Resumo: O presente trabalho aborda o conflito existente entre o crime de curandeirismo e o principio da intervenção mínima, a partir das crenças arraigadas no Brasil, que acreditam verdadeiramente nas curas que podem concretizar. Desta forma, é imprescindível a revisão de uma maneira crítica do delito, analisando de forma minuciosa a afronta a liberdade de crença que é salvaguardado pela Carta Magna. Cabe ao legislador nortear-se através do principio da intervenção mínima para criminalizar condutas verdadeiramente necessitadas de especial atenção, o que não é o caso do delito ora abordado.
Palavras-Chave: Curandeirismo; Intervenção Mínima; Liberdade religiosa.
Sumário: Introdução. 1. Curandeirismo 2. Intervenção Mínima 3. Colisão entre curandeirismo e intervenção mínima. Conclusão. Bibliografia.
INTRODUÇÃO
O Brasil, por se tratar de um país que detém um longo histórico de crendices e culturas que englobam a prática de cura, admite-se a tipificação do delito de curandeirismo no seu Código Penal. A priori é patente que é equivocada tal admissibilidade, todavia deve-se analisar de forma minuciosa, para que não venha incorrer em injusto.
É uma questão sem duvida delicada, por conta da diversidade e das particularidades de cada religião que tem suas ritualísticas próprias.
Em se tratando de um Estado laico como é o Brasil, é assegurado a todo cidadão a liberdade religiosa que esta consubstanciada na Constituição Federal, não sendo possível que seja criminalizada uma conduta oriunda da religião da escolha do individuo, respeitando sempre o principio constitucional da intervenção mínima.
A priori, analisando o presente estudo, o instituto ora abordado, ou seja, o curandeirismo não necessita de atenção especial do Direito Penal, que é a ultima ratio, já que afronta uma garantia insculpida na Carta Magna, ferindo portanto, o princípio da intervenção mínima.
1. CURANDEIRISMO
O curandeirismo tem sido uma questão pouco explorada na era moderna. Os doutrinadores e juristas não direcionam muita atenção ao tema, restando aos antropólogos tratar deste delito, que ainda visivelmente envolve mais uma questão cultural e de crenças do que mesmo jurídica.
Antes mesmo de adentrarmos no tema propriamente dito, faz-se mister enunciar o artigo do Código Penal Brasileiro que traz em seu bojo o crime de Curandeirismo.
Preceitua o Código Penal brasileiro:
Art. 284. Exercer o curandeirismo:
I – prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer substância;
II – usando gestos, palavras ou qualquer outro meio;
III – fazendo diagnósticos:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos.
Parágrafo único: Se o crime é praticado mediante remuneração, o agente fica também sujeita à multa.
É de percepção solar que o Brasil é um país laico, onde a liberdade de crenças e culturas é livre, sendo inegável que ambas estão inúmeras vezes ligadas ao curandeirismo. A priori, a de se observar uma colisão entre o tipo penal transcrito no artigo 284 do Código Penal e a liberdade de crença que é direito fundamental do povo brasileiro, tipificado no artigo 5º da Constituição Federal, que é de suma importância trazer a baila.
Assevera a Constituição Federal (1988), no seu artigo 5, inciso “VI é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”
Assevera Dasmaceno (2003, p. 11):
No Candomblé e na Umbanda, as práticas não se resumem a rezas, orações, cultos, liturgias: há sim dimensão prática, empírica, em que se usam determinados elementos orgânicos e objetivos numa ritualística própria, a exemplo dos animais, das imagens, dos atabaques, dos fetiches etc.
É imprescindível fazer uma prévia distinção entre Curandeirismo (artigo 284 CP) e Charlatanismo (artigo 283 do CP), uma vez que são constantemente confundidos.
De acordo com Bitencourt (2012, p.467)
Originariamente, o termo charlatão era empregado em relação àqueles indivíduos que apregoavam nas feiras ou na via pública, com profusão e exagero, as virtudes dos produtos ofertados, entre eles, substâncias de efeitos curativos milagrosos.
Nesta senda, pode-se observar a indiscutível semelhança entre os dois institutos. Todavia, o praticante do charlatanismo traz consigo a falta de sinceridade do agente que tem consciência que é inapto para exercer a cura pregada.
A origem da palavra charlatão é oriunda do italiano ciarlatano que seria o conversador, enrolador, alguém envolvente com “charla”, um vendedor de ilusões.
