“Propongo que es moralmente irresponsable pensar y actuar como si poseyéramos una razón universal y desencarnada que genera reglas absolutas y específicas, procedimientos de toma de decisiones y leyes universales o categóricas en virtud de las cuales podemos calificar de buena o mala, o distinguir lo verdadero de lo falso, en cualquier situación en la que nos encontremos”. MARK JOHNSON
Dizia Voltaire que noção de algo justo lhe parecia “tão natural, tão universalmente adquirida por todos os homens, que é independente de toda lei, de todo pacto, de toda religião. Se reclamo a um turco, a um guebro ou a um malabar a devolução do dinheiro que lhe emprestei para alimentar-se e vestir-se, nunca lhe virá à cabeça responder-me: "Esperai até que eu saiba se Maomé, Zoroastro ou Brama ordenam-me que vos devolva vosso dinheiro". Cada um deles admitirá que é justo pagar-me e, se não o fizer, há de ser porque sua pobreza ou sua avareza prevalecem sobre a justiça que reconhece”.
Quem poderia imaginar que uns séculos depois de Voltaire, para saber se algo é ou não justo, seria necessário recorrer, não a nenhuma deidade - hoje claramente em declive -, senão à ciência. Porque, efetivamente, hoje a ciência põe em questão muitas das intuições (e concepções) sobre o que é justo (bom ou correto); intuições (e concepções) que terminaram sendo consagradas, por exemplo, em regras jurídicas de toda índole, em tópicos forenses ou que, simplesmente, pretenderam impor-se através de fórmulas tão aparentemente vagas e imprecisas como “a natureza das coisas”, “o justo do caso concreto”, “o bem comum”...
Não cabe dúvida de que a intuição (entendida como faculdade de compreender as coisas de forma inconsciente, involuntária, sem esforço e sem razoamento) do que é ou não justo, é algo inato no ser humano. Com semelhante afirmação não se pretende negar a influência que na gênese da intuição jogam outros importantes fatores, como a cultura de referência, a experiência individual ou a formação pessoal de cada um. Contudo, o certo é que estes fatores desempenham uma função mais bem complementária que principal. Delimitam a matéria de discussão, a aclaram e precisam em função dos interesses em jogo, mas, uma vez feito este labor prévio, uma vez fixado o marco de referência, a intuição parece disparar-se só.
Este impulso ou instinto, resultado de um largo processo evolutivo, se encontra “alojado” nas áreas do cérebro associadas à emoção, umas áreas que quando se encontram ativadas impede ou dificulta que se ativem outras áreas dedicadas à análise racional, que são as implicadas, por exemplo, em qualquer cálculo ou análise custo/benefício e/ou razoamento lógico[1].
Neurobiologia da “razão impura”
Significa isso, de alguma maneira, que a moral está presente a nível orgânico no cérebro humano? A resposta é afirmativa, na medida em que os aspectos neurológicos se consideram agora decisivos para entender em que consiste a emoção e a cognição, a intuição, a racionalidade e as avaliações contidas nas emoções[2].
Na verdade, nos últimos tempos se pôs de manifesto o papel das emoções na eleição (supostamente) racional e para explicar o comportamento humano. Os cientistas agora já são capazes de scannear os cérebros de voluntários enquanto se lhes formula uma série de dilemas morais, para intentar compreender de forma empírica quem se aproxima mais à suposta realidade. As intuições e os razoamentos morais[3] estão sendo dissecados em laboratório mediante testes, análises de pacientes com lesões cerebrais, estudos com primatas e crianças, ferramentas de biologia evolutiva e aparatos que permitem obter imagens do “cérebro em ação”[4]. Todo um conjunto de técnicas e instrumentos que passaram a ser as novas lentes desde as que decifrar, e inclusive prever, o pensamento e a ação humana.
E já não são poucas as evidências experimentais acerca de quais são os correlatos cerebrais que parecem ditar o sentido do comportamento moral e da justiça. Antonio Damasio (2006), por exemplo, propôs a hipótese do «marcador somático» como ponto de partida de sua exploração sobre o papel da emoção na tomada de decisões; e, por sua parte, Daniel Kahneman e Amos Tversky (2012) recorreram à emoção para dar conta de algumas anomalias na preponderante racionalidade econômica. O conceito usado de emoção expressa um complexo mundo de impulsos, instintos e motivações, cujos elementos constituintes são a recompensa e o castigo.
Estas investigações contribuíram a reavivar o interesse pela neurociência das emoções[5], a que Damasio aportou uma distinção entre a emoção (um programa de ação) e o sentimento (o resultado consciente, cognitivo, do programa de ação), como dois níveis diferentes dos processos cerebrais. E ao intentar chegar ao nível mais básico da emoção, que inclui os subprocessos neuronais da regulação vital baseada na sinalização da recompensa e o castigo, Damasio descubriu que nesse nível básico da vida o decisivo vem a ser o que expressa a noção de «valor biológico».
