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Mutação social e jurídica:

o direito quântico e a justiça social

09/11/2014 às 15:41
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Como o comportamento do homem não pode ser, de forma absoluta, determinado, diz-se que as leis humanas são leis de probabilidade, cabendo ao Direito Objetivo quantificar e autorizar, ou não, a maneira de proceder.

O que é Direito? Essa é, provavelmente, a primeira pergunta a que todos que ingressam (e continuam) no estudo da “ciência jurídica”[1] propõem-se a responder. Não é intento deste trabalho o aprofundamento do tema, porém algumas palavras são necessárias, até porque é de relevância para o estudo a percepção da dialética da nossa matéria.

É verdade que a lei (ou norma jurídica) é o principal objeto (ou fonte) de análise do Direito. Recordemos, entretanto, que quando se busca o que o Direito é devemos levar em consideração, sob o aspecto de uma mutação social e jurídica, as transformações por que passam, de forma constante, o seu conteúdo e sua forma, sendo ele, por fim, o resultado de uma manifestação concreta do mundo histórico, cultural e social[2]. Percebe-se, desde já, que outros fatores (valores e fatos, por exemplo)[3] também devem ser observados ao se estudá-lo.

Justamente por não vislumbrar o Direito como “coisa” fixa, parada, definitiva e eterna, Roberto Lyra Filho (2005, p. 86), observando a dialética[4] na sua realização, se reporta a ele, precisamente, como um processo, dentro do processo histórico. Explica: “[...] cada perfil atualizado do direito autêntico é um instante do processo de sua eterna reconstituição, do seu avanço, que vai desvendando áreas novas de libertação [processo de libertação permanente]” (LYRA FILHO, 2005, p. 85, grifo do autor). Assim, conclui o referido autor que o Direito não “é”; ele “vem a ser”. E por ele “vir a ser”, entende-se que a pergunta inicial “o que é Direito?” deve transmudar-se para “o que vem a ser Direito?”, já que “é todo o processo [derivado da constante luta social] que define o Direito, em cada etapa, na procura das direções de superação” (LYRA FILHO, 2005, p. 83).[5] [6]

Goffredo Telles Junior ([1971?], p. 285), em curiosa obra publicada originalmente em 1970 (O Direito Quântico: ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica), se reportou ao Direito, em conexão epistemológica com a Física Quântica, como “a ordenação quântica das sociedades humanas”. Essa correlação serve para simbolizar o quanto as relações sociais reguladas pelo Direito são instáveis. Na Física clássica (tradicional, não quântica) o que temos são comportamentos previsíveis (por exemplo, pode-se saber a trajetória de uma bola antes mesmo de arremessá-la). Já na Física quântica, é impossível prever, com absoluta certeza, a trajetória das coisas: elas fazem todos os caminhos possíveis e ao mesmo tempo. Assim, como o comportamento do homem (ou grupos de homem) não pode ser, de forma absoluta, determinado[7], diz-se que as leis humanas são leis de probabilidade, cabendo ao Direito Objetivo quantificar e autorizar, ou não, a maneira de proceder. Ou seja, o Direito Objetivo

É a ordenação [de determinadas interações humanas] que quantifica a liberação das energias humanas, para assegurar o equilíbrio das forças, e para garantir que, a cada direito, corresponda uma obrigação. É a ordenação que delimita a liberação de energia, nos campos dos homens [quanta], para que a sociedade seja efetivamente o que ela precisa ser, isto é, um meio a serviço dos fins humanos. (TELLES JUNIOR, [1971?], p. 285)

Importante notar que Goffredo Telles Júnior, ao fazer essa abordagem, almeja a conclusão de que o Direito deve se sujeitar aos fins a que a sociedade anseia, sendo, ainda, a disciplina especializada em engineering social[8]:

Assim como essas proteínas se dirigem com autonomia, em conformidade com os interesses fisiológicos da célula, assim também o Direito, livre de imposições absolutas, se pode dirigir pelos interesses reais da sociedade, de acordo com os sistemas de referencia [sic] efetivamente vigorantes. (TELLES JUNIOR, [1971?], p. 285, grifo nosso)