Embora o delito de Curandeirismo, tipificado no artigo 284 do Código Penal, não seja muito abordado é de suma importância que se faça a conceituação do instituto.
De acordo com Magno (2009):
O curandeiro acredita sinceramente na veracidade do tratamento aplicado e, muitas vezes, nem cobra por isso. O curandeirismo é crime previsto no art. 284 do CP porque o método alternativo utilizado pode piorar a situação do enfermo ou, no mínimo, postergar o início de um tratamento efetivo. Só não haverá crime quando a pessoa que se propõe a tratar o doente está vinculado a uma religião e utiliza seus procedimentos.
Como se pode notar, o delito ora em estudo dedica-se a atividade de curar sem habilitação ou título legal. É, portanto, indispensável que sua pratica seja habitual, de forma reiterada, caso contrário não se configura o curandeirismo.
Como foi transcrito acima no artigo 284 do Código Penal Brasileiro, que faz referência ao delito, traz em seu bojo três modos de execução do tipo penal.
a) Prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer substância: O verbo prescrever da ideia de receitar, recomendar aquela substancia que o sujeito ativo acredita que trará cura; o verbo ministrar tem o condão de fornecer, dar para que outrem venha a consumir e por fim o verbo aplicar tem a significação de empregar, por em prática.
b) Usando gestos, palavras ou qualquer outro meio: Os gestos podem indicar posições especiais, os quais o sujeito passivo deve realizar ou até mesmo movimentos conhecidos como “passes”. As palavras são mais conhecidas, uma vez que as “rezas” entram nesse ponto. Todavia, insta trazer a baila que já é pacifica a jurisprudência em entender que tanto as “rezas” como os “passes” se praticados de boa fé, não caracterizam curandeirismo.
c) Fazendo diagnósticos: Realizar diagnóstico é identificar uma determinada doença partindo da premissa dos sintomas, sendo indiferente se o agente atue de forma onerosa ou não.
2. INTERVENÇÃO MÍNIMA
De acordo com Rodrigues (2012, p. 21)
Trata-se do segundo princípio basilar de Direito Penal, sendo que, muitas vezes, esquecido, ignorado e violado, muito mais que somente um princípio, deve ser considerado uma meta a ser alcançada, uma orientação a ser seguida, o caminho para um Direito Penal moderno, garantista e, portanto, mínimo.
É de clara percepção, que o Direito Penal somente se deve preocupar em proteger os bens mais importantes e imprescindíveis à vida em sociedade. Desta forma o principio ora abordado é limitador do poder punitivo do Estado.
Segundo o ilustre doutrinador Greco (2010, p.45)
O poder punitivo do Estado deve estar regido e limitado pelo principio da intervenção mínima. Com isto, quero dizer que o Direito Penal somente deve intervir nos casos de ataques muito graves aos bens jurídicos mais importantes. As perturbações mais leves do ordenamento jurídico são objeto de outros ramos do Direito.
O princípio da intervenção mínima, não se limita apenas a indicar quais são os bens que devem ser protegidos, ou seja, especial atenção, mas se presta a realizar a chamada descriminalização, uma vez que deve intervir o menos possível na vida em sociedade, sendo, portanto, a ultima ratio.
É importante salientar que há duas vertentes em se tratando deste principio. De um lado serve como limitador do poder punitivo do Estado, orientando o legislador na seleção dos bens que merecem especial atenção; de outro, servindo para nortear o legislador na retirada do raio de proteção do Direito Penal aqueles bens que já podem ser protegidos de forma satisfatória pelos demais ramos do direito.
Desta forma, fica claro que o principio irradia determinações delimitadoras, tanto para o legislador como para o magistrado, no que tange a incriminação de condutas, tornando-se legitimados a agir, criminalizando comportamentos, somente em marcos estreitos.
De acordo com Greco (2010, p. 47)
Sendo o direito penal o mais violento instrumento normativo de regulação social, particularmente por atingir, pela aplicação das penas privativas de liberdade, o direito de ir e vir dos cidadãos deve ser ele minimamente utilizado. Numa perspectiva político-jurídica, deve-se dar preferência a todos os modos extrapenais de solução de conflitos. A repressão penal deve ser o último instrumento utilizado, quando já não houver mais alternativas disponíveis.
É insustentável que todo tipo de ofensa aos bens jurídicos legitimem a intervenção do legislador criminal na criação de tipos penais, mas somente aqueles que por sua grandeza e propriedade, não admitam complacência.
