9. A desconsideração da personalidade jurídica no direito positivo brasileiro
A teoria da desconsideração prescinde de fundamentos legais para a sua aplicação, uma vez que nada mais justo do que conceder ao Estado através da justiça, a faculdade de verificar se o direito está sendo adequadamente realizado. Apesar disso, o legislador houve por bem acolher a teoria da desconsideração em determinados dispositivos, quais sejam, artigos 28 da Lei 8.078/90, artigo 18 da Lei 8.884/94 e artigo 4º da Lei 9.605/98, embora sem uma precisão desejável.
Tais dispositivos embora desprovidos da melhor técnica, por confundirem institutos diversos, acolhem ainda que de maneira confusa a desconsideração no direito brasileiro.
O pioneirismo coube ao Código de Defesa do consumidor, cujas regras foram copiadas e estendidas a outras relações, que não as relações de consumo. Em relação às infrações a ordem econômica (Lei 8.884/94) houve praticamente a repetição do teor do artigo 28 da Lei 8.078/90. Posteriormente, acolheu-se a desconsideração em relação às lesões ao meio ambiente (Lei 9.605/98), também praticamente reproduzindo o artigo 28, § 5º do Código de Defesa do Consumidor. Assim sendo, em termos de direito positivo a análise a ser feita é aquela à luz do CDC.
De imediato há que se afastar o entendimento de que o artigo 2º, § 2º da CLT acolhe a desconsideração 67. Tal dispositivo excepciona a autonomia resultante da formação de grupos empresariais, determinando a solidariedade das várias empresas integrantes do grupo, sem cogitar do abuso ou da fraude.
Ora, não se trata de desconsideração, mas de simples solidariedade, por três motivos: "primeiro, porque não se verifica a ocorrência de nenhuma hipótese que justifique sua aplicação como fraude ou abuso; segundo, porque reconhece e afirma a existência de personalidades distintas; terceiro, porque se trata de responsabilidade civil com responsabilização solidária das sociedades pertencentes ao mesmo grupo" 68.
Em tal hipótese não se discute o uso da pessoa jurídica, mas se protege de maneira direta o empregado, garantindo-lhe uma responsabilidade solidária das diversas integrantes do grupo, independentemente de fraude ou abuso. Não se suprime sequer momentaneamente a personalidade jurídica, apenas são estendidos os riscos da atividade econômica.
10. A desconsideração no código de defesa do consumidor
A introdução da teoria da desconsideração no direito positivo brasileiro é atribuída ao artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, o qual, todavia, se afastou dos pressupostos, e desvirtuou a teoria, consagrando hipóteses diversas sob a mesma rubrica.
Trata-se de dispositivo aplicável exclusivamente às relações de consumo, não havendo que se cogitar de sua aplicação extensiva, a menos que se afigurem presentes os elementos de uma eventual aplicação analogia. Há que se ressaltar que em relação às infrações à ordem econômica, e ao meio ambiente há uma legislação própria que reproduz o CDC, não se devendo falar em aplicação analógica.
10.1. Hipóteses autorizadoras da desconsideração
O caput do artigo 28 do CDC enumera as hipóteses nas quais é cabível a desconsideração da personalidade jurídica, em redação pouco aconselhável.
A primeira hipótese de desconsideração elencada pelo artigo 28 do CDC, é o abuso de direito, que representa o exercício não regular de um direito. A personalidade jurídica é atribuída visando determinada finalidade social, se qualquer ato é praticado em desacordo com tal finalidade, causando prejuízos a outrem, tal ato é abusivo e, por conseguinte atentatório ao direito, sendo a desconsideração um meio efetivo de repressão a tais práticas. Neste particular, o CDC acolhe a doutrina que consagrou e sistematizou a desconsideração.
Na seqüência o código refere-se ao excesso de poder, que diz respeito aos administradores que praticam atos para os quais não tem poder. Ora, os poderes dos administradores são definidos pela lei, pelo contrato social ou pelo estatuto, cuja violação também é indicada como hipótese de desconsideração. Assim, podemos reunir em um grupo o excesso de poder, a violação ao contrato social ou ao estatuto, a infração a lei e os fatos ou atos ilícitos 69. A redundância na redução deve ter resultado de uma preocupação extrema em não deixar lacunas, o que levou a uma redação tão confusa.
Tais hipóteses não correspondem efetivamente a desconsideração, pois se trata de questão de haver imputação pessoal dos sócios ou administradores, não sendo necessário cogitar-se de desconsideração 70. A inclusão de tais hipóteses é completamente desnecessária, pois muito antes do Código de Defesa do Consumidor já existiam dispositivos para coibir tais práticas, como os artigos 10 e 16 do Decreto 3.708/19, 117 e 158 da Lei 6.404/76 e 159 do Código Civil de 1916, que tratavam da responsabilidade pessoal dos sócios ou administradores 71.
