RESUMO: Os usuários de serviço público fazem parte de uma relação jurídica dinâmica, a qual é travada com as empresas prestadoras de serviço público, que, por sua vez, possuem relação jurídica com o poder público concedente da utilidade. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 determinou a edição de uma lei que dispusesse acerca dos serviços públicos e previsse, entre outros assuntos, os direitos dos seus usuários. Tal papel coube à Lei nº 8.987/95, que previu um pequeno rol de direitos, os quais devem ser aplicados sem prejuízo da incidência do Código de Defesa do Consumidor. Esta última disposição legal gerou embates na doutrina acerca da aplicação do CDC aos usuários, havendo teorias diversas que tentam explicar se o regime que incide é de direito público ou privado, além de teorias que buscam analisar quais espécies de serviços públicos estão sujeitos à aplicação da lei consumerista. A análise de tais teorias revela-se importante na medida em que informa como se deve dar, e em que extensão, a aplicação do CDC aos usuários de serviço público.
Palavras-chave: Consumidor. Usuário. Serviço Público.
1. INTRODUÇÃO
O tema da aplicação dos direitos consumeristas aos usuários de serviços públicos divide a doutrina e gera polêmica. Malgrado determinações legais expressas nesse sentido no ordenamento jurídico nacional, discute-se em que extensão ocorre a aplicação dos direitos do consumidor aos usuários de serviço público.
A previsão expressa da aplicação encontra-se não só no caput do art. 7º da Lei nº 8.987/95, como também no próprio Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), no seu art. 6º, X, ao dispor ser direito básico do consumidor “a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral.”.
Diante de tais previsões, resta saber como se dá, e em que extensão, a aplicação dos direitos previstos na Lei nº 8.078/90 aos usuários de serviço público, uma vez que a doutrina se divide em dois campos distintos de análise: a natureza das normas que devem incidir na relação jurídica travada entre usuário e empresa prestadora do serviço público, e quais tipos de serviço público são passíveis de incidência do CDC.
O primeiro campo passa a ser objeto de estudo no primeiro momento da pesquisa, ao passo que o segundo campo de análise será estudado em seguida, para que ao cabo, sejam feitas as conclusões acerca da extensão da aplicação do CDC aos usuários de serviços públicos.
2. A RELAÇÃO JURÍDICA ENTRE USUÁRIOS E EMPRESAS PRESTADORAS DE SERVIÇO PÚBLICO E AS NORMAS INCIDENTES
Preambularmente, cumpre destacar que o tratamento consumerista dado ao usuário de serviço público decorre da dinâmica evolutiva das atividades estatais, hoje influenciadas pelos ditames neoliberais. Nesse sentido, assevera Alexandre Santos de Aragão:
A aplicação do Direito dos Consumidores aos serviços públicos é uma decorrência fundamental do movimento de liberalização econômica da década de oitenta e seguintes. Apenas a um serviço público liberalizado, sujeito à lógica econômica da concorrência, haver-se-ia de cogitar da aplicação, em maior ou menor escada, do direito comum de proteção dos consumidores. (ARAGÃO, 2013, p. 498)
Os direitos dos consumidores surgiram como decorrência da necessidade de se tutelar a parcela mais frágil (hipossuficiente) da relação jurídica trava entre as pessoas adquirentes de produtos e serviços e as empresas responsáveis pelo fornecimento destas utilidades. Dentro de um mercado econômico liberal, característica dos tempos hodiernos, a ausência do Estado na proteção dessas pessoas sujeitava-as a abusos e desrespeitos díspares por parte das empresas fornecedoras.
Tendo em vista que nessa dinâmica liberal algumas dessas empresas passaram a ser prestadoras também de serviços públicos, é compreensível, portanto, a intenção do legislador de aplicar aos usuários destas comodidades os mesmo direitos previstos para os consumidores.
Mas para entender a relação jurídica trava entre usuários e empresas prestadoras de serviço público, importa, inicialmente, distinguir usuários e consumidores, perquirindo sobre as particularidades de cada uma destas categorias.