A seu juízo, «la idea del valor biológico es omnipresente en el pensamiento contemporáneo del cerebro y la mente» (Damasio, 2010). De especial importância resulta este estudo da emoção e do valor biológico para a questão da racionalidade, pois qualquer estudo sobre a emoção remete à questão da vida e o valor, à recompensa e o castigo, os impulsos e as motivações, através dos quais opera o princípio do valor e que intervêm na regulação da vida, primeiro de forma automática, até que começam a ser revelados pelas mentes conscientes em forma de sentimentos (Damasio, 2010). Dito de outro modo, o estudo neurofisiológico das emoções não deveria olvidar sua radicação somática.
Daí que o propósito central do que caberia considerar como uma «neurobiologia da racionalidade» consiste em explicar mediante a hipótese do marcador somático «la relación entre las emociones y la razón», isto é, como as emoções, ao formar parte da razão, ajudam —mais que perturbam— o processo racional[6]. Pois, ainda que as emoções podem ser mais vantajosas que o pensamento deliberativo, porque servem para reagir com maior rapidez, com uma espécie de «inteligência» básica, não substituem a razão, senão que esta atua ligada às emoções. Por exemplo, as emoções cumprem uma função importante na intuição, esse rápido processo cognitivo pelo qual chegamos a uma conclusão concreta, sem ser conscientes dos passos lógicos intermédios. O acerto da intuição depende, mais bem, do processo experiencial de que surge, de uma cognição entremesclada com emoções e sentimentos. (G. Gigerenzer, 2008; D. Kahneman, 2012)
Nesse sentido, a partir de seus estudos neurobiológicos, Damasio defende que a razão não é pura, dado que as emoções e os sentimentos formam parte do entramado da razão[7]. Também por esta via se constata que a razão humana é impura: uma razão que está construída sobre os impulsos, que emergem como sentimentos ou preferências que guiam a tomada de decisões; em que existe um forte entretecer entre os sistemas cerebrais dos sentimentos, os da razão e os que regulam o corpo. De fato, a razão não se desenvolve sem a força dos mecanismos da regulação biológica, da que as emoções e os sentimentos são expressão. O mesmo é dizer que tanto a lógica formal como o cálculo custe/benefício e a maximização são estratégias características de um modelo de racionalidade que não expressa o processo efetivo da tomada de decisões, porque pretende desembaraçar-se das emoções e os sentimentos. (Tversky e Kahneman, 1973; Kahneman, 2012)
Por conseguinte, determinados aspectos do processo da emoção e do sentimento são indispensáveis para a racionalidade. A suposta racionalidade pura não é suficiente para a tomada de decisões e mais quando nos enfrentamos à incerteza. A emoção e o sentimento não somente nos ajudam a predizer e planificar, senão que a investigação neurológica demonstrou que há uma conexão entre o cortical e o subcortical, entre o racional e o não racional, e que a ponte entre os processos racionais e os não racionais se encuentra nas emoções e os sentimentos: a razão humana depende de vários sistemas (redes) cerebrais, que cooperam na constituição da razão, de tal maneira que a emoção, o sentimento e a regulação biológica desempenham seu papel na racionalidade humana; formam parte do edifício neural da razão.
Com a hipótese do marcador somático Damasio se está remetendo aos «fundamentos neurobiológicos» (ainda que melhor seria falar das bases neurobiológicas) da razão prática, do razoamento e da decisão, para responder às situações da vida; portanto, ao núcleo da “razão impura” frente à suposta “razão pura”. Descobrir o marcador somático no fundo da racionalidade implica superar a estrutura formal da razão, que deixa fora as emoções e os sentimentos.
Decidir bem implica selecionar uma resposta vantajosa para a sobrevivência do organismo e sua qualidade. Para saber o que é vantajoso e tomar a correspondente decisão, a racionalidade que se põe em jogo não é a de uma razão pura ou a da lógica formal (que prescinde das emoções), senão a que está ligada ao que significa a «hipótese do marcador somático», quer dizer, uma nova forma de razão impura.
Em resumo, o estudo das bases neuronais da razão que oferece Damasio tem o objetivo de cambiar a concepção da racionalidade, dando uma concepção do cérebro que não separa a razão da emoção e uma constatação experimental de que «el sentimiento [es] un componente integral de la maquinaria de la razón». (Damasio, 2010)
E é precisamente esse novo enfoque neurobiológico que amplia e radicaliza este processo transformador da razão pura em impura, colocando de relevo que a racionalidade depende de estratos aos que não acede o enfoque lógico e metodológico, e que são a origem e a base fundamental não somente das plasmações econômicas e jurídicas, senão presumivelmente de todas as ordens em que se exerce a racionalidade prática (ética, política, retórica, estética e religião ), quer dizer, na inteira vida humana.