Por fim, o caput do artigo 28 menciona a falência, insolvência, encerramentos das atividades provocado por má administração. Neste particular, mais uma vez nosso legislador não foi feliz na medida em que a definição do que vem a ser má administração, é tão abstrata e subjetiva, que poderá levar a inaplicabilidade do dispositivo.
Fábio Ulhoa Coelho tenta esclarecer a má administração, como a conduta do administrador eivada de erros, por desatender as diretrizes técnicas da ciência da administração 72, afastando também tal hipótese dos contornos da desconsideração propriamente dita. Tal desleixo dos administradores é uma questão de comprovação muito difícil, pois uma atitude arriscada que gera prejuízos pode ser considerada má administração, contudo, se a mesma atitude produz grandes lucros, trata-se de atitude arrojada e genial, demonstrando a dificuldade prática da introdução deste particular.
10.2. A desconsideração e os grupos, consórcios e sociedades coligadas.
Os parágrafos 2º, 3º e 4º do artigo referem-se a responsabilidade pelos danos causados ao consumidor no caso de grupos societários, consórcios e sociedades coligadas, estabelecem a responsabilidade no caso de sociedades que mantêm entre si alguma relação.
Nos grupos, cujo conceito é controvertido, há responsabilidade subsidiária, vale dizer, se a sociedade causadora do dano ao consumidor, não tiver condições de ressarci-lo, o consumidor poderá se socorrer do patrimônio das demais integrantes do grupo. Já nos consórcios (reuniões de sociedades para realizar determinado empreendimento – art. 278. da Lei 6.404/76) a responsabilidade é solidária, ou seja, o consumidor escolhe entre as integrantes do consórcio aquela da qual ele irá cobrar o seu prejuízo. Por fim, há referência às sociedades coligadas ( ma é sócia da outra com mais de 10% do seu capital, sem controla-la - artigo 245, § 1º da Lei 6.404/76), exigindo-se a culpa para responsabilização da sociedade que não agiu perante o consumidor.
Tais hipóteses também não se referem à desconsideração propriamente dita 73, mas a instituto diverso, no sentido da extensão da responsabilidade das sociedades que mantêm relações entre si.
"Embora estejam intergrados no rótulo da desconsideração, as hipóteses ali previstas se afastam do tema. Nesses parágrafos há apenas a preocupação com a responsabilidade das sociedades controladas, consorciadas e integrantes de grupo, dando-lhe responsabilidade subsidiária ou solidária e reforçando os limites da coligadas. Note-se, pois, que não há efetiva desconsideração, mas, sim, consideração de cada uma, aumentando o seu âmbito de responsabilidade " 74.
10.3. O parágrafo quinto do artigo 28
Elencando expressamente no "caput" algumas causas de desconsideração, o artigo 28 § 5º afirma que "também poderá ser desconsiderada a personalidade jurídica, sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores". A extensão de tal dispositivo deu margem a diversas controvérsias de interpretação, e novas críticas.
Para Zelmo Denari 75, o parágrafo quinto é que foi vetado, ao contrário do parágrafo primeiro, que consta como vetado, a luz das razões do veto presidencial. Assim, o referido parágrafo não existe no mundo jurídico. Tal interpretação é incoerente na medida em que pressupõe um erro legislativo do presidente da república, não corrigido num prazo de 10 anos.
Luiz Antônio Rizzato Nunes 76 ao analisar o referido dispositivo entende que as hipóteses do caput do artigo 28 são meramente exemplificativas, sendo completadas pelo parágrafo quinto, pelo qual bastaria a existência do prejuízo em razão da autonomia patrimonial para aplicar a desconsideração. Tal linha de entendimento parece ser partilhada por Guilherme Fernandes Neto 77.
Tal orientação, embora seja plausível, não é melhor sobre a matéria. Conquanto a proteção do consumidor seja importante, sendo um princípio basilar do CDC, é certo que a pessoa jurídica também é importantíssima, sendo um dos mais importantes institutos do direito privado. A prevalência de tal interpretação representaria a revogação do artigo 20 do Código Civil no âmbito do direito do consumidor, objetivo que não parece ter sido visado pelo legislador pátrio, dada a importância do instituto. Além do que, a própria forma com que foi colocada tal regra, no parágrafo quinto, não nos permite interpretá-la literalmente e, por conseguinte ignorar o caput do referido dispositivo.
Luciano Amaro faz uma crítica extremamente procedente afirmando que a interpretação literal levaria a seguinte situação analógica: "Se causares prejuízo com abuso irás preso; também irás preso se causares prejuízo por má administração; e também irás preso sempre que, de qualquer forma, causares prejuízo" 78. Não é o simples prejuízo que autoriza a desconsideração, há que se fazer uma interpretação lógica e teleológica do dispositivo.
