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Juizados especiais e conceito de menor potencial ofensivo.

Primeiras posições da jurisprudência

01/08/2002 às 00:00
Leia nesta página:

Juizados criminais: Crimes até dois anos

Continua viva a polêmica sobre se a Lei 10.259/01, que criou os juizados federais e ampliou o conceito de infração de menor potencial ofensivo para dois anos, aplica-se ou não para os juizados estaduais.

Em 02.04.02 (DOE-Poder Executivo-Seção I) o Procurador Geral de Justiça do Estado de São Paulo publicou aviso no sentido de que o primeiro acórdão do TACRIM-SP (HC n. 398.760-7, 11ª Câmara, relator Juiz Ricardo Dip, j. 25.02.02) entendeu que o conceito de crime de menor potencial ofensivo previsto no art. 2º, parágrafo único, da Lei 10.259/01, não se aplica no âmbito da Justiça Estadual.

No DOE de 24.04.02, Seção I, o Procurador Geral de Justiça do Estado de São Paulo, novamente, publicou aviso no sentido de que, em reunião realizada em 18 de março de 2002, a 2ª Procuradoria de Justiça, firmou por unanimidade, o Entendimento Uniforme relativo à Lei nº 10.259/01:

"ENTENDIMENTO UNIFORME Nº 12: "A Lei 10.259/2001, de caráter federal, foi editada especialmente para regulamentar o Juizado Especial na esfera da Justiça Federal, não se aplicando as suas disposições aos Juizados Estaduais. Por conseguinte, não foi derrogado o art. 61, da Lei 9.099/95, de caráter nacional. A vedação contida no artigo 20, conquanto se refira ao Juizado Cível, denota a intenção do legislador de não sujeitar o Juizado Estadual às normas estabelecidas na Lei 10.259/01. Ademais, por extrapolar a permissão contida no parágrafo único do artigo 98, da Constituição Federal, e por ferir normas contidas na Lei Complementar nº 95/98, alterada pela Lei Complementar nº 107/01, a Lei 10.259/01 revela-se inconstitucional."

Nós, professores e operadores jurídicos do Movimento Constitucionalista do Direito Criminal (MCDC), no uso das nossas convicções e liberdades constitucionais, discordando, mais uma vez e sempre com a devida vênia, do posicionamento e do anúncio supra transcritos, temos a informar o seguinte:

Que a questão relacionada com a inconstitucionalidade da Lei 10.259/01 já foi levada ao Procurador Geral da República pela Procuradoria Geral de Justiça do Rio de Janeiro e entendeu o PGR que nada de inconstitucional há na Lei 10.259/01 e, ademais, que o conceito de infração de menor potencial ofensivo é único em todo o país: leia-se: os dois anos valem inclusive para o âmbito estadual (cf. Processo PGR nº 1.00.000.000801/2002-90).

Resumindo toda a polêmica, em poucas palavras, cabe salientar o seguinte: no Estado Constitucional e Democrático de Direito, onde a Constituição é a fonte de validade de todo o ordenamento jurídico (é a norma fundante, é a norma das normas), temos dois conjuntos normativos: o constitucional e o legal. Entre eles há incoerências, incongruências, aporias e contradições (e também alguma consonância). Isso faz parte (natural) do modelo atual de Estado (Ferrajoli).

Ao jurista do terceiro milênio cabe transcender o ensino jurídico do milênio passado, todo ele fundado no legalismo formalista ou positivismo legalista (que nasceu no final do século XVIII e começo do século XIX). Temos dois olhos exatamente para mirar a lei com um deles e a Constituição com o outro. No caso de conflito, aplica-se a Lei Maior (evidentemente).

Os que ainda estão presos aos esquemas lógicos do positivismo legalista não conseguem (nem conseguirão) nunca entender como a Lei 10.259/01 derrogou o art. 61. da Lei 9.099/95 (ampliando o conceito de infração de menor potencial ofensivo). Trabalham com os clássicos paradigmas de interpretação (a lei não tem lacuna, o legislador ordinário disse que o novo diploma legal só vale para os juizados federais etc.).