Emoção, intuição e a formação dos juízos morais
Mas não somente isso. Uma das conclusões que logrou maior consenso acerca de como formulamos os juízos morais consiste em entender que nossos juízos estão amplamente baseados na intuição do que é correto ou incorreto, justo ou injusto, nos casos particulares. Mencionaremos dois dos principais modelos teóricos sugeridos para explicar a relação entre emoção/razão na formação de nossos juízos morais e que são particularmente relevantes por suas implicações para o Direito[8].
O primeiro modelo, inspirado em John Rawls e aplicando ao campo da moral os conceitos sobre a linguagem propostos por Noam Chomsky, postula a existência de um “órgão moral” [ao que também denomina “instinto moral” ou “faculdade moral inata” (similar ao instinto da linguagem)] que consiste em uma capacidade, produto da evolução, que possui toda mente humana e que de maneira inconsciente e automática gera juízos imediatos sobre o que está moralmente bem e o que está mal. (Hauser, 2008)
A partir deste modelo rawlsiano do juízo moral, Marc Hauser (2008) e Neil Levy (2007) não se propõem descobrir uns códigos morais com conteúdo, senão somente descobrir os traços de nossa estrutura moral inata, que será, obviamente, universal. Funcionaria da seguinte maneira: primeiro, a percepção de um evento com implicações morais dispararia e/ou implicaria uma apreciação inconsciente das causas, intenções e consequências das ações associadas a ele; seguidamente, essa análise inconsciente conduziria a um juízo moral que se expressaria em uma emoção e raciocínio consciente. Esta análise, ainda que rápida e inconsciente, é um processo cognitivo complexo usado para formar um juízo de aprovação ou desaprovação. Em um sentido importante, é um processo de raciocínio, ainda que, em um primeiro momento, não seja consciente.
À diferença do modelo de inspiração humeana, aqui as emoções não interviriam na geração do juízo moral: as emoções se disparam somente depois de que este juízo tenha ocorrido, e são relevantes principalmente para controlar nossa resposta condutual ao ato percebido. Trata-se de uma forma de integrar a Kant, Hume e Rawls na descrição de nosso comportamento moral sob a denominação de “criaturas” (com instintos morais): "A criatura rawlsiana [...] disparará suas intuições sobre ações moralmente boas ou más; a kantiana replicará a essas intuições com argumentos fundados em princípios" e, no "meio do fogo cruzado", a criatura humeana intentará inclinar os juízos a um dos pólos morais (bom/aprovação ou mau/desaprovação) gerando emoções de acordo com a evidência. (Hauser, 2008)
Como no modelo (“intuicionista”) de Jonathan Haidt (2012), os juízos morais estão baseados primariamente na intuição, ainda que Hauser[9] (contrário a Haidt) negue que estas intuições sejam de tipo afetivo: podemos encontrar algumas regras universais abstratas – como a reciprocidade em justiça e a regra de ouro (“não fazer ao outro o que não queremos que nos seja feito”) – e uma disposição para aprender outras, às quais a cultura introduzirá algumas exceções, quer dizer, dará a expressão ou forma final. Isto leva a pensar nas intuições como informadas por regras ou princípios gerais e abstratos que compõem nossa estrutura moral inata, uma sorte de “gramática moral universal” guiada por um sistema de conhecimento (cognitivo) inconsciente.
O segundo modelo, que vai de David Hume a Charles Darwin, enfatiza o rol das emoções e da intuição moral como elementos essenciais na formação/geração dos juízos morais e da conduta moral, muito maior do que lhe haviam atribuído os filósofos kantianos e os psicólogos kohlberguianos, de acordo com os quais os processos de reflexão e de dedução estão no centro das condutas morais: diante de uma situação ou ação moralmente relevante, o homem explora consciente e racionalmente diferentes princípios para gerar um juízo moral [10].
De uma maneira geral, significa que a percepção de uma situação dispara e/ou implica uma emoção, a qual se traduz em um juízo sobre se a ação com a qual se responde a essa situação é moralmente boa ou má. Isso deixa pouco lugar à deliberação racional como forma de modelar nossa visão moral: nossos juízos morais não dependem de que tenhamos melhores ou piores razões, senão do modo como está construído nosso cérebro, que é fundamentalmente emocional. Por isso a conclusão de Haidt (2012) de que nossas emoções são as que decidem, e logo a razão humana faz o que pode para encontrar justificações; quer dizer: os raciocínios que fazemos e as justificativas que damos de “por que” cremos ou fazemos certas coisas são em sua maioria justificações “post hoc” ou “razoamentos motivados” de reações viscerais (o que não significa que alguma que outra vez o “eu” racional não participa realmente no processo do juízo moral).