Esse Direito, inserido, representativamente, na harmonia do universo (do Unum versus alia; do Uno feito do diverso) e promovido para/pelos anseios da sociedade (que dá legitimidade ao governo), possui natureza dual, consoante aponta Túlio Lima Vianna (2008, p. 119): é, ao mesmo tempo, instrumento de dominação e de resistência[9]; de manutenção do status quo e de inclusão social; de segurança jurídica e de justiça distributiva. Essa dualidade revela a já referida dialética na realização do Direito. Dessa forma, a Teoria Quântica do Direito[10] (ou, se preferir, a Teoria de um Direito não-determinista), ao conceber o fenômeno jurídico como instrumento dual de dominação/resistência, revela o caráter político que permeia todas as decisões judiciais, que não podem ser consideradas, a priori, como certas ou erradas – em razão da superação da ideia de uma razão jurídica universal (no sentido de verdade absoluta)[11], pelo que temos, nos dias de hoje, uma realidade a ser compreendida[12] –, “[...] mas ações políticas que ora tutelam os interesses de manutenção do status quo, ora os interesses de redução da tensão de poder entre opressores e oprimidos” (VIANNA, 2008, p. 120).

A figura do juiz, assim, ganha relevo. É ele quem, longe de ser apenas um observador neutro para fins de se extrair o significado verdadeiro da lei, cria a norma a ser aplicada ao caso concreto, através da escolha (jurídica e política[13]) entre uma racionalidade de segurança jurídica (cujos elementos são estabilidade, previsibilidade e uniformidade) e uma racionalidade de justiça distributiva – valores esses, normalmente, apontados como inversamente proporcionais, com o que não se pode concordar, pois, na verdade, há uma relação entre eles de coordenação e de equilíbrio.

Quando nos referimos à necessidade de a norma corresponder aos anseios da sociedade como forma de legitimação do governo[14], quer-se chamar a atenção para a própria acepção de Justiça. Não a justiça inserida nas leis, nem aquela justiça doutrinária ideal – embora, por vezes, em ambas possa se encontrar –, mas a Justiça Social[15], a que Goffredo Telles Junior ([1971?]) invoca, em nova roupagem, como Direito Natural. Para ele, “[...] o autorizamento das normas jurídicas decorre da natureza da sociedade, uma vez que, em cada comunidade, certos movimentos hão de ser exigíveis, e outros hão de ser proibidos” (TELLES JUNIOR, [1971?], p. 280/281). Assim, o Direito Natural, nessa concepção, é o Direito que não é artificial, sendo, na verdade, “[...] consetaneo [sic] com o sistema ético de referencia [sic], vigente em uma dada comunidade” (TELLES JUNIOR, [1971?], p. 280), isto é, Direito Natural é sempre um Direito Positivo que esteja de acordo com as expectativas legítimas da sociedade[16] [17] (TELLES JUNIOR, [1971?], p. 281). Essa acepção do direito enquanto correspondência dos anseios de justiça da sociedade é, precisamente, delineada por Roberto Lyra Filho (2005, p. 85):

O legalismo é sempre ressaca social de um impulso criativo jurídico. Os princípios se acomodam em normas e envelhecem; e as normas esquecem de que são meios de expressão do Direito móvel, em constante progresso, e não Direito em si. [...] Direito e Justiça caminham enlaçados; lei e Direito é que se divorciam com freqüência. Onde está a Justiça no mundo? – pergunta-se. Que Justiça é esta, proclamada por um bando de filósofos idealistas, que depois a entregam a um grupo de “juristas”, deixando que estes devorem o povo? A Justiça não é, evidentemente, esta coisa degradada. Isto é negação da Justiça [...]. Porém, onde fica a Justiça verdadeira? Evidentemente, não é cá, nem lá, não é nas leis (embora às vezes nelas se misture, em maior ou menor grau), nem é nos princípios ideais, abstratos (embora às vezes também algo dela ali se transmita, de forma imprecisa) [...].