Antônio Carlos Cintra do Amaral (2006) realiza a distinção com base na relação contratual existente em cada caso. O usuário de serviço público insere-se numa relação de serviço público, que é complexa e envolve o que a doutrina italiana denomina de “contratos coligados”: um contrato principal firmado entre o Poder Concedente e a empresa cessionária, e um contrato acessório firmado entre esta e o usuário. Nessa relação, o Poder Público é solidariamente responsável perante o usuário. Por seu turno, o consumidor faz parte de uma relação privada de consumo, firmada tão somente entre este o fornecedor de produto ou serviço, não sendo o Poder Público responsável pela prestação do serviço, mas somente por sua regulação por ser o consumidor a parte hipossuficiente da relação.
César A. Guimarães Pereira (2009) realiza outras distinções importantes. Para este, enquanto o consumidor é um agente da economia de mercado, o usuário, por seu turno, está fora do mercado e integra um regime de direito público. A vulnerabilidade do consumidor é fundamental para a caracterização do seu regime, mas não para o do usuário. Aduz, ainda, que o usuário detém direito de participar da organização e gestão dos serviços públicos, ao passo que o consumidor participa limitadamente apenas do controle dos bens e serviços fornecidos.
Postas essas diferenciações, vê-se que os autores, em suma, defendem que na relação de serviço público em que o usuário é parte, juntamente com a concessionária e o Poder Concedente, configura-se um regime jurídico de direito público, enquanto que na relação de consumo tem-se a configuração de um regime jurídico de direito privado, dado que a relação é travada entre o consumidor e o fornecedor de produto ou serviços.
Contudo, é importante destacar que a doutrina aponta, conforme explica Alexandre Santos de Aragão (2013), três teorias distintas acerca da posição ocupada pelos usuários de serviços públicos: (i) teoria privatista; (ii) teoria publicista; e (iii) teoria mista.
Pela teoria privatista, “o liame entre o concessionário e o particular é de natureza civil”. Assevera este autor, contudo, que “a afirmação de natureza privada da relação não ilidiria a existência de uma série de normas de Direito Público sobre ela incidente [...]”. Para essa teoria, portanto, a relação usuário e concessionário é regida pelo direito privado.
Os adeptos da teoria publicista, segundo o referenciado autor, “sustentam que é o Direito Público que rege as relações entre o particular e o prestador do serviço público, seja este industrial/comercial ou não”. Continua: “Tais relações seriam de Direito Público por se referirem a uma tarefa da Administração Pública e repousarem sobre um direito de natureza jurídica pública: o direito do administrado à prestação do serviço.”. Portanto, para esta teoria, a relação jurídica entre usuário e concessionária seria de direito público, estabelecida por normas regulamentares, estatutárias, não contratuais.
Para a teoria mista, a relação é regida só parcialmente por normas regulamentares. Contudo, “só se entra sob a incidência desse estatuto mediante a celebração de um contrato de prestação de serviços entre dois particulares (usuário e concessionário), que, como tal, é de natureza civil em todos os aspectos que não contrariem a situação estatutária”, conforme ensina o aludido autor, que conclui afirmando que o Direito brasileiro adotou esta teoria.
Dessume-se, portanto, que o direito brasileiro admite a coexistência das normas regulamentares e de normas de natureza privatista, previstas em contrato firmado com a empresa prestadora do serviço público. Cumpre analisar a que tipos de serviço público doutrina e jurisprudência admitem aplicação das normas de proteção ao consumidor.
3. SERVIÇOS PÚBLICOS SUJEITOS À INCIDÊNCIA DO CDC
O propósito do presente trabalho não consiste em dissertar acerca da noção de serviço público e diferenciar as diversas classificações que a doutrina confere a esse instituto. Nada obstante, convém mencionar que, com base na Constituição Federal de 1988, o Estado pode prestar diversas atividades econômicas, existindo entre estas aquelas que podem ser classificadas como serviço público (atividades econômica lato sensu) ou não, por caberem, via de regra, somente à iniciativa particular (atividade econômica strictu sensu)[1].
