postulados abolicionistas merecem especial reflexão. “Vemos o abolicionismo com reservas, mas mesmo assim é possível fazer bom uso dele, sem ser abolicionista. Suas teses, no mínimo, possuem grande fundo ético (PAVARINI, 1995).

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Sobre o autor
Alisson Trajano Camilo

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás. Pós-graduando em Criminologia, Política Criminal e Segurança Pública pela Uniderp/LFG. Advogado. Sócio do Escritório Trajano Advocacia e Assessoria Jurídica.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMILO, Alisson Trajano. Abolicionismo e minimalismo penal: A contração do avanço expansionista do direito penal contemporâneo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4145, 6 nov. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30622. Acesso em: 26 dez. 2024.

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