Com essas considerações, conclui magistralmente:

[...] a Justiça real está no processo histórico de que é resultante, no sentido de que é nele que se realiza progressivamente. Justiça é Justiça Social, antes de tudo: é atualização dos princípios condutores, emergido nas lutas sociais, para levar à criação duma sociedade em que cessem a exploração e opressão do homem pelo homem; e o Direito não é mais, nem menos, do que a expressão daqueles princípios supremos, enquanto modelo avançado de legítima organização social da liberdade. [...] Direito é processo, dentro do processo histórico [...]. (LYRA FILHO, 2005, p. 86, grifo nosso)

Sem o fim de imersão no terreno fértil que é a discussão em torno da Justiça, e a título de complementar tudo o que já foi analisado, apenas diga-se, com o escólio firme de Miguel Reale (2002, p. 375/376), que não se pode separar a compreensão subjetiva da Justiça, enquanto valor da pessoa humana, da forma objetiva, como realização da ordem social justa (a multicitada Justiça Social[18]),

[...] mesmo porque o seu de cada um somente logra sentido na totalidade de uma estrutura na qual se correlacionem, deste ou daquele modo, o todo e as partes [e] [...] porque esta ordem [social justa] não é senão uma projeção constante da pessoa humana, valor-fonte de todos os valores através do tempo [...] visando a atingir a plenitude de seu ser pessoal, em sintonia com os da coletividade. (REALE, 2002, p. 376/377)

Para ele, “a justiça, em suma, somente pode ser compreendida plenamente como concreta experiência histórica, isto é, como valor fundante do Direito ao longo do processo dialógico da história” (REALE, 2002, p. 377), traço esse também assinalado, como visto, por outros autores.

Em vista de todo o exposto, o Direito pode ser concebido como o ordenamento jurídico, ou seja, o sistema de normas ou regras jurídicas que traçam determinadas formas de comportamento, além de ser a ciência que o estuda (Ciência do Direito e Jurisprudência[19]) – concepção normativa. É, ainda, fenômeno histórico-cultural – concepção fática –, que traduz um ideal de Justiça (Justiça Social, mais especificamente) – concepção valorativa (REALE, 2002).[20] Esses três elementos (tridimensionalidade do direito) se integram de forma dinâmica e dialética, na forma denominada por Miguel Reale (2002, p. 67) de “dialética de implicação-polaridade”, ou seja, fato e valor se correlacionam de modo irredutível (polaridade) e mútuo (implicação), dando origem à estrutura normativa como momento de realização do Direito. Em seara constitucional, como não poderia deixar de ser, a tridimensionalidade também está presente:

[...] as Constituições elaboradas no período pós-Segunda Guerra Mundial – estruturadas no contexto do movimento denominado pós-positivismo ou neo-constitucionalismo – são documentos abertos que visam congregar, especialmente através dos princípios constitucionais, elementos fáticos, normativos e axiológicos. Tal característica permite que as Constituições atuais não incidam nem em um legalismo exacerbado e tampouco na total insegurança jurídica, bem como sejam suficientemente flexíveis e aptas a acompanhar a dinâmica social, em constante e cada vez mais rápida transformação. (KUBLISCKAS, 2009, p. 163, grifo nosso e itálico do autor)

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Necessário afirmar que a Constituição, sendo o Direito Objetivo maior, também deve estar em harmonia com os Direitos Naturais dos Homens, no sentido antes delineado de Justiça Social, modelo esse mais atento à satisfação dos anseios da sociedade. Adota-se aqui, invariavelmente, a concepção de “Constituição Civil” de Kant, citada por Norberto Bobbio (1992, p. 52):

Por “Constituição civil” Kant entende uma Constituição em harmonia com os direitos naturais dos homens, ou seja, uma Constituição segundo a qual “os que obedecem à lei devem também, reunidos, legislar”. Definindo o direito natural como o direito que todo homem tem de obedecer apenas à lei de que ele mesmo é legislador [até porque todo poder emana do povo, consoante art. 1º, parágrafo único, CF/88], Kant dava uma definição da liberdade como autonomia, como poder de legislar para si mesmo.

