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A desconsideração da personalidade jurídica: a teoria, o CDC e o novo Código Civil

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01/08/2002 às 00:00
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7. Aplicação da teoria da desconsideração

Diante da possibilidade de se desvirtuar a função da personalidade jurídica é que surgiu a doutrina da desconsideração, a qual permite a superação da autonomia patrimonial, que embora seja um importante princípio, não é um princípio absoluto.

De imediato, há que ressaltar que a desconsideração prescinde de fundamentos legais para a sua aplicação 34, existindo inclusive algumas manifestações jurisprudenciais como o julgamento da 11ª Vara Cível do Distrito Federal em 25.02.60 Juiz Antônio Pereira Pinto, anteriores a qualquer positivação da doutrina. Não se trata da aplicação de um dispositivo que autoriza a desconsideração, mas da não aplicação no caso concreto da autonomia patrimonial da pessoa jurídica que está indevidamente usada 35. Nada mais justo do que conceder ao Estado através da justiça, a faculdade de verificar se o privilégio que é a personificação e conseqüentemente, a autonomia patrimonial, direito está sendo adequadamente realizado 36, pois assim, obsta-se o alcance de resultados contrários ao direito.

Entretanto, a importância do princípio da autonomia patrimonial nos leva, todavia, a aplicar a desconsideração com cautela, apenas em casos excepcionais, atendidos determinados requisitos, vale dizer, a regra é que prevaleça o princípio. Tais requisitos são bem específicos referindo-se basicamente ao desvirtuamento no uso da pessoa jurídica.

Não basta o descumprimento de uma obrigação por parte da pessoa jurídica 37, é necessário que tal descumprimento decorra do desvirtuamento da função da mesma. A personificação é um instrumento legítimo de destaque patrimonial, e eventualmente de limitação de responsabilidade 38, que só pode ser descartado caso o uso da pessoa afaste-se dos fins para os quais o direito a criou 39.

A aplicação generalizada da desconsideração acabaria por extinguir uma das maiores criações do direito a pessoa jurídica, e por isso, há que se ter cautela sempre, não considerando suficiente o não cumprimento das obrigações da pessoa jurídica. Assim, já se pronunciou o 1º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, afirmando que "percalços econômicos financeiros da empresa, tão comuns na atualidade, mesmo que decorrentes da incapacidade administrativa de seus gerentes, não se consubstanciam por si sós, em comportamento ilícito e desvio da finalidade da entidade jurídica. Do contrário seria banir completamente o instituto da pessoa jurídica" 40.

Para a desconsideração é fundamental a prova concreta de que a finalidade da pessoa jurídica foi desviada 41, isto é, é imprescindível que restem preenchidos os requisitos para aplicação da desconsideração da personalidade jurídica.


8. Requisitos para a desconsideração

A fim de desconsiderar o fenômeno da personificação, de modo que o patrimônio dos sócios, responda pelas obrigações contraídas em nome dos sócios, é necessário que se configure a fraude ou abuso de direito relacionado à autonomia patrimonial. Além disso, é necessária a existência de uma pessoa jurídica, e que não se trate de responsabilização direta do sócio, por ato próprio.

8.1. A personificação

A própria terminologia usada deixa claro que a desconsideração só tem cabimento quando estivermos diante de uma pessoa jurídica, isto é, de uma sociedade personificada. Sem a existência de personalidade não há o que desconsiderar.

No sistema brasileiro a personalidade jurídica das sociedades nasce com o registro dos atos constitutivos no órgão competente (art. 18. código civil). Sem tal registro, não importa se exista ou não o ato constitutivo, não se pode falar em personificação da sociedade, mas em sociedade de fato ou irregular. Ora, não se tratando de uma pessoa jurídica, não há que se cogitar de autonomia patrimonial, não havendo a possibilidade uso desta autonomia para fins escusos.

Nas sociedades de fato ou irregulares os sócios assumem responsabilidade direta, solidária e ilimitada pelos atos praticados pela sociedade 42, não havendo motivo para a aplicação da desconsideração.

Em termos práticos, além da personificação é necessário que se cogite de uma sociedade na qual os sócios tenham responsabilidade limitada 43, ou seja, de sociedade anônima ou sociedade por quotas de responsabilidade limitada, praticamente as únicas que existem no país. Em outras palavras, a aplicação da desconsideração pressupõe uma sociedade, na qual o exaurimento do patrimônio social não seja suficiente para levar responsabilidade aos sócios.

A exigência da limitação de responsabilidade é de cunho eminentemente prático, pois nada impediria a desconsideração nos demais tipos societários, com o intuito de proteger a própria pessoa jurídica. Todavia, a excepcionalidade da superação da autonomia patrimonial por meio da aplicação da desconsideração, torna mais fácil a aplicação direta da responsabilidade ilimitada dos sócios, quando a mesma já é consignada na lei.