Partindo da distinção entre serviços públicos uti singuli e uti universi[2], aqueles remunerados por taxas ou tarifas, estes pelos impostos, é possível analisar que os estudiosos acerca do tema divergem, outrossim, quanto aos serviços públicos que são suscetíveis de incidência do Código de Defesa do Consumidor.
Com efeito, Rafael Carvalho Rezende Oliveira (2014) afirma existir três visões:
- a ampliativa, defendida por Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamim e Marcos Juruena Vilella Souto, pela qual o CDC deve ser aplicado indistintamente, já que não fez nenhuma discriminação, ou seja, não depende da forma como o serviço é remunerado;
- a intermediária, defendida por Cláudia Lima Marques e Dinorá Adelaide Musetti Grotti, seguida por Celso Antônio Bandeira de Mello[3], pela qual o CDC incide tão somente sobre os serviços uti singuli, que são os serviços remunerados pelo usuários tanto por taxas como por tarifas, tendo em vista que o art. 3º, §2º, do CDC, ao definir serviço, pressupõe a remuneração deste; e
- a restritiva, pela qual o CDC incide apenas sobre os serviços individuais remunerados por tarifa, excluídos os remunerados por taxas, pro se tratarem de uma relação jurídica tributária, não consumerista, visão com a qual coaduna o autor[4].
Essa é uma tendência, inclusive, observa na jurisprudência do STJ, como é o caso do AgRg no REsp 1089062/SC, Rel. Ministra Eliana Calmon, julgado pela Segunda Turma em 01/09/2009, em que restou decidido que: “Os serviços públicos impróprios ou UTI SINGULI prestados por órgãos da administração pública indireta ou, modernamente, por delegação a concessionários, como previsto na CF (art. 175), são remunerados por tarifa, sendo aplicáveis aos respectivos contratos o Código de Defesa do Consumidor”. O mesmo já havia sido decidido no REsp 609.332/SC, também relatado pela Ministra Eliana Calmon e julgado em 09/08/2005 pela Segunda Turma do STJ.
4. EXTENSÃO DA APLICAÇÃO DO CDC AOS USUÁRIOS
Tendo-se analisado que, pelo direito brasileiro, podem ser aplicadas aos usuários de serviços públicos normas oriundas tanto de regulamentação legal como de origem contratual (teoria mista), além da tendência doutrinária e jurisprudencial de se admitir a incidência do CDC somente aos serviços públicos uti singuli remunerados mediante tarifa, cumpre analisar de que forma o CDC pode incidir, se na sua totalidade, ou com ressalvas.
Pois bem. Ao se distinguir usuário de consumidor, mesmo com as semelhanças apresentadas, é possível enxergar que se trata de duas categorias diferentes de sujeitos e que se submetem a regulações diferentes: os usuários participam de uma relação regrada pelo Direito Administrativo, enquanto os consumidores submetem-se ao direito privado, mais especificamente ao Direito do Consumidor.
Exsurge, desse fato, que não se deve aplicar a estas duas categorias as normas de cada ramo jurídico de forma distinta, e sim com certa cautela. Com efeito, a doutrina pontua algumas incongruências entre os dois regimes, porquanto, segundo Rafael Carvalho Rezende Oliveira (2014), “as relações jurídicas de serviços públicos (Direito Administrativo) e de consumo (Direito do Consumidor) são norteadas por princípios, por vezes, opostos ou distintos”.
Nesse sentindo, Alexandre Santos de Aragão (2013) assevera o seguinte:
Todavia, o CDC não pode ser aplicado indiscriminadamente aos serviços públicos, já que eles não são atividades econômicas comuns, sujeitas à liberdade de empresa e desconectadas da preocupação da manutenção de um sistema prestacional coletivo.
[...]