Enfim, visando à consagração legítima da Constituição, entendida como o “primado do direito formador da arquitetura axiológica sobre o qual se funda a sociedade” (WINCK, 2007, p. 46), e desfazendo-se de muitas das ilusões positivas do Direito, numa abordagem humanista e socializante[21],

[...] o constitucionalismo passa a ter “uma dimensão comunitária” ao adotar a concepção de Constituição como “ordem concreta de valores”, destarte, os “valores compartilhados por uma comunidade política” [ordenação cultural] devem estar conectados a “ordenação jurídica fundamental e suprema representada pela constituição federal”. (WINCK, 2007, p. 45/46)


[1] Note-se que o termo ciência aqui não está empregado, como outrora se queria, a um estudo puro do direito, sem relacioná-lo a nenhum fator externo. Ver-se-á, ao longo deste trabalho, que a interdisciplinaridade e o estudo de fatores instáveis (fatos e valores) também estarão presentes.

[2] Parece natural dizer, como o faz Norberto Bobbio (1992), que o que seja fundamental em determinada época histórica e civilização pode não o ser em outras épocas e em outras culturas, não se podendo conceber fundamento absoluto a direitos historicamente relativos.

[3] Miguel Reale (2002) assim se reportava ao Direito, como o conjunto indissociável dos fatos, valores e normas, sendo expressão cultural, portanto – essa é a conhecida estrutura tridimensional do Direito.

[4] Registre-se, desde já, o que se entende por processo dialético, nas lições de Karl Popper (1972, p. 345, apud COELHO, 2002, p. 99): “Na terminologia de Hegel, tanto a tese quanto a antítese são reduzidas, pela síntese, a componentes, e portanto canceladas (negadas, anuladas, afastadas); ao mesmo tempo, são preservadas (guardadas) e elevadas (a um nível superior). Hegel aproveita a ambigüidade da palavra alemã ‘aufgehoben’, empregando-a no sentido de reduzida a componentes, cancelada, preservada e elevada”.

[5] Interessante dizer que o sistema jurídico, sofrendo influências e interações com o meio externo, acaba por ser reflexo da sociedade em que está inserido, admitindo-se mudanças. Por isso, concebe-se tal sistema como aberto, alopoiético, prospectivo, heterônomo, em contraposição à ideia de um sistema fechado, autopoiético, retrospectivo, autônomo (embora quem assim o considere não deixa de admitir a interferência da sociedade, mas não a sua influência e interação, como o é no sistema alopoiético). (SIQUEIRA JR., 2006)

[6] Curiosa, também, é a ilustração da capa da obra de Roberto Lyra Filho O que é Direito, publicada em 2005 pela editora brasiliense, em sua Coleção primeiros passos (nº 62): há a imagem de dois operários carregando a estátua da deusa Justitia, que foi tirada do seu pedestal, o que fez surgir o sol em seu lugar. Nesse caso, levando-se em consideração o conteúdo da obra, é possível denotar a seguinte interpretação: a saída de uma concepção estritamente positivista do direito (com os seus respectivos “operadores jurídicos”, termo este que transmite a ideia de aplicação mecânica do direito), surgindo uma nova concepção de direito (pós-positivismo) que brinda a relação entre valores, princípios e regras, aspectos estes da Nova Hermenêutica Constitucional e da teoria dos direitos fundamentais, edificada sobre o fundamento da dignidade humana, que ilumina a todos indistintamente.

[7] É inerente ao homem (e, por derivação, à sociedade) a contínua mudança, sendo “[...] da natureza imutável do homem, mudar e mudar sempre”, ou dito de outra forma, “o eu histórico é um eu permanente, mas um eu permanente em contínuo perfazimento” (TELLES JUNIOR, [1971?], p. 277).

[8] Em alusão às proteínas reguladoras, produtos especializados em engineering molecular.

[9] “[...] o revolucionário de ontem é o conservador de hoje e o reacionário de amanhã” (LYRA FILHO, 2005, p. 82).

[10] Vale dizer que a teoria do conhecimento em geral foi abalada pelo “golpe quântico”, pelo qual a Teoria Quântica (após os outros golpes dados pela Cosmologia de Copérnico, pela Biologia de Darwin e pela Psicologia de Freud) substituiu a racionalidade determinista da Física daquele momento por uma racionalidade probabilística do “princípio da incerteza” (Heisenberg), inaugurando uma era que pôs fim às certezas. É nesse ponto que a verdade objetiva, natural e divina cede espaço a uma verdade subjetiva, artificial e humana, ou seja, é o olhar do observador que irá definir o que é verdade, em um processo de compreensão. Por isso, o referido autor diz que “a paradoxal certeza absoluta do pensamento pós-moderno é que tudo é relativo. Não há verdades, apenas probabilidades” (VIANNA, 2008, p. 119). Note-se, ainda, que nas décadas de 70 e 80 do século XX, surgiu o movimento crítico do direito, que questionava o “saber jurídico tradicional na maior parte de suas premissas: cientificidade, objetividade, neutralidade, estabilidade, completude” (BARROSO, 2003, p. 14/15, apud WINCK, 2007, 43). Tais acepções serão mais bem explicadas no tópico referente à (nova) hermenêutica jurídica – subcapítulo 1.2.

