CONCLUSÃO
O objetivo do presente trabalho foi um breve estudo sobre a possibilidade de superação dos limites materiais sob o prisma da teoria do duplo processo de revisão, bem como sobre a inaplicabilidade das cláusulas intangíveis à luz da teoria da ilegitimidade e ineficácia jurídica das cláusulas pétreas e sobre a impossibilidade jurídica de superação dos limites materiais.
O corolário da ilegitimidade e ineficácia jurídica das cláusulas pétreas se sustenta, principalmente, no argumento de que nenhuma geração pode sujeitar as gerações futuras às suas leis.
Os adeptos da dupla revisão, por sua vez, afirmam a eficácia jurídica e a legitimidade das cláusulas pétreas, no entanto, atribuem-nas um valor relativo. Segundo essa teoria, os limites materiais podem ser superados da seguinte forma: primeiramente se revoga o limite material. Após isso, com o caminho aberto, revoga-se a norma constitucional que outrora fora protegida por uma cláusula de intangibilidade.
Não obstante, essas duas teorias não devem prosperar, mormente no Brasil, que nunca demonstrou grande estima constitucional e, por vezes, torna-se refém de maiorias políticas eventuais, de interesses privados e de grandes instituições financeiras que insistem em ditar reformas constitucionais de encontro à identidade da Lei Maior.
Para se constatar tal fenômeno, basta verificar a atual Constituição Federal, que, com 25 anos de vigência, já sofreu nada menos que 6 (seis) Emendas Constitucionais de Revisão e 81 (oitenta e um) Emendas Constitucionais, sendo que algumas destas já foram declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal e outras, apesar de já terem se livrado da declaração de nulidade pelo Tribunal Constitucional, até hoje suscitam intensos debates doutrinários, devido à duvidosa constitucionalidade, como a reforma da previdência social que instituiu a taxação dos inativos.
Ademais, não se pode negar a limitação implícita das próprias cláusulas pétreas, que a teoria da dupla revisão insiste em não reconhecer. Não haveria razão de existir um núcleo intangível se tal núcleo não fosse protegido como protege as matérias que arrola. Tampouco tal núcleo deveria ser protegido explicitamente, porquanto isso decorre da própria identidade da Constituição.
Frise-se, novamente, que se o poder constituinte originário idealizou determinadas regras consideradas intangíveis por meio de um dispositivo constitucional, é de fácil acepção lógica que tal preceito proibitivo é também considerado insuprível. Pois, se há uma norma pela qual se consubstanciam determinados elementos considerações insupríveis, seria ilógico uma interpretação que pudesse suprimi-los, sob pena de se relativizar a ideia originária do constituinte genuíno.
Os limites materiais, portanto, detêm importante função de resguardar o núcleo intangível da Constituição, impedindo o esvaziamento de sua identidade e preservando a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais, bem como os direitos e garantias coletivos, sociais, políticos e outros direitos e garantias espraiados pela Constituição e que guardem correspondência com sua identidade.
Destarte, não se pode negar que os princípios basilares da Carta Maior restarão malogrados, se o poder constituinte reformador, valendo-se de um duplo processo de revisão, revogar ou alterar as cláusulas intangíveis, seja esvaziando-as, seja mitigando-as. Daí a razão de o constituinte originário instituir disposições intangíveis, que têm por escopo preservar a identidade e o espírito da Constituição.
Ante o exposto, entende-se que as cláusulas pétreas, taxadas no § 4° do art. 60 da Constituição Federal de 1988, são impossíveis juridicamente de serem superadas pelo poder constituinte derivado reformador.
REFERÊNCIAS
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VANOSSI, Jorge Reinaldo. Teoria Constitucional. Buenos Aires, 1975 apud MIRANDA, Henrique Savonitti. Curso de direito constitucional. 5. ed. rev. e atual. Brasília: Senado Federal, 2007.
