6 – Cenários da Modernidade:
Nos meados dos anos setenta do século passado, quando se iniciaram as discussões acerca do Divórcio, o qual fora introduzido em nosso ordenamento jurídico por força da Emenda Constitucional número 9 de 28 de junho de 1977, caiu o primeiro dos pilares a sustentar o casamento em seus vários aspectos jurídico-sociais de reminiscência religiosa. A avença não era mais indissolúvel, mas retratável, rescindível. Tal pressuposto evidenciou a natureza contratual do casamento enquanto instituto de Direito Civil, despido que fora da indissolubilidade religiosa do matrimônio sagrado.
Outros pilares ruíram com a evolução a sociedade, pelo desuso, vindo posteriormente a merecer regulação legal, como a descriminalização do adultério, ocorrida com a edição da Lei 11.106/2005 e o disposto no inciso IV do artigo 219 do Código Civil de 1916, defloramento anterior da noiva como causa de anulabilidade do casamento, revogado pela Lei 10.406/2002.
Em decorrência da tolerância e evolução social, outros pressupostos foram vencidos, a ponto de em 1988 manifestar o Estado pelo reconhecimento da união estável, embora se tenha relato de prática similar nos recantos históricos do Brasil ao longo dos dias que nos antecedem no tempo.
De tal avanço inserido na carta de 1988 deriva a derrubada de preconceito aos filhos havidos fora do leito matrimonial que eram chamados bastardos, naturais, adulterinos entre outros adjetivos inferiorizantes, ao mesmo tempo em que rompera a condição jurídica de desigualdade imposta à prole considerada ilegítima. Notadamente tais conquistas revertem-se no contexto social e econômico do casamento, na sucessão e nos direitos patrimoniais diversos.
7 – Da Prática Social ao Reconhecimento Oficial da Relação Afetiva:
A convivência marital mantida sem as formalidades do Estado, se antes era proscrita, alcançando tal aversão aos filhos do casal amancebado, denominados naturais ou espúrios em contraposição aos filhos ditos legítimos, aqueles havidos e relações legalmente tuteladas, deixou de ser, em favor do princípio da dignidade da pessoa humana que descende do artigo 1º da Carta de 1988.
Reconhecendo a Constituição Federal a união estável como entidade familiar e igualando a situação jurídica dos filhos, quis o constituinte estender ao enlace informal o título jurídico de casamento, não por mero reconhecimento, mas por conversão daquilo que já é praticado e aceito socialmente, editando para isso norma infraconstitucional específica (Lei 9.278/1996).
Resta claro na lei que regula o dispositivo constitucional, que a preocupação do legislador é meramente patrimonial, evidenciando a conversão como pré-constituição de prova para fins de resolução do patrimônio do casal quando da ruptura dos vínculos afetivos.
Tomamos por exemplo o disposto no artigo 5º da lei 9.278/96, abaixo transcrito com destaque no quesito temporal da convivência, evidencia que pode ser discutível ou tornar-se indubitável diante de documento formal escrito:
Art. 5° Os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação contrária em contrato escrito.
§ 1° Cessa a presunção do caput deste artigo se a aquisição patrimonial ocorrer com o produto de bens adquiridos anteriormente ao início da união.
Em processo similar ao ocorrido com as ditas uniões espúrias heterossexuais, que viram o reconhecimento jurídico com o advento da Constituição de 1988, as uniões homoafetivas merecerem destino semelhante, embora se saiba que o amor e a convivência entre pessoas do mesmo sexo não é novidade dos dias atuais. Novidade é o Estado reconhecer a prática como legalmente aceita, equiparando e conferindo à união entre iguais os mesmos pressupostos do casamento tradicional heteroafetivo.
Não obstante, a Carta de 1988 já havia inovado na concepção de aceitação de práticas sociais ao dignificar a união conjugal não formal e reconhecer em condições de igualdade os filhos havidos dessa conjunção, a homoafetividade ainda é tabu a ser vencido em grande parte de nossa sociedade, não mais nos meandros jurídicos.