8.2. A Fraude e o abuso de direito relacionados à autonomia patrimonial

O pressuposto fundamental da desconsideração é o desvio da função da pessoa jurídica 44, que se constata na fraude e no abuso de direito relativos à autonomia patrimonial, pois a desconsideração nada mais do que uma forma de limitar o uso da pessoa jurídica aos fins para os quais ela é destinada.

Entretanto, não se trata de orientação pacífica. Fábio Konder Comparato 45 entende que tal formulação da desconsideração é equivocada, entendendo que é a confusão patrimonial o requisito primordial da desconsideração, desenvolvendo o que se costumou chamar de sistema objetivo. Ousamos discordar de tal entendimento.

Sem sombra de dúvida a confusão patrimonial é um sinal que pode servir, sobretudo de meio prova, para se chegar a desconsideração, mas não é o seu fundamento primordial. A confusão patrimonial não é por si só suficiente para coibir todos os casos de desvio da função da pessoa jurídica, pois há casos, nos quais não há confusão de patrimônios, mas há o desvio da função da pessoa jurídica, autorizando a superação da sua autorizando a superação da autonomia patrimonial.

Assim, partilhamos o entendimento de que a fraude e o abuso de direito relacionados à autonomia patrimonial são os fundamentos básicos da aplicação da desconsideração.

8.2.1. Fraude relacionada à autonomia patrimonial

A autonomia patrimonial da pessoa jurídica é um meio legítimo de destaque patrimonial, limitando os riscos da atividade empresarial, facilitando o desenvolvimento da chamada economia de mercado. Todavia, pessoas movidas por um intuito ilegítimo, podem lançar mão de autonomia patrimonial para se ocultar, e fugir ao cumprimento de suas obrigações. Neste particular, estaremos diante de uma fraude relacionada a autonomia patrimonial.

A fraude é o artifício malicioso para prejudicar terceiros, isto é, "a distorção intencional da verdade com o intuito de prejudicar terceiros" 46. O essencial na sua caracterização é o intuito de prejudicar terceiros, independentemente de se tratar de credores 47. Tal prática a princípio é lícita 48, sua ilicitude decorre do desvio na utilização da pessoa jurídica, nos fins ilícitos buscados no manejo da autonomia patrimonial.

Um exemplo bem ilustrativo nos é dado por Fábio Ulhoa Coelho ao se referir ao descumprimento da cláusula de não restabelecimento no trespasse do estabelecimento comercial 49. Quando um comerciante aliena seu estabelecimento (trespasse), normalmente é imposta uma cláusula de não restabelecimento, isto é, se impõe ao alienante a obrigação de não se restabelecer fazendo concorrência ao adquirente. Trata-se de obrigação pessoa do alienante, que para se furtar ao cumprimento da mesma, poderia constituir uma pessoa jurídica, a qual sendo dotada de existência distinta, não seria imposto o não restabelecimento. Todavia, vê-se claramente neste particular um artifício para prejudicar o adquirente, isto é, uma fraude.

Ora, claramente não é esse o fim para o qual foi criada a pessoa jurídica, não podendo prevalecer em detrimento do alcance da almejada justiça 50. A pessoa jurídica não existe para permitir que a pessoa física burle uma obrigação que lhe é imposta, não existe para permitir que pessoa física faça algo que lhe é proibido 51, ela existe como ente autônomo para o exercício normal das atividades econômicas, isto é, para o tráfico jurídico de boa fé 52.

Cogitamos aqui dos chamados negócios indiretos entendidos como aqueles pelas quais as partes tentam alcançar uma finalidade que não é a típica do negócio em questão 53. Todavia, há que se ressaltar que não é suficiente que se busque uma finalidade diversa da típica das sociedades para aplicar a desconsideração, vale dizer, não basta o negócio indireto para a desconsideração. A utilização da pessoa jurídica para alcançar fins diversos dos típicos pode ser válida 54, desde que os fins visados sejam lícitos.

A fraude à lei é uma subespécie dos negócios indiretos, onde a ilegitimidade decorre não do desvio de função, mas da finalidade ilícita de tal desvio 55. Assim, é o uso da autonomia patrimonial para fins ilícitos que permite a desconsideração.

Há que se ressaltar que não basta a existência de uma fraude, é imprescindível que a mesma guarde relação com o uso da pessoa jurídica, isto é, seja relativa à autonomia patrimonial. Fraudes podem ser cometidas pela pessoa jurídica, como a emissão de um cheque sem provisão de fundos, contudo, se tal fraude não tiver qualquer relação com a utilização da autonomia patrimonial não podemos aplicar a desconsideração 56.