Notas
[1] Exemplos: art. 290 da Constituição de 1976 de Portugal, art. 95 da Constituição de 1946 da França, art. 139 da Constituição de 1947 da Itália, art. 9° da Constituição de 1961 da Turquia, art. 108 da Constituição de 1951 da Grécia, art. 79 da Constituição de 1949 da Alemanha, art. 115 da Constituição de 1956 da Camboja, art. 37 da Constituição de 1972 de Camarões, arts. 193 e 195 da Constituição de 1976 da Argélia e art. 102 da Constituição de 1984 de Guiné-Bissau.
[2] A propósito, “Já se estabeleceu paralelo entre a limitação à reforma da Constituição e a narrativa de Ulisses, personagem da Odisséia de Homero, amarrado ao mastro do seu navio, para atravessar incólume o mar das sedutoras, mas fatais, sereias” (MENDES; BRANCO, 2013, p. 123).
[3] O poder instituído é secundário, porque advém de uma ordem jurídica preestabelecida, que pressupõe a existência de uma constituição vigente da qual ele retira sua força. É subordinado, porquanto somente poderá ser exercido na forma estabelecida pelo constituinte primogênito. E, alfim, é condicionado, uma vez que seu exercício deve obediência às condições prefixadas no texto constitucional, submetendo-se aos limites impostos pela força de primeiro grau.
[4] O poder originário é inicial, porquanto consiste no ponto de partida de toda a ordem jurídica estatal, que apenas nasce a partir da elaboração da constituição que ele criou. Ele constitui outros poderes, mas não necessita de nenhum outro poder para ser constituído, a não ser a vontade popular. É incondicionado, porque não há condições prefixadas para o seu exercício, não se submetendo nem mesmo à Constituição até então vigente. É ainda ilimitado, uma vez que, se o poder constituinte originário não é subordinado a nenhuma ordem jurídica anterior, não sofrerá, por consequência, nenhum tipo de limitação jurídica ao seu exercício. Finalmente, é especial, porque o poder constituinte de primeiro grau não detém mera atribuição legiferante – elaborar leis e atos normativos em geral –, e sim função especial, qual seja, a criação de uma constituição e, por conseguinte, de uma nova ordem jurídica.
[5] Nesse sentido, julgado do Supremo Tribunal Federal nos autos do Mandado de Segurança n° 23.047, verbis: (...) as limitações materiais ao poder constituinte de reforma, que o art. 64, § 4°, da Lei Fundamental enumera, não significam a intangibilidade literal da respectiva disciplina na Constituição originária, mas apenas a proteção do núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação nelas se protege. (...) uma interpretação radical e expansiva das normas de intangibilidade da Constituição, antes de assegurar a estabilidade institucional, é a que arrisca legitimar rupturas revolucionárias ou dar pretexto fácil à tentação dos golpes de Estado.
[6] Ainda sob outro aspecto: “Em teoria constitucional, já se buscou desfazer a ideia de que se estaria impondo a vontade de uma geração a outra. Parte-se do pressuposto de que o poder constituinte originário é a expressão da vontade do povo e que as limitações que este impõe destinam-se a restringir a vontade dos representantes do povo, no exercício dos poderes constituídos. O próprio procedimento de elaboração da Constituição, com uma suposta perspectiva universalista e atemporal a dominar os seus trabalhos, justificaria limitações aos poderes constituídos, mais voltados para as contingências imediatas da política comum” (MENDES; BRANCO, 2013, p. 121).
[7] Emenda Constitucional n° 26, de 27 de novembro de 1985, à Constituição de 1967, verbis: “Convoca Assembleia Nacional Constituinte e dá outras providências. AS MESAS DA CÂMARA DOS DEPUTADOS E DO SENADO FEDERAL, nos termos do art. 49 da Constituição Federal, promulgam a seguinte Emenda ao texto constitucional: Art. 1º. Os Membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal reunir-se-ão, unicameralmente, em Assembleia Nacional Constituinte, livre e soberana, no dia 1º de fevereiro de 1987, na sede do Congresso Nacional. Art. 2º. O Presidente do Supremo Tribunal Federal instalará a Assembleia Nacional Constituinte e dirigirá a sessão de eleição do seu Presidente. Art. 3º. A Constituição será promulgada depois da aprovação de seu texto, em dois turnos de discussão e votação, pela maioria absoluta dos Membros da Assembleia Nacional Constituinte. (...)”.