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A Corte Costituzionale e suas interações no quadro institucional italiano

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03/08/2014 às 12:22
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5. A complexa afirmação da Corte Costituzionale nas primeiras décadas do seu funcionamento

Até 1950, a justiça italiana seguiu os modelos burocráticos clássicos dominantes na Europa Continental, e sua estrutura fundamental remetia ao período de unificação nacional (1859-1870), sob forte influência do modelo napoleônico. O perfil burocrático do Poder Judiciário permaneceu o mesmo durante a vigência do sistema fascista. Destacado poder na estrutura do Poder era exercido por fiscais, que representavam o Poder Executivo, pois estavam subordinados ao Ministério da Justiça. Não havia previsão de uma justiça constitucional, tampouco da criação de uma Corte.

Com a democratização após a Segunda Guerra Mundial,  a Constituição de 1948 criou a Corte Costituzionale, com sede em Roma, afastando-a do âmbito do Poder Judiciário. Todavia, para que fosse possível o funcionamento da Corte, foi promulgada a Legge Costituzionale n.1, de 9 de fevereiro de 1948. Cinco anos depois, veio a Legge n. 87, de março de 1953 e a Legge Costituzionale n. 1, de 1953, a regulamentar o funcionamento da Corte. Após todo o disciplinamento de sua atuação, a primeira audiência pública ocorreu em 23 de abril de 1956[8].

Antes do início das atividades da Corte Costituzionale, o controle da nova constituição deu-se em acordo com o modelo difuso, sendo exercido pela Corte de Cassação. O controle realizado pela Corte de Cassação foi duramente criticado pela doutrina italiana, merecendo as seguintes palavras de Mario Cappelletti (1984, p. 90-91):

“E quanto, enfim, à Itália, todos aqueles que viveram a experiência  daqueles oito anos, nos quais a Corte de Cassação, freqüentemente secundada pelo Conselho de Estado, usou de sua habilidade hermenêutica muito mais no sentido de não atuação da norma constitucional, não poderão desconhecer que a Corte de Cassação, e gostaria dizer sobretudo a Corte de Cassaçao, deu péssima prova da sua idoneidade como juiz em matéria de controle de legitimidade constitucional.”

Todavia, a transição do controle difuso exercido pela Corte de Cassação, logo após a promulgação da Constituição de 1948 e que se prolongou por oito anos, não se deu de forma pacífica. Durante este período, e nos primeiros anos do seu funcionamento, a atribuição do controle de constitucionalidade a um órgão externo ao poder judicial encontrou muitas resistências, especificamente por parte da Corte de Cassação (instância superior nas matérias penal e civil) e pela jurisdição ordinária (LÓPEZ BONFILL, 2005, p. 178).

Nas primeiras décadas de funcionamento, inclusive, a Corte de Cassação chegou a não reconhecer algumas das interpretações feitas pela Corte Constitucional, sob o argumento de que esta não poderia escolher qual a interpretação correta de determinado dispositivo, uma vez que a tarefa interpretativa, de acordo com a constituição, estaria a cargo da jurisdição comum.

Diante deste quadro, a necessidade de se firmar como órgão constitucionalmente relevante e, a partir deste respaldo no quadro institucional italiano, cumprir as funções que lhe foram destinadas no texto constitucional, é apontada como uma das causas para os muitos tipos de sentenças prolatadas por aquela Corte. Partiu-se da possibilidade de que as decisões não fossem consideradas na prática dos demais órgãos jurisdicionais (LÓPEZ BONFILL, 2005, p. 181-184).


6. Breve histórico da atuação da Corte e do desenvolvimento da justiça constitucional na Itália

Ao longo dos seus mais de cinqüenta anos de funcionamento, parte considerável das questões políticas mais importantes na Itália passou pela Corte Constitucional. Assim, pode-se afirmar que o tribunal constitucional italiano, após superar as dificuldades iniciais para sua implementação, descritas no tópico anterior, firmou-se como uma das principais arenas políticas italianas. Em vista do relevante espaço ocupado pela Corte, chega-se a verificar, hoje, uma espécie de autolimitação da sua atividade, devido a uma série de fatores.

A doutrina italiana – aqui representada por Tania Groppi – chega a apontar três fases do desenvolvimento da justiça constitucional na Itália, a partir das quais é possível inferir-se toda a pertinência da sua atividade na consolidação da democracia, para a efetividade dos direitos  fundamentais e até sua colaboração para a obtenção de certo grau de estabilidade política naquele país.