A razão para tais atividades econômicas serem retiradas da livre iniciativa e submetidas a um regime jurídico tão especial se explica pelo fato de visarem a assegurar os interesses dos cidadãos enquanto integrantes de uma mesma sociedade, não como pessoas individualmente consideradas. (ARAGÃO, 2013, p. 16).
A título de exemplo, este mesmo autor referenciado cita o caso das tarifas, as quais, num regime de direito público, podem ser elevadas a fim de recompor o equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão, o que seria inadmissível pelo regime consumerista, uma vez que seria considerada uma conduta abusiva, já que o valor da tarifa não corresponderia à utilidade que é concretamente usufruída pelo usuário.
Nota-se que a aplicação do CDC aos usuários, portanto, deve observar as particularidades dos dois tipos de relação jurídica existente em cada caso, não devendo incidir o estatuto consumerista de forma indistinta, sob pena de desvirtuar alguns institutos típicos do regime de direito público.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Analisadas as divergências existentes no âmbito doutrinário acerca da aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos usuários de serviço público, chega-se à conclusão de que este estatuto pode ser aplicado, não indistintamente, mas somente naquilo que for compatível com os serviços públicos, visto que estes são regidos sob o manto do Direito Administrativo, cujos institutos possuem certas particularidades em comparação à relação jurídica tutelada pelo Direito do Consumidor.
Não é demais anotar, nesse ponto, que uma solução para a superação dessas divergências poderia advir, como ensina Antônio Carlos Cintra do Amaral (2006), da edição, pelo legislador, de um estatuto próprio de direitos dos usuários de serviço público, conforme, inclusive, foi determinado pelo art. 27 da Emenda Constitucional nº 19/98. Enquanto perdura a omissão dos parlamentares, segue à cargo da doutrina e da jurisprudência determinar as hipóteses e a extensão da aplicação da lei consumerista à categoria dos usuários de serviços públicos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMARAL, Antônio Carlos Cintra do. Distinção entre Usuário de Serviço Público e Consumidor. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, nº. 6, maio/junho/julho de 2006. Disponível em: http://www,direitodoestado.com.br. Acesso em: 14 de abril de 2014.
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos serviços públicos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 25ª ed. São Paulo: Atlas, 2012.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 35ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2014
PEREIRA, César A. Guimarães. Direitos dos Usuários de Serviços Públicos. Informativo Justen, Pereira, Oliveira e Talamini, Curitiba, nº 34, Dezembro/2009. Disponível em: http://www.justen.com.br//informativo.php?&informativo=34&artigo=936&l=pt. Acesso em: 5 de junho de 2014.
Notas
[1] A distinção de atividade econômica strictu e latu sensu é didaticamente realizada na obra de José dos Santos Carvalho Filho, o qual explica que a noção de atividade econômica deve ser compreendida de uma forma geral, significando toda “utilização de recursos visando à satisfação de necessidades”. Assim, dentro dessa noção encontram-se alguns serviços públicos como atividades econômicas latu sensu, além de atividades que em regra compete à livre iniciativa dos particulares, que são as atividades econômicas strictu sensu. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 25ª ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 494.
[2] Com base nos ensinamentos de Hely Lopes Meirelles, serviços públicos uti universi ou gerais são “aqueles que a Administração presta sem ter usuários determinados, para atender à coletividade no seu todo”, ao passo que os serviços uti singuli ou individuais são “os que têm usuários determinados e utilização particular e mensurável para cada destinatário”. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 35ª ed. Malheiros: São Paulo, 2009, p. 335.
[3] Celso Antônio Bandeira de Mello também afirma que a visão restritiva “é a orientação geral correta” MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 741.
[4] Convém mencionar o alerta feito por Alexandre Santos De Aragão: “mesmo entre os serviços uti singuli devem ser distinguidos aqueles gratuitos (ex., escolas e hospitais públicos), com os quais a figura do consumidor não se coaduna, nos termos inclusive do art. 3º, §2º, CDC, que exige o fornecimento da atividade ‘mediante remuneração’. ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direitos dos serviços públicos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 494.