[11] O pensamento da pós-modernidade, relegando as verdades metafísicas e puramente racionais de outrora, atesta o término dos “marcos de referência da certeza” (LEFORT, 1991, p. 50, apud WINCK, 2007, p. 45), fato esse que condiz com o universo complexo, dinâmico e instável das sociedades atuais e que reflete crises de legitimidade e na própria produção e aplicação da justiça (WOLKMER, 1991, p. 32, apud WINCK, 2007, p. 45). A abordagem da “verdade” passa a ser feita no plano da criação humana derivada de um processo racional de compreensão da realidade concreta, o que corrobora o pensamento de Nietzsche de que não há sentido em se falar de origem (Ursprung) do conhecimento humano, mas, sim, em invenção (Erfingdung), criação deste conhecimento (FOUCAULT, 2000, p. 262, apud VIANNA, 2008, p. 115/116), desembocando, consoante aponta Foucault (2003, p. 27, apud VIANNA, 2008, p. 117), em múltiplas racionalidades, cada qual com as suas “verdades”. Não deixa de ser curiosa, quanto à analise da “verdade” e da “mentira”, a composição de Edu Lobo e Chico Buarque, Verdadeira Embolada: Na realidade | Pouca verdade | Tem no cordel da história | No meio da linha | Quem escrevinha | Muda o que lhe convém.

[12] As coisas do mundo, inclusive os fatos sociais, são resultados de um sentido enlaçado pelos homens, que edificam, historicamente, através de uma sucessão de escolhas (permitidas pela vontade, intenção, livre arbítrio, livre afirmação), um sistema de valores (cultura) (ARON, 1982, p. 485).

[13] Não há como se negar que o juiz, ao decidir, traz consigo todo seu arcabouço moral, ético e ideológico. A própria palavra “sentença”, na acepção dada pelo Dicionário Houaiss (2001), sugere isso, já que, originando-se do latim sententia, significa “[...] sentimento, parecer, opinião, idéia, maneira de ver, impressão do espírito; modo de pensar ou de sentir, vontade, desejo; opinião (emitida pelo Senado)”.

[14] Governo está aqui alocado como “o conjunto das funções necessárias à manutenção da ordem jurídica e da administração pública” (MALUF, 1995, p. 27), ou, dito de outra forma por Duguit (apud MALUF, 1995, p. 27), no sentido coletivo, “[...] como conjunto de órgãos que presidem a vida política do Estado [...]”, e não no sentido meramente singular de Poder Executivo.

[15] Consoante o Dicionário Acadêmico de Direito de Marcus Cláudio Acquaviva (2003, p. 470/471), a Justiça Social, vinda do latim justitia, já fazia parte da ideia de justiça na época de Platão e Aristóteles, embora o adjetivo social tenha sido incorporado no século XIX, em razão das crises socioeconômicas. A expressão justiça social foi divulgada, inicialmente, pela doutrina social da Igreja, sendo relacionado como princípio divino. Com a ascensão do Iluminismo (sécs. XVII e XVIII), esse conceito tradicional começou a declinar, dando margem ao direito natural (atributo da própria natureza humana). Após, a ideologia historicista (Von Savigny) nivela os atributos da pessoa humana às concepções de cada momento histórico, enquanto o Positivismo revela ser a justiça o direito positivo (lei escrita) de cada povo. Na verdade, em Aristóteles já se vê o moderno significado da expressão justiça social, enunciado como o princípio da justiça distributiva, pelo qual a comunidade deve distribuir a seus membros os bens e encargos de forma equitativa, isonômica.