O primeiro momento vivenciado pela Corte Costituzionale, do início das suas atividades até o princípio da década de 60, pode ser caracterizado por um amplo esforço no sentido de afirmar os valores democráticos impostos pela Carta de 1948. Foi, destarte, o momento de  promoção das reformas ou concretização da Constituição, em que a Corte, a partir do seu Acórdão n. º 1, de 1956, firmou o caráter vinculativo das normas constitucionais quanto aos poderes públicos e privados, consagrando a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, bem como asseverou sua competência para analisar a legislação anterior à Constituição. Com o controle de constitucionalidade das normas que remontavam ao ordenamento fascista, a Corte teve importante papel na consolidação de direitos como a liberdade de expressão, de reunião (Acórdão n.º 27, de 1958) e igualdade entre os sexos (Acórdão n.º 33, de 1966).

Passado este momento inicial, com a exclusão das normas contrárias à nova Constituição do ordenamento jurídico, a Corte, nas décadas seguintes (meados da década de 70 até o início da década de 80), dedicou-se à atividade que a tornou famosa: a mediação dos conflitos sociais e políticos. Neste momento, o objeto de análise foi a legislação regulamentadora dos direitos assegurados na Constituição de 1948, editada pelo Parlamento,

A Corte Costituzionale, então, partiu para a avaliação da discricionariedade legislativa (nos itens seguintes, serão descritos os meios que se utilizou para tal mister), diante da mediação dos diversos valores constitucionais em conflito, através de seu peso. Referida análise, todavia, tinha em consideração princípios extraídos da Constituição, naquilo que Groppi denomina “interpretação evolutiva do princípio da igualdade”. Assim, a Corte aferiu os seguintes parâmetros para a regulação dos direitos sociais (especialmente): a proibição de utilização de critérios arbitrários e a necessidade de compatibilidade entre o objetivo almejado pela lei e os instrumentos utilizados para assegurar o direito. Se não obedecidos tais critérios, poderia a Corte analisar a constitucionalidade do dispositivo.

É de se imaginar o forte impacto político de decisões deste tipo no quadro institucional. E as construções jurídicas para fundamentar referidas interpretações atingiram neste momento alto grau de complexidade. Ademais, estando a Corte empenhada na concretização dos direitos de cunho social, suas decisões também produziam conseqüências para os orçamentos públicos, uma vez que algumas destas decisões chagavam a determinar a atuação não apenas do legislador, mas também do Poder Executivo. 

Já na década de 80, a rapidez na prolatação de suas decisões tornou-se a principal preocupação dos juízes do tribunal constitucional. Para tal fim, o procedimento constitucional sofreu modificações, tendo como parâmetros a racionalização do debate e a organização dos trabalhos desenvolvidos. Como resultado, alcançou-se a média de 9 meses entre o inicio do procedimento e a prolatação da decisão final. Groppi assevera que, em que pese o sucesso alcançado, muitos autores afirmam que a eficiência deu-se com prejuízo da fundamentação das decisões, que se tornaram pouco persuasivas (GROPPI, 2001, p. 70-74)

Outro aspecto de grande pertinência, em relação a esta rapidez, são os impactos produzidos num dos principais pilares do modelo italiano de controle de constitucionalidade, a já comentada dottrina del diritto vivente. Isto porque, diversamente do que ocorria anteriormente, as questões submetidas à Corte não são mais objeto de grande discussão no âmbito da magistratura, mas velozmente trazidas à apreciação dos juízes constitucionais.

Por fim, as ousadias características dos anos 70 e 80 em relação aos direitos sociais não são mais verificadas atualmente. Efetivamente, nos últimos anos pode-se constatar que a Corte tende a minimizar o impacto de suas decisões. Tal atitude pode ser atribuída a inúmeros fatores, dos quais se destacam como mais relevantes: a rapidez de suas decisões, que acabam por se referir às questões decididas pela maioria política do momento; o momento constituinte fica cada vez mais distante, que se constituiu, ao longo dos anos, num dos mais importantes parâmetros  de interpretação da Corte e a necessidade, em vista do ingresso da Itália na União Européia, de não se envolver em questões orçamentárias, submetidos à rígida disciplina dos órgãos monetários comunitários (GROPPI, 2005, p. 8).