3. COLISÃO ENTRE O CURANDEIRISMO E A INTERVENÇÃO MÍNIMA
Com o advento da tipificação do delito em tela, é de grande percepção que o curandeirismo afronte o principio da intervenção mínima, uma vez que o Brasil por se tratar de um Estado secular, ou seja, laico não possui uma religião oficial, e como é sabido e ressabido, o Estado brasileiro tem uma cultura muito diversificada tratando-se de crenças.
Nesta forma, por se tratar de um Estado laico entende-se que por meio das leis e ações o Brasil venha a favorecer a boa convivência entre os credos e religiões, apoiando a luta contra o preconceito e a discriminação.
De um lado existe a fé na cura a partir das crendices, seitas e religiões, tudo consolidado no direito de liberdade de crença . Alhures há indivíduos que agem claramente de forma ludibriadora, aproveitando-se da fé do povo em ser curado através das mesmas religiões. Em virtude deste embate, deve-se observar o liame sutil da boa-fé do agente.
É patente que não se trata de uma infração grave á ordem, uma vez que a mesma ordem admite a conduta.
De acordo com Damasceno (p. 124-125)
O art. 284 alude à prática de curandeirismo, como se verdadeiramente representasse uma infração grave à ordem histórico-socialmente estabelecida. Se daquele estatuto constasse remissão à fraude, ao engodo, à trapaça, voltados ao prejuízo da sociedade como um todo, estaria justificada a existência do tipo. Não obstante, como norma incriminadora silencia, denominando curandeirismo a prática de curar ou de tentar alternativamente, sem o diploma de médico, deve-se cominar a pena do art. 284 a tantos quantos hajam realizado uma das três espécies do fato-tipo. Não importam a leal intenção de curar, a boa-fé, a dimensão sócio-cultural do agente, a obtenção de cura e a idoneidade curativa da substância: eis configurado o crime de curandeirismo.
Em se tratando de matéria religiosa, fica perceptível que a intenção não é de curar e sim de conceder ao fiel que ali se encontra uma forma de abrandamento espiritual das mazelas. Desta feita, não há que se falar em crime de curandeirismo, uma vez que não tem o sujeito ativo o dolo de enganar, ludibriar o fiel que acredita que possa ser curado a partir da pratica de determinado ato ou a ingestão de uma substancia.
Segundo Cunha (2011)
Apesar de existirem regras, princípios, padrões, há de se afirmar que todo conhecimento, por mais científico, tem por premissa um fenômeno de crença e de certeza indireta, no qual se depositam as expectativas antropológico-sociais dos modelos de conhecimento. E, dentre mil outros fatores, há uma necessidade quase que inconsciente do ser humano de se buscar caminhos alternativos e práticas alternativas para alcançar a sua cura.
Desta forma, não pode o Estado intervir na crença de toda uma nação. É patente que há um confronto do Curandeirismo com o principio da intervenção mínima, devendo o Estado se fazer presente o mínimo possível, em se tratando de criminalização de uma conduta. Assim o fazendo, é clara a afronta a Constituição Federal, no tocante a liberdade religiosa.
CONCLUSÃO
Como se pode observar, o Direito Penal não deve dar especial atenção ao ponto de criminalizar a conduta ora analisada. Sendo de fundamental importância uma revisão crítica do instituto, com o escopo de evitar injustiças de quem age de boa fé devido à cultura que lhe é passada de geração a geração, por conta a grande diversidade de crenças.
Nesta assentada, é de clareza veemente que a conduta é plenamente ajustada a convivência social, uma vez que mesmo que prevaleça a reprimenda, as pessoas ainda irão continuar buscando os curandeiros para encontrar a solução para suas mazelas, muitas vezes inexistentes nos tratamentos científicos.
Desta forma, a conduta é socialmente aceita e culturalmente consolidada, não à razão de se tipificar e qualificar o crime ou até mesmo quaisquer atos com o escopo de curar. O individuo agindo de boa-fé não deve o Estado interferir e caso venha a acarretar consequências danosas, deve ser abordado pelos demais ramos do direito, dentre eles o Direito Civil e não o Direito Penal, que é a ultima ratio, estando à conduta firmada na tolerância e adequação social, sendo esta conduta suportada pela ordem social.
Todavia, o que vemos na prática é um despreparo do poder legislativo no nascedouro das leis incriminadoras, que acabam por prestar especial atenção a grande parte das condutas humana sem necessidade, ocasionando uma criminalização desenfreada, o que propicia em uma afronta ao princípio da Intervenção mínima.
BIBLIOGRAFIA
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