Afastando do aspecto religioso e/ou cultural de segmentos da sociedade, desejou o legislador, mais uma vez, tutelar direitos patrimoniais originários da avença, que podem e devem ser exigidas judicialmente, como a prestação de alimentos, o amparo mútuo, a sucessão e o reconhecimento do esforço comum na constituição de patrimônio familiar.
8 – Da Natureza Jurídica do Casamento:
Os doutrinadores pátrios firmaram entendimento em torno de três teorias que definem a natureza jurídica do casamento:
- a teoria clássica, também, chamada contratualista;
- a teoria institucionalista;
- a teoria eclética, ou mista.
Para a primeira, o casamento é nada mais que um pacto entre pessoas, de natureza civil, com a constituição de obrigações mútuas e que, pela solenidade e publicidade, impõe-se a terceiros que devem respeitá-lo e ao Estado o dever de tutela.
Aos defensores desta teoria, entre eles citamos Pontes de Miranda e Caio Mário da Silva Pereira, aplicam-se ao casamento as regras comuns da teoria geral dos contratos e, embora não se expresse nos termos documentais do casamento as disposições a que se sujeitam as partes, estão subentendidas aquelas que são consideradas essenciais ao episódio, aceitas tacitamente.
Evidente que, embora não se tenha por prática o estabelecimento de regras claras e indiscutíveis no instrumento de casamento, permite a lei (o que reforça a teoria contratualista) o estabelecimento de regras discutidas pelo casal nubente em pactos antenupciais e disposição expressa quanto à comunicabilidade dos bens (regime).
Por ilação entendemos que a proposta de disciplinar apenas como instrumento contratual a relação afetiva entre pessoas afronta postulados religiosos que enxergam no casamento o Matrimônio Sacramental. Despir a união dos seus aspectos afetivos religiosos, ainda que se possam reconhecer os efeitos civis dela decorrente é desconstituir um dos sete Sacramentos, pilares da religião católica, reduzindo-o a mero contrato.
Silvio Rodrigues (2002) nos preceitua que “Casamento é o contrato de direito de família que tem por fim promover a união do homem e da mulher, de conformidade com a lei, a fim de regularem suas relações sexuais, cuidarem da prole comum e se prestarem a mútua assistência” (RODRIGUES, 2002, p. 19).
Críticos desta teoria, relevando os quesitos religiosos já mencionados, advertem que há regras pré-estabelecidas no instituto do casamento que não estão no livre dispor das partes, além daquelas religiosas. Há ainda disposições de natureza afetivo-sexual que não se adequam a meras disposições contratuais sem ferir a concepção sócio-cultural de família, procriação e respeito mútuo.
Em resumo, fundamenta a crítica a assertiva que determinadas “obrigações” (entre aspas mesmo) que são assumidas no casamento não podem se submeter a instrumentos contratuais
Para os adeptos da Teoria Institucionalista, o que prevalece é o caráter institucional do casamento, como um episódio social relevante na formação da base cultural do grupo, tendo a família por alicerce. Notadamente a instituição traz em si regras de conduta inatas, sedimentadas na formação social do grupo e que comportam mera adesão (aceitação integral) e não composição (relativização).
Para os seguidores desse entendimento, dentre os quais citamos Maria Helena Diniz, os parâmetros para realização do enlace social já são estabelecidos pelo legislador, sendo que as partes não possuem a faculdade de alterar ou dispor sobre as obrigações, direitos e deveres que assumirão, de maneira diversa.
A nosso sentir, perde fôlego tal sustentação à vista das implicações a serem resolvidas quando do estabelecimento do conflito que tenha o vínculo por dissolução, a qualquer tempo.
A assistência ao cônjuge hipossuficiente; a partilha dos bens havidos com esforço comum na constância do casamento; a guarda, sustento e visita aos filhos do casal, por exemplo, são questões de Direito, que envolvem decisões consensuais ou impositivas, não podendo encerrar-se na esfera meramente social da instituição.