7.  Da manipulação dos efeitos das decisões proferidas pelo Tribunal

Uma das grandes preocupações da jurisdição constitucional é precisamente a de que suas decisões sejam incorporadas à prática jurídica sem maiores problemas, sendo absorvidas pelo “resto da comunidade de agentes constitucionais”. Na Itália, diante das razões já expostas, visualiza-se grande preocupação com a “função pacificadora” a ser exercida pela Corte Constitucional (LÓPEZ BONFILL, Hèctor, 2005, p. 186-7). Suas decisões devem, portanto, ser objeto de amplo consenso, uma vez que, como entende Gustavo Zabrebelsky, o atual Presidente da Corte, cabe aos juízes a função “garantes de la complejidad estructural del derecho en el Estado Constitucional”, pois “el derecho no es un objeto propiedad de uno, sino que deve ser objeto del cuidado de todos” (ZAGREBELSKY, 1999, p. 153).

A existência destes conflitos também seria motivada pelo fato de que na Itália não há remédios para reparar o descumprimento de uma decisão da Corte Constitucional, diversamente dos sistemas em que são previstos recursos e outros mecanismos, como o recurso de amparo, por exemplo[9].

A criatividade da Corte em seus julgados, desta forma, derivaria de uma exigência de fazer com que as decisões sejam objeto de amplo consenso, do que resulta uma  multiplicidade de categorias nas decisões.

Contudo, do art. 136 da Constituição italiana ou da Legge Costituzionale n. 87, de 11 de março de 1953, não se pode depreender muito dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade da lei. Estes dispositivos contêm a regra de que, declarada a inconstitucionalidade de uma norma ou ato com força de lei, esta deixará de ter eficácia a partir da publicação da decisão, restringindo ainda mais a atuação da Corte.[10].

E é precisamente diante desta rigidez que se justifica a manipulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, que passa a ser construção estritamente jurisprudencial.  A própria proibição de aplicação da lei declarada inconstitucional é relativizada, com soluções como as decisões em que a inconstitucionalidade é constatada, mas não declarada, ou nas hipóteses de admoestação do legislador.

A idéia da manipulação dos efeitos deve-se à necessidade de preservar a segurança jurídica e propor uma solução constitucionalmente adequada, de modo a preservar discricionariedade do legislador, e que ainda seja aplicável pelos juízes ordinários. Por vezes, de nada adianta a sentença prever certos efeitos, pois tudo depende do contexto político para que esta se concretize no mundo dos fatos. Na Itália, a idéia de sentença manipulativa aparece como termo genérico para englobar as sentenças em que a Corte redige o preceito que está contido na lei, para suprir uma omissão inconstitucional ou para substituir uma disposição declarada inconstitucional. Seria uma espécie de categoria geral, que abrange as sentenças aditivas e substitutivas, assim como tantas outras.

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Diante da regulamentação normativa, afere-se somente a existência de dois tipos de decisão - as sentenças de acolhimento e de rejeição -, cujos efeitos estão pré-determinados em lei, no seguinte esquema:

· Sentenças de indeferimento: restringem-se a rejeitar a argüição de constitucionalidade nos seus termos, e não impedem que a questão possa ser novamente levantada.  A única restrição é que o juiz não levante a questão no mesmo julgamento (haveria uma eficácia inter partes);

· Sentença de deferimento: eficácia erga omnes e efeitos retroativos a partir do dia seguinte à publicação da sentença de deferimento da pretensão de inconstitucionalidade. O limite (construção jurisprudencial) à retroatividade são as hipóteses em que já decorreu a prescrição ou os prazos de caducidade ou com trânsito em julgado (devidamente excepcionada quando já proferida sentença irrevogável de condenação, pois deve cessar a execução e todos os efeitos penais, como prevê a lei) (GROPPI, 2001, p. 71-72).

Quanto às demais decisões, existem inúmeras classificações e espécies. Para os fins deste trabalho, o estudo estará limitado às mais relevantes, critério aqui baseado no critério da inovação, espelhada na forma da Corte exprimir sua interpretação.

De maneira a oferecer uma classificação norteadora, traz-se a categorização  empreendida por Gustavo Zagrebelsky (1982, p. 105), que divide as sentenças em duas categorias:

· Sentenças em que a Corte Constitucional cria diretamente o direito – decisões que não requerem a interposição de outro sujeito normativo (sentenze-legge);

· Sentenças que pretendem unicamente ter efeitos normativos indiretos, mas que não criam direito (sentenze-indirizzo).