Nesse labiríntico mundo napoleônico e rousseauniano, em que o juiz é unicamente la bouche de la loi, o intérprete gira, gira, gira e não acha saída (explicação) para a citada revogação. Ao contrário, só encontra argumentos para o embelezamento do Palácio Real ou do Castelo da Fantasia que é o sistema jurídico imaginado pela Revolução Francesa.

Se transcender um pouco o nível da legislação infraconstitucional e captar a nova mensagem de que o legislador ordinário não é Deus, que o conjunto de palavras (muitas vezes desconexas e incompreensíveis) que eles aprovam têm que ter coerência com a Constituição, fica fácil perceber que o mesmo crime de desacato (por exemplo) não pode ter duplo (e completamente díspar) tratamento jurídico.

Admitindo-se a tese dos dualistas, se um juiz federal é desacatado o crime é de menor potencial ofensivo (vai para os juizados, cabe transação penal, impõe-se sanção alternativa etc.); se o desacato se dá contra juiz estadual o crime não é de menor potencial ofensivo, não cabe juizados nem transação penal, não será possível sanção alternativa etc.). O quê justifica tamanho tratamento desigual? Se a Lei 10.259/01 tivesse contemplado crimes de competência exclusiva da Justiça Federal (crimes previdenciários, políticos etc.) lógico que ela não poderia ter efeitos para o âmbito estadual. Mas não foi isso o que ocorreu.

Por força dos princípios da igualdade e da proporcionalidade e tendo em vista o conflito (que se estabeleceu) entre o que escreveu o legislador ordinário e o Texto Constitucional, não há como negar que o novo conceito de infração de menor potencial ofensivo vale para todos os juizados criminais do país. Conceito único, portanto. Para não haver injustiça. Os iguais devemos tratar igualmente. Os desiguais desigualmente. Em suma, não é que os legalistas (positivistas, formalistas e napoleônicos) não vejam a solução. O que eles não mais enxergam é o problema. Isso é grave!

Jurista do terceiro milênio que não tenha preocupação com as conseqüências práticas (reais, efetivas) da sua interpretação está em descompasso com a própria evolução da espécie: há 7 milhões de anos começou na África a história humana; há 4,5 milhões de anos o homem conseguiu ficar ereto (Homo erectus); há 2,5 milhões de anos nosso cérebro começou a crescer (Homo sapiens); há cerca de 1,7 milhão de anos o homem começou a usar instrumentos mecânicos (Homo habilis); há 12000 anos o homem chegou à Patagônia; há cerca de 8000 anos já habitava o Brasil; há 1.500 anos éramos descobertos "oficialmente" pelos portugueses; há 14 anos vigora nossa Constituição... parece sensato acreditar que neste princípio de novo milênio temos que construir o Homo proporcionalis (justo, equilibrado, razoável). Que dê a cada um o é seu, na medida do proporcional.


Juizados criminais: Ampliação, inclusive para crimes com procedimentos especiais

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (Quinta Câmara) já tinha reconhecido (pioneiramente no Brasil) que o novo conceito de infração de menor potencial ofensivo dado pela Lei 10.259/01 (crimes até dois) vale também para o âmbito dos juizados estaduais.

É o que ficou decidido no Recurso em Sentido Estrito 70003736428, rel. Amilton Bueno de Carvalho, que sublinhou:

"Penal. Processual penal. Recurso em sentido estrito. Porte e disparo de arma de fogo. Competência. Isonomia. Derrogação do artigo 61 da lei 9.099/95. Retroatividade da lei 10.259/01. Com o advento da Lei 10.259/01, restou ampliado o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo, por exigência da isonomia Constitucional. O comando normativo contido no art. 2°, da Lei 10.259/01 possui contornos penais suficientes a atrair a observância imperativa do disposto no inciso XL do rol das garantias constitucionais (art. 5°). As demandas iniciadas antes de 14.01.02 tramitarão no juízo comum, assegurado ao réu os benefícios da Lei 9.099/95. Recurso provido, em parte, por unanimidade."

Em novo julgado (de 24.04.02), o TJRS não só ratificou seu entendimento anterior a respeito da ampliação da competência dos juizados especiais (para dois anos) como firmou posição no sentido de que alcança também os procedimentos especiais.

