Não há dúvidas de que hoje o Brasil vive uma democracia. Uma democracia representativa e em crise. Mas uma democracia. Hoje, sem medo de errar, é possível afirmar que na luta dos sistemas de governo, a democracia venceu. Todos somos democratas. Todos defendemos a democracia. No entanto, nem todos sabemos o porquê. Seguindo uma suposta concepção Rousseaniana, acreditamos na vontade geral. A democracia representa o que mais se aproxima da vontade geral e, portanto, deve ser defendida – mesmo às vezes sem se entender a razão.
Temendo parecer antidemocrata, afirma-se: A democracia é a melhor forma de governo, mas só se justifica a sua defesa quando se compreendem as razões para tanto. Ao contrário do que alguns sustentam, essa suposta concepção Rousseaniana não subsiste a uma análise detida da tese defendida pelo nobre contratualista, porque, embora para ele o homem seja essencialmente bom, disto não decorre que todas as deliberações do povo sejam necessariamente sempre boas. A distinção entre vontade geral e vontade de todos explicita isto. Aquela diz respeito ao interesse comum; a outra, ao interesse privado, sendo apenas a soma das vontades particulares, como assevera Fábio Konder Comparato, no Prefácio à 1ª edição da obra “Quem é o povo?”, de Friederich Muller (2011, p. 20).
A Constituição Federal de 1988 escolheu a democracia como princípio base do Estado Brasileiro, sob o primado de que “todo o poder emana do povo”. Porém, é interessante se ter em mente que o conceito de “povo” aparece na teoria jurídica da democracia enquanto bloco e que, nesta utilização, são encobertas diferenças entre retórica ideológica e democracia efetiva (CHRISTENSEN, 2011 apud MULLER, 2011, p. 34). Da mesma sorte, o termo democracia, por vezes, é utilizado da mesma forma que menciona Ralph Christensen a respeito do conceito [em bloco] de povo, ou seja, para encobrir retóricas ideológicas. Exsurge, daí, a necessidade de se entender a razão da adoção da democracia como sistema de governo.
Nos parece – e para tanto busca-se socorro em José Afonso da Silva - que essa adoção se deu justamente pelo fato de que se trata do melhor instrumento na realização de valores essenciais de convivência humana, que se traduzem, verdadeiramente, nos direitos fundamentais do homem (SILVA, 2011, p. 125). Seguindo nessa linha, a democracia não é e nem deve ser imune a críticas, mas deve ser analisada de forma constante para que se mantenha firme no sentido de construir uma sociedade mais justa e igualitária. Caso a democracia obste direitos fundamentais, ela perde sua essência. Neste sentido, Gustavo Zagrebelsky idealizou que a democracia crítica nunca será um regime arrogante e seguro de si, que recusa autocríticas e olha apenas para frente, mas é um regime inquieto, circunspecto, desconfiado, sempre pronto a reconhecer os próprios erros e a recomeçar do zero (2011, p. 132).
A respeito da correlação entre o governo democrático e [efetivação de] direitos fundamentais, Robert Alexy propõe três formas de se analisar esse fenômeno, a saber: (1) o modo de ver ingênuo, que entende não existir conflito entre democracia e direitos fundamentais, porque, ora, duas coisas boas não hão de colidir. Tanto a democracia quanto os direitos fundamentais podem ser realizados ilimitadamente; (2) o modo de ver idealista, que entende que o povo e seus representantes políticos de modo algum têm interesse no processo político e não há violação de direitos fundamentais por maiorias parlamentares; e (3) o modo de ver realista, que entende a democracia possa ser vista de duas formas, tanto sob uma ótica democrática quanto sob uma ótica não democrática. Do ponto de vista democrático surge a participação geral no processo político, capaz de manter o processo democrático com vida, a partir liberdade de opinião, imprensa, eleições, etc. Do ponto de vista não democrático, aparece a sucumbência da oposição no processo político e a sua insurgência perante o tribunal constitucional (2011, p. 52-53).
Bobbio reconheceu a regra fundamental da democracia como a expressão da maioria, ou seja, “a regra à base da qual são consideradas decisões coletivas — e, portanto, vinculatórias para todo o grupo — as decisões aprovadas ao menos pela maioria daqueles a quem compete tomar a decisão” (1986, p. 19). Aliás, a democracia quase instintivamente remete à ideia de governo da maioria. Quando se fala em democracia, acriticamente, o que vem à mente é a máxima “vox populi, vox dei”. No entanto, voltando a Zagrebelsky, com base nos conceitos construídos em A crucificação e a democracia, é facilmente perceptível que a divinização da vontade da maioria transforma a democracia em um governo irracional e manipulável.
Quando, por exemplo, a democracia se confrontar com direitos de minorias, parece perfeitamente possível que tais grupos se valham do Judiciário para correção in casu das mazelas do sistema democrático. De tal sorte que, em contraposição à defesa de uma democracia iludida, o que deve prevalecer são os direitos fundamentais em detrimento da regra majoritária.
O essencial é que antes de se defender a democracia per si, defenda-se a democracia como meio de assegurar direitos fundamentais. Ou seja, ao revés de colaborar para a divinização de um sistema que por vezes se autodestrói, defenda-se um sistema democrático racional que efetiva direitos fundamentais.
ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Organização e Tradução por Luís Afonso Heck. 3ª ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011.
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
COMPARATO, Fábio Konder. Prefácio. In: MULLLER, Friederich. Quem é o povo? : a questão fundamental da democracia. 6. ed. Tradução: Peter Neumann. Revisão da Tradução: Paulo Bonavides. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
CHRISTENSEN, Ralph. Introdução. In: MULLLER, Friederich. Quem é o povo? : a questão fundamental da democracia. 6. ed. Tradução: Peter Neumann. Revisão da Tradução: Paulo Bonavides. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 35. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2011.
ZAGREBELSKY, Gustavo. A crucificação e a democracia.Tradução: Monica de Sanctis Viana. São Paulo: Saraiva, 2011.