Segundo Haidt (2012) - que pretende reabilitar a concepção humeana dos “sentimentos” morais, eclipsada pela filosofia de Kant[11] -, a razão raramente funciona como fonte dos juízos morais. Estes não surgem a partir de um razoamento consciente e objetivo acerca da realidade, senão de umas respostas afetivas as que o sujeito não tem um acesso introspectivo. Esta resposta afetiva é denominada de «intuição moral», que se assimila ao conceito humeano das paixões e que está em clara oposição ao modelo racionalista.
Desse modo, Haidt (2012) define a intuição moral como a repentina aparição na consciência de um juízo moral, junto a uma valência afetiva (bom-mau, agrado-desagrado), “sin ninguna consciencia de que haya tenido lugar a través de pasos de búsqueda, valorando la evidencia o infiriendo una conclusión. La intuición moral es por tanto el proceso psicológico del que hablaron los filósofos escoceses, un proceso similar al juicio estético: alguien ve o escucha un evento social e instantáneamente siente aprobación o desaprobación”. O estado emocional produz uma intuição moral, que pode impulsar a um indivíduo a atuar; uma habilidade que se encontra integrada no mesmo ato de percepção, de tal forma que não necessitamos reflexionar para reconhecer que um ato ou pessoa é moral ou imoral, senão que o percebemos já como algo bom ou mau de maneira intuitiva, fugaz, inconsciente, involuntária e sem esforço, mediante uma sensação (ou pressentimento) que provoca em nossa consciência a formação de um juízo moral, e atuamos em consequência. O razoamento sobre o juízo ou a ação vem depois, quando o cérebro busca uma explicação racional para uma reação automática sobre a que não tem nenhuma pista.
O que supõe - tal como expressa Haidt (2012) - que ainda que nos goste ver-nos como sensatos e imparciais juízes, razoando e argumentando sobre as situações graças a nossa “imaculada” racionalidade e princípios profundamente arraigados, em realidade somos e atuamos mais que tudo como advogados, defendendo e argumentando (emocionalmente) a favor de (e sobre) ideias, crenças, preferências, desejos e preconceitos que já temos estabelecidos. Quer dizer, que temos pouco controle consciente sobre nosso sentido do bem e do mal, que nosso cérebro reconstrói a realidade e recria o que percebe em função de nossas expectativas, ideias, crenças, desejos e preferências.
Esta posição também conta com o aval de investigações neurocientíficas. Como indica M. Gazzaniga (2011), “quando explicamos nossas ações, elaboramos um relato a partir de observações ´post hoc´ sem acesso ao processamento inconsciente (isto é, justificativas lógicas que ocorrem mais tardiamente para um juízo formado de modo intuitivo). E mais: o hemisfério esquerdo do cérebro [ao que denomina “intérprete”] arruma um pouco as coisas para que encaixem em um relato lógico. Somente quando os relatos [nossas fabulações] se afastam demasiado dos fatos, o hemisfério direito do cérebro pisa o freio.[...] Utilizamos o módulo intérprete [hemisfério esquerdo] durante todo o dia para captar o essencial das situações, interpretar os sinais externos e as reações fisiológicas de nosso corpo, dar um sentido unificado e coerente a nossas ações, assim como para explicar tudo.”
Por outro lado, também são vários os estudos e experimentos que sugerem que a razão está fortemente marcada por fatores psicológicos e que nos limitamos a transformar nossos vagos instintos, emoções e intuições morais em um conjunto explícito de argumentos “convincentes”. Em um trabalho recente, por exemplo, Hugo Mercier e Dan Sperber (2011) argumentaram que a razão não evoluiu nos seres humanos para aceder à verdade senão para ajudar-nos a vencer em discussões. Para estes autores, a função do raciocínio ou do razoamento seria essencialmente social, de concorrência social, ainda que levem a maus resultados, não porque os seres humanos são incrivelmente deficientes no uso da razão, senão porque sistematicamente se esforçam por argumentos e explicações que simplesmente justificam, afiançam e/ou confirmam suas crenças, prejuízos, preferências e suas ações.
Nas palavras de Scott Atran, “que la razón sola basta y es suficiente para interpretar, argumentar, justificar, aplicar o superar las exigencias e imposiciones de los juicios, normas, principios y “valores sagrados” sólo lo conciben los académicos descarriados y algunas gentes del gremio de los juristas. Nadie más.”