[16] Kant (apud SILVA, R.P.M., 2005) considera que o direito positivo (não natural) não tem como estabelecer o que é justo e injusto, mas apenas se determinado fato ou ato é lícito ou ilícito sob o ponto de vista jurídico.

[17] Cf. GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. 384 p., em função de interessante cotejo entre o direito posto (leis) e pressuposto (princípios), mostrando-se, em síntese, a necessidade de se transcender o mero direito posto para encontrar na realidade social as raízes do Direito, vendo-o, portanto, num sistema sob influência de vários fatores, sejam políticos, jurídicos, econômicos ou culturais, todos encarados de forma dinâmica, os quais também devem, por certo, atender as demandas sociais igualmente dinâmicas.

[18] O termo Justiça Social, além do significado posto no texto, pode-se referir também, pragmaticamente, à ampliação de certo direito fundamental para a coletividade. Tal sentido, interessante notar, foi utilizado recentemente pelo Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, ao defender a proposta de reforma do sistema de saúde dos EUA, pela qual haveria um sistema público universal de saúde. Na ocasião, em discurso no Congresso, declarou que saúde para todos é uma questão de “justiça social”. Cf. PETRY, André. Depois do palanque, vida real. Veja, São Paulo, n. 2130, 16 set. 2009. p. 108-109. Reportagem.

[19] Hoje, a Jurisprudência, entendida como as decisões judiciais reiteradas dos tribunais (e mesmo resoluções administrativas), é fonte imediata do direito, ao lado da Constituição Federal, leis e tratados internacionais de direitos humanos. Cf., para maiores detalhes, o subcapítulo 1.3, acerca do tema jurisprudencialização/tribunalização.

[20] Percebe-se, com Tercio Sampaio Ferraz Jr. (2003), que o Direito, como objeto, comporta tanto uma investigação zetética (enfoque aberto) quanto dogmática (enfoque fechado). Por isso, pode-se falar de vários focos no estudo do fenômeno jurídico, por exemplo: o estudo do direito civil, processual ou constitucional na álea normativa; o estudo da sociologia jurídica na álea fática; e o estudo da filosofia jurídica na álea valorativa.

[21] Essa abordagem humanista e socializante condiz com a observação feita por Miguel Reale (2002) já citada no texto, no sentido de que não há como se dissociar o aspecto subjetivo da Justiça, envolvido na pessoa humana, e o objetivo, como realização da ordem social justa.


REFERÊNCIAS

ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1982.

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 11. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.

LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. 17. ed. 11. reimpr. São Paulo: Brasiliense, 2005. (Coleção primeiros passos, 62).

MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 1995.

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

SILVA, Celso de Albuquerque. Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

SIQUEIRA JR., Paulo Hamilton. Direito Processual Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2006.

TELLES JUNIOR, Goffredo. O Direito Quântico: ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, [1971?].

TEMER, Michel. É preciso reagir agora. Veja, São Paulo, n. 2109, 22 abr. 2009. p. 17-21. Entrevista.

VIANNA, Túlio. Teoria quântica do Direito: o Direito como instrumento de dominação e resistência. Prisma Jurídico, v. 7, p. 109-129, 2008.

WINCK, Enisa Eneida da Rosa Pritsch. O Vôo do Pássaro Ferido: Os Direitos Fundamentais na Concreção do Direito Privado Contemporâneo. Universidade de Santa Cruz do Sul, Mestrado, mar. 2007. Disponível em: <http://www.unisc.br/cursos/pos_graduacao/mestrado/direito/corpo_discente/2007_dissertacoes/enisa_pritsch_winck.pdf>. Acesso em: 03 dez. 2009.

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Sobre o autor
Ricardo Diego Nunes Pereira

Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Sergipe. Pós-graduado em Direito do Estado (Constitucional, Administrativo e Tributário). Foi secretário-geral da Comissão de Combate ao Aviltamento de Honorários Advocatícios da OAB/SE. Autor de artigos e livros de interesse jurídico. Autor do livro “Direito Judicial Criativo: ativismo constitucional e justiça instituinte”, com menção no Library of Congress, nos EUA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Ricardo Diego Nunes. Mutação social e jurídica:: o direito quântico e a justiça social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4148, 9 nov. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30777. Acesso em: 19 abr. 2024.

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