O art. 61. da Lei 9.099/95 dizia que eram infrações de menor potencial ofensivo as contravenções assim como os delitos punidos até um ano, ressalvados o casos de procedimentos especiais. O art. 2º, parágrafo único, da Lei 10.259/01, não só ampliou o conceito para dois anos, como não fez qualquer ressalva procedimental. Logo, também os casos de procedimentos especiais (como por exemplo: crimes contra a honra) incluem-se agora no âmbito dos juizados criminais (estaduais e federais).

Cf. TJRS, CC 70004092680, Amilton Bueno de Carvalho, j. 24.04.02, v.u, onde ficou assentado: "Processual penal. Conflito de competência. Crime contra a honra. Lei 10.259/01 e crimes com rito especial. Com o advento da lei 10.259/01, restou ampliado o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo no âmbito da justiça estadual, por exigência da isonomia constitucional. O comando normativo contido no art. 2°, parágrafo único, da lei 10.259/01 deu novo conceito à menor potência, ficando excluída a restrição aos crimes com rito especial contida no art. 61, in fine, da lei 9.099/95. À unanimidade, negaram provimento ao conflito, mantendo a competência do juizado especial criminal".

Muito correto esse entendimento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (Quinta Câmara). Não existia razão plausível, fundada na razoabilidade, para a exclusão dos crimes com procedimento especial do âmbito dos juizados. O procedimento, por si só, não podia (e agora inequivocamente não pode) constituir obstáculo para que um delito fosse ou não da competência dos juizados (cf. Gomes, L.F., Juizados especiais criminais, São Paulo: RT, 2002, p. 26).


Ampla jurisprudência aceita ampliação dos juizados criminais

Para quem está acompanhando a polêmica gerada pela Lei 10.259/01 (lei que criou os juizados especiais federais) sobre se o seu conceito de infração de menor potencial ofensivo (crimes até dois anos, art. 2º) estende-se ou não ao âmbito dos juizados estaduais temos a informar o seguinte:

No Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul praticamente não há divergência. Quase 100% dos julgados entendem que o art. 2º, parágrafo único, da Lei 10.259/01, derrogou o art. 61. da Lei 9.099/95. Trocando em miúdos: o novo conceito de infração e menor potencial ofensivo (crimes até dois anos) aplica-se aos juizados criminais estaduais.

Nesse sentido:

  • 1- Conflito de Competência N.º 70004091211 (4ª Câm. Criminal), Rel. Des. Aristides Pedroso de Albuquerque Neto, julgado em 25/04/02;

  • 2- Conflito de Competência N.º 70004086971 (4ª Câm. Criminal), Rel. Des. Vladimir Giacomuzzi, julgado em 25/04/02;

  • 3- Apelação Crime n.º 70003611621 (3ª Câm. Criminal), Rel. Desa. Elba Aparecida Nicolli Bastos, julgado em 18/04/02;

  • 4- Conflito de Competência n.º 70004084935 (4ª Câm. Criminal), Rel. Des. Constantino L. de Azevedo, julgado em 11/04/02;

  • 5- Conflito de Competência n.º 70004091161 (4ª Câm. Criminal), Rel. Des. Constantino L. de Azevedo, julgado em 11/04/02;

  • 6- Conflito de Competência N.º 70003975208 (1ª Câm. Criminal), Rel. Des. Silvestre J. A. Torres, julgado em 03/04/02;

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  • 7- Conflito de Competência N.º 70003976396 (1ª Câm. Criminal), Rel. Des. Ranolfo Vieira, julgado em 03/04/02;

  • 8- Conflito de Competência N.º 70003927092 (1ª Câm. Criminal), Rel. Des. Silvestre J. A. Torres, julgado em 03/04/02;

  • 9- Apelação Crime nº 70003321627 (3ª Câm. Criminal), Rel. Desa. Elba Aparecida Nicolli Bastos, julgado em 14/03/02; 10- RSE n.º 70003736428 (5ª Câm. Criminal), Rel. Des. Amilton Bueno de Carvalho, julgado em 20/02/02.