8.2.2. O abuso de direito relacionado à autonomia patrimonial

Não é só com a intenção de prejudicar terceiros que ocorre o desvio da função da pessoa jurídica, outros desvios no uso da pessoa jurídica também devem ser coibidos com a aplicação da desconsideração. Neste particular, aparece o abuso de direito 57 como fundamento para a desconsideração.

Os direitos em geral, como o de usar a pessoa jurídica, têm por origem a comunidade, e dela recebem sua finalidade 58, da qual não pode o seu titular se desviar. Quando ocorre tal desvio, não há o uso do direito, mas o abuso do direito que não pode ser admitido. O exercício dos direitos deve atender à sua finalidade social, e não apenas aos meros caprichos de seu titular.Em suma, "é abusivo qualquer ato que por sua motivação e por seu fim, vá contra o destino, contra a função do direito que se exerce." 59, é o mau uso do direito.

No abuso do direito, o ato praticado é permitido pelo ordenamento jurídico 60, trata-se de um ato a princípio plenamente lícito. Todavia, o mesmo foge a sua finalidade social, e sua prevalência gera um mal estar no meio social, não podendo prevalecer. Os direitos se exercem tendo em conta não apenas o seu titular, mas todo o agrupamento social, o exercício dos mesmos normalmente não é absoluto, é relativo.

No uso da personalidade jurídica tais abusos podem ocorrer, e freqüentemente ocorrem. Quando existem várias opções para usar a personalidade jurídica, todas lícitas a princípio, mas os sócios ou administradores escolhem a pior, isto é, a que mais prejudica terceiros, nos deparamos com o abuso de direito.

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Este "mau uso" da personalidade jurídica, isto é, a utilização do direito para fins diversos dos quais deveriam ser buscados, é que primordialmente autoriza a desconsideração, variando com a experiência de cada país outros fundamentos. Ao contrário da fraude, no abuso de direito o propósito de prejudicar não é essencial 61, há apenas o mau uso da personalidade jurídica.

8.3. Imputação dos atos praticados à pessoa jurídica:

Aplicando-se a desconsideração chegaremos a responsabilização dos sócios ou administradores, a qual, todavia, também pode ocorrer em outras situações que não se confundem com a teoria da desconsideração.

Quando os sócios ou administradores extrapolam seus poderes violando a lei ou o contrato social, a lei lhes impõe a responsabilidade por tais atos. Entretanto, não se cogita da desconsideração, mas de responsabilidade pessoal e direta dos sócios. "Em tal caso, há simplesmente uma questão de imputação. Quando o diretor ou o gerente agiu com desobediência a determinadas normas legais ou estatutárias, pode seu ato, em determinadas circunstâncias, ser inimputável à pessoa jurídica, pois não agiu como órgão (salvo problema de aparência) – a responsabilidade será sua, por ato seu. Da mesma forma, quando pratique ato ilícito, doloso ou culposo: responderá por ilícito seu, por fato próprio" 62

Nestes casos, a autoria do ato é imputada diretamente ao sócio ou administrador que o executou 63, não havendo que se suspender, nem momentaneamente a eficácia da autonomia patrimonial, vale dizer, a pessoa jurídica não é obstáculo ao ressarcimento. É o pressuposto da licitude 64, necessário para distinguir a desconsideração de outros casos de responsabilização dos sócios. "Portanto, quando a lei cuida de responsabilidade solidária, ou subsidiária, ou pessoal dos sócios, por obrigação da pessoa jurídica, ou quando ela proíbe que certas operações, vedadas aos sócios, sejam praticadas pela pessoa jurídica, não é preciso desconsiderar a empresa, para imputar as obrigações aos sócios, pois, mesmo considerada a pessoa jurídica, a implicação ou responsabilidade do sócio já decorre do preceito legal. O mesmo se diga se a extensão da responsabilidade é contratual" 65.

Nos casos dos artigos 10 e 16 do Decreto 3.708/19, 117 e 158 da Lei 6.404/76, 135 da Lei 5.175/66 (CTN) não tratamos da desconsideração, nem de suas origens, como pretendem alguns. Estamos diante de hipóteses de responsabilidade civil simples dos sócios, ou administradores 66, não foi a pessoa jurídica que teve sua finalidade desvirtuada, foram as pessoas físicas que agiram de forma ilícita, e por isso tem responsabilidade pessoal.

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Sobre o autor
Marlon Tomazette

procurador do Distrito Federal, advogado em Brasília (DF), professor de Direito do UniCEUB e da Escola Superior de Advocacia do Distrito Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TOMAZETTE, Marlon. A desconsideração da personalidade jurídica: a teoria, o CDC e o novo Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. -335, 1 ago. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3104. Acesso em: 22 nov. 2024.

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