Para Fábio Ulhoa Coelho 79 deve se fazer uma interpretação sistemática, aplicando o § 5º somente no que tange às sanções não pecuniárias (a proibição de fabricação do produto, suspensão das atividades ou do fornecimento de produto ou serviço – artigo 56 do CDC), porquanto na interpretação literal se desvirtua completamente a teoria, e se revoga o artigo 20 do C. C, extinguindo a pessoa jurídica no âmbito do direito do consumidor. Embora mais coerente, tal posição nos parece também equivocada porquanto o texto do referido parágrafo fala em ressarcimento, o que indica a natureza pecuniária da aplicação desconsideração.
Outros autores, a nosso ver, com razão entendem que o referido parágrafo não pode ser interpretado como uma extinção da autonomia patrimonial no âmbito do direito do consumidor, devendo ser interpretado como uma possibilidade de desconsideração a mais, sem contudo, abstrair os fundamentos da desconsideração. Para Luciano Amaro, há que se entender o parágrafo como uma abertura do rol das hipóteses, sem abrir mão dos pressupostos teóricos da doutrina da desconsideração 80.
Genacéia da Silva Alberton afirma que: "no que se refere ao § 5º do art. 28, é necessário interpretá-lo com cautela. A mera existência de prejuízo patrimonial não é suficiente para a desconsideração. Leia-se, quando a personalidade jurídica for óbice ao justo ressarcimento do consumidor" 81.
Esse justo ressarcimento é o cerne da interpretação do referido dispositivo. Haverá a desconsideração se a pessoa jurídica foi indevidamente utilizada, e por isso impede o ressarcimento do consumidor, pois em tal caso haveria injustiça. No caso, por exemplo, de um acidente com os produtos, ou de um furto de todo o dinheiro da sociedade, o não ressarcimento do consumidor é justo, pois decorreu de um fato imprevisto, e não da indevida utilização do expediente da autonomia patrimonial. Assim, quando a personalidade jurídica for usada de forma injusta, caberá a desconsideração.
E não se diga que o risco inerente à atividade econômica impõe a desconsideração na hipótese, pois tal risco é da pessoa jurídica, sujeito de direito autônomo e não do sócio. O risco do sócio é limitado de acordo com o tipo societário escolhido, não tendo a ver com a sorte econômica da empresa. Ademais, ainda que se cogite de uma responsabilidade objetiva há que existir um nexo de causalidade entre a conduta do sócio ou do administrador e o dano, o que só ocorrerá em se prestigiando essa última interpretação.
11. A desconsideração no novo Código Civil
O projeto de Código Civil, ao tratar da desconsideração, estabelecia a expulsão do sócio, ou a dissolução da sociedade, o que foi extremamente criticado pela doutrina, pois além de se distanciar da teoria da desconsideração não atendia aos objetivos da mesma. Todavia, o projeto já foi emendado e passou a ter a seguinte redação:
"Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, o juiz pode decidir, a requerimento da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica".
A desconsideração neste particular vem claramente positivada como uma forma de repressão ao abuso na utilização da personalidade jurídica das sociedades, fundamento primitivo da própria teoria da desconsideração. Assim, vê-se que o direito positivo acolhe a teoria da desconsideração em seus reais contornos.
Tal abuso poderá ser provado pelo desvio da finalidade ou pela confusão patrimonial. Ao contrário do que possa parecer, nosso código não acolhe a concepção objetiva da teoria, pois a confusão patrimonial não é fundamento suficiente para a desconsideração, sendo simplesmente um meio importantíssimo de comprovar o abuso da personalidade jurídica, que ocorre nas hipóteses do abuso de direito e da fraude. Destarte, o necessário para a desconsideração é o abuso da personalidade jurídica, que pode ser provado inclusive pela configuração de uma confusão patrimonial.
A par disso, a nova legislação deixa claro que a desconsideração não extingue a pessoa jurídica, mas estende os efeitos de determinadas obrigações aos sócios e administradores, vale dizer, há uma suspensão episódica da autonomia da pessoa jurídica.
Não se trata, em verdade, de uma inovação, pois a aplicação da desconsideração independe de fundamento legal, e já podia ser aplicada com os mesmos contornos. Todavia, nossa tradição, extremamente ligada ao direito escrito, impõe o acolhimento da teoria da desconsideração pelo direito positivo, facilitando sua aplicação, tendo em vista a existência de um fundamento legal explicito. Portanto, a positivação da teoria em tais termos mostra-se extremamente interessante, para se reconhecer a relativização da personalidade jurídica 82.