A partir desta classificação, podem ser delineadas as características das sentenças mais interessantes.

Destas, destacam-se as denominadas sentenças aditivas, em que a Corte Constitucional declara a inconstitucionalidade do dispositivo impugnado, e em vista da lacuna ocasionada pela retirada da norma do sistema, reconstrói o texto com um conteúdo diverso, mais “adequado” aos parâmetros constitucionais. Do mesmo modo, sendo constatada uma  omissão inconstitucional na lei submetida à apreciação, supera-se tal omissão pela  reconstrução de normas, que passam a admitir uma coerência textual (GUASTINI, 1998, p. 44).

Já as sentenças aditivas de princípio constituem uma moderação da Corte, em função da garantia da discricionariedade do Parlamento. Nestas decisões, a Corte afirma os marcos a serem seguidos pelo legislador quando vier a regular posteriormente a matéria, e também ressalta a necessidade de que os juízes ordinários tomem decisões aplicativas imediatas, por vezes explicitamente. Em alguns casos, a Corte chega a indicar qual o prazo a ser observado pelo legislador. Posteriormente, os princípios determinados na sentença servem de parâmetro para aferição da constitucionalidade do direito a ser futuramente legislado (GROPPI, 2005, p. 11).

Zagrebelsky (1982, p. 142-ss), tecendo comentários acerca das sentenças admonitórias ou apelativas, defendia que as sentenças que traçam diretrizes ao legislador acabam por invadir seu âmbito de competência, pois estabelecem um juízo de oportunidade que não é característico da jurisdição constitucional. Ademais, no momento em que são atribuídos parâmetros para a atividade legislativa superveniente, a esfera de competência do Parlamento é invadida, especialmente sua discricionariedade.

No caso específico das sentenças de rime obbligate, a Corte unicamente constata a existência de normas que já se encontravam presentes em uma conjunção de princípios constitucionais prévios, confiando-se numa relação logicamente taxada entre o texto constitucional e os mandatos que dele se inferem. A teoria da rime obbligate, que parte da idéia de que é possível extrair princípios diante dos direitos previstos na Constituição, tem origem na doutrina de Crisafulli (1984,  p. 407-409), que assim justificava as sentenças aditivas propriamente ditas. Importante registrar, para os fins deste texto, a relevância dos princípios na práxis da Corte Constitucional Italiana[11].

Isto sem falar nas decisões que exprimem uma interpretação “conforme a Constituição”. Em algumas hipóteses, quando os juízes ordinários (ou a Corte de Cassação) não adotam os marcos interpretativos fixados pela corte e esta volta a se pronunciar, acaba decaindo em favor da direta declaração de inconstitucionalidade - decisioni di “doppie pronnunce”-, afirmando o caráter vinculante das suas decisões.

Em algumas decisões, o Tribunal limita-se a escolher qual a interpretação conforme a Constituição e qual é a contrária ao texto constitucional (adeguatrice). Trata-se de um tipo de interpretação conforme a constituição. A interpretação tida como conforme a Constituição, entretanto, serve apenas de vetor para as decisões da magistratura ordinária (um reflexo da doutrina do direito vivente).

Na primeira metade dos anos 2000, a Corte inclinou-se a exprimir meras admoestações ao legislador, para que este regulamente a situação analisada, sem qualquer efeito vinculante. Tais decisões, contudo, não traduzem qualquer mandato ao legislador (Cf. GROPPI, 2005, p. 9).

Isto porque a Corte vem interpretando literalmente o dispositivo contido no art. 28 da Legge n. 87, de 1953, que assegura, frente à atividade do tribunal constitucional, a discricionariedade do Parlamento, nestes termos:

"28. Il controllo di legittimità della Corte costituzionale su una legge o un atto avente forza di legge esclude ogni valutazione di natura politica e ogni sindacato sull’uso del potere discrezionale del Parlamento.”

Ademais, as decisões de impacto financeiro são cada vez menos freqüentes, diante da limitação contida no art. 81 da Constituição[12], que determina que toda lei que determine novos gastos deve indicar os meios para financiá-los (Cf. GROPPI, 2005, p. 10).

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Sobre a autora
Flavia Santiago Lima

Doutora em Direito/UFPE, Professora Universitária, Advogada da União

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Flavia Santiago. A Corte Costituzionale e suas interações no quadro institucional italiano. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4050, 3 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30643. Acesso em: 19 abr. 2024.

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