Washington de Barros Monteiro (2007) afirma que o casamento constitui “uma grande instituição social, que, de fato, nasce da vontade dos contraentes, mas que, da imutável autoridade da lei, recebe sua forma, suas normas e seus efeitos... A vontade individual é livre para fazer surgir a relação, mas não pode alterar a disciplina estatuída pela lei” (MONTEIRO, 2007 p. 13).
A terceira posição, a Teoria Mista ou Eclética, tende a encontrar a fórmula salomônica de entendimento e pondera ser o casamento não um ato simples (contrato), mas um ato complexo, que une os elementos contratuais da Teoria Clássica e os elementos institucionais da Teoria Institucionalista.
É, no dizer de Renata Barbosa de Almeida e Wasir Edson Rodrigues Júnior (2010), “um negócio jurídico sui generis, por se formar a partir do consenso dos nubentes e por ter efeitos ex lege e efeitos ex voluntate” (ALMEIDA et al. 2010 p. 108).
Para os estudiosos que defendem tal postulado, quando as partes manifestam a vontade de contrair casamento e sob a tutela do Estado o celebram, o fazem por meio de um contrato (pacto de obrigações mútuas), mas quando o Estado outorga o status de casados às partes, pela autoridade por ele constituída, surge então a instituição e a aceitação aos pressupostos do instituto, a serem cumpridas não somente pelos nubentes, mas pela sociedade inteira na parte que lhe couber.
9 – Considerações Finais:
Dizemos no início desta incursão que o casamento é uma relação de direito das mais complexas. E ao longo do desenvolvimento do tema acreditamos ter fortalecido tal premissa. Não seria simplesmente um pressuposto teórico ao tentar tabular um instrumento de convivência humana que reúne em si o patrimônio (material), mas também a herança cultural, afetiva e genética dos contraentes em relações de intimidade que ultrapassam a frieza dos acordos e contratos que se realizam nos relacionamentos sociais, mas também se consolidam no permissivo ambiente de alcova.
Há que se enumerar os propósitos da tutela do Estado laico a tal instrumento social que se resumem na definição da família como base da sociedade (art. 226 da CF), nas obrigações da família para com seus integrantes (arts. 229 e 230 da CF), nos deveres da família para com a sua prole (art. 227 da CF), além das definições acerca dos direitos de propriedade e patrimônio (art. 5º, XXII e XXX da CF) a igualdade (art. 5º, I da CF) e a dignidade da pessoa humana (art. 1º. III da CF), além, é claro, dos princípios de iminente raiz sócio-cultural, como a monogamia, a proibição do incesto e a prevalência do consentimento, donde derivam a exogamia e a exigência de uma idade núbil.
Entretanto, os instrumentos de tutela dos direitos originários do casamento o são a todos acessíveis, pelos princípios universalizados na Carta Constitucional, não sendo, portanto, privilégio das pessoas casadas.
Diante disso, retomando a pergunta incômoda desse estudo, que parte da disposição constitucional que propõe ao Estado, não apenas reconhecer a união estável como entidade familiar, mas impõe o dever de “facilitar a sua conversão em casamento”.
Qual a utilidade dessa conversão, senão a produção de prova pré-constituída em litígios de natureza patrimonial que tenham a união conjugal por origem? É a conclusão a que chegamos, haja vista que os demais direitos que tinham por origem o casamento foram assegurados em outras ferramentas jurídicas.
10 – Referências Bibliográficas:
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VENOSA, Silvio. Direito de Família. 4ª. ed. São Paulo: Atlas, 2010
Nota do Autor: a expressão "ubi tu Gaius, ibi ego Gaia" que serve de título ao artigo, é uma antiga fórmula latina de compromisso de casamento, dita pelos noivos: "onde você for Caio, eu serei Caia", a traduzir um compromisso de inteira dedicação e fidelidade.