O Tribunal de Alçada do Paraná a 2ª Câmara Criminal, em HC impetrado por José Jairo Baluta (cf. J.S. Fagundes Cunha, em Correio Braziliense, Direito & Justiça de 10.06.02, p. 1), caminha na mesma direção: os dois anos aplicam-se aos juizados estaduais. Aliás, nesse caso, tratava-se de crime contra a honra. E deliberou-se que o procedimento especial já não é obstáculo para a admissão da competência dos juizados criminais.

Na esteira do que deliberou o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (Aviso n.º 15/2002 – Comissão Estadual dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do TJ-RJ – de 25-03-02 (DOERJ – parte III – seção I – pp. 01. e 02 – 26-03-02), em muitos outros Tribunais do país a polêmica não existe: estão admitindo amplamente a incidência da Lei 10.259/01 no âmbito estadual.

Observe-se que todos os Tribunais comprometidos com os Juizados (que não é o caso ainda, lamentavelmente, do Estado de São Paulo, que continua jurássico nessa matéria: São Paulo é um dos últimos, senão o último Estado da Federação que não conta com juizados criminais nas suas comarcas) disciplinaram (tanto quanto o Rio de Janeiro) a matéria convenientemente. Alinham-se nesse ponto: Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará etc.

O Procurador Geral da República, Geraldo Brindeiro, como já noticiamos, arquivou representação formulada pelo Procurador Geral de Justiça do Rio de Janeiro, proclamando a incidência da Lei 10.259/01 ao âmbito dos juizados estaduais (Processo PGR n.º 100.000.000.801/2002-90, de 18-02-02 – Parecer).

Tacrim-São Paulo: até 29.05.02, havia um julgado contra a tese (HABEAS CORPUS 398.760-7, rel. Ricardo Dip) e dois favoráveis (AC 1.282.111 e 1.282.595, relatores Lagrasta Neto e Angélica de Almeida). Aliás, esses últimos julgados aconteceram antes mesmo da vigência da Lei 10.259/01 (leia-se: durante sua vacatio legis).

Em suma, vai se firmando a cada dia o entendimento de que o novo conceito de infração de menor potencial ofensivo (crimes até dois anos, com ou sem multa cumulativa) deve ter incidência no âmbito dos juizados estaduais. A tese é razoável e, pelo que estamos sentindo, deve ser vitoriosa nos Tribunais Superiores.

O ponto mais importante a ser destacado em tudo isso, entretanto, não é a vitória do bom senso (que sempre há de prevalecer; aliás, como diz uma máxima popular muito sábia: bom senso é a primeira qualidade do jurista... se ele souber ler ajuda bastante!).

O ponto a ser realçado é a preocupação constitucional revelada na jurisprudência quase unânime acima enfocada: com base nos princípios da igualdade e da proporcionalidade está sendo refutada a tese de que deveríamos ter dois conceitos de infração de menor potencial ofensivo: um para o âmbito federal e outro para o estadual. Isso significaria julgar um mesmo crime (desacato, por exemplo) com dois pesos e duas medidas. A balança da Justiça não aceita isso.

Até aqui, vitória do bom senso, vitória da razoabilidade! Buscar o justo em cada caso concreto é o grande comprometimento de quem faz justiça no terceiro milênio. Devemos reduzir (um dia talvez até eliminar) os espaços dos legalistas formalistas, montesquianos e napoleônicos. O maior equívoco desses positivistas legalistas é supor que tudo que vêem é o que é.

Na verdade, por absoluta falta de comprometimento com o justo e com o razoável, isto é, com as conseqüências práticas do que estão burocraticamente afirmando, pode-se dizer: "têm olhos mas não vêem, têm ouvidos, mas não ouvem; têm nariz, mas não sentem o olfato".

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Sobre o autor
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998), Advogado (1999 a 2001) e Deputado Federal (2019). Falecido em 2019.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Luiz Flávio. Juizados especiais e conceito de menor potencial ofensivo.: Primeiras posições da jurisprudência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. -335, 1 ago. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3066. Acesso em: 5 nov. 2024.

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O presente trabalho corresponde à fusão de três artigos do autor, aqui apresentados em conjunto.

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