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Limites e possibilidades à aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos serviços públicos no Brasil

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01/02/2015 às 13:44
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2 – CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR (CDC) E OS SERVIÇOS PÚBLICOS

 

2. 1. ABRANGÊNCIA DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

O fundamento da proteção ao consumidor decorre de exigência constitucional. Assim, prevê o art.5, inc. XXXII, que o “Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. É bem de ver que essa proteção configura-se como direito fundamental. Já no art.170 aduz-se à “defesa do consumidor” como principio basilar da atividade econômica.

É, pois, o código do consumidor, lei com importante função: é instrumento de tutela dos direitos fundamentais e é alicerce, base, estrutura, que molda e caracteriza as atividades de mercado. Visou o código a funcionalizar, a socializar as relações de mercado, de maneira a vedar comportamentos puramente individualísticos em detrimento da massa de consumidores.

É o reconhecimento de que tais relações também são meios de realização do projeto constitucional.[32]

Portanto, as relações de mercado não podem se desvencilhar da noção de que o consumidor possui uma gama ampla de direitos que precisam ser observados. Em outras palavras, pela funcionalização, o próprio fundamento das relações de mercado é baseado na garantia à tutela do consumidor – o que estiver fora daí sequer pode ser considerado como tal.[33]

Por isso, que o Código de Defesa possui aplicação abrangente, ampla; onde houver relação de consumo, haverá incidência de suas normas.[34]

 

2. 2. INTEGRANTES DA RELAÇÃO DE CONSUMO

Não é qualquer relação jurídica que se qualifica como de consumo para fins de incidência do Código de Proteção ao Consumidor. Exige a lei, por exemplo que o sujeito que se utiliza do produto ou serviço seja destinatário final. A previsão normativa de que seja o consumidor destinatário final excluiriam de tal conceito aqueles que se utilizassem de bens e serviços como insumo para outras atividades, o que comumente ocorre com as pessoas jurídicas, máxime as empresas.

Deveras, a lei 8.078/90 estabelece e conceitua o que se deve entender por consumidor, fornecedor e serviços. Segundo art. 2 da digitada lei, considera-se consumidor “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”[35]. Em seu art. 3°, há o conceito de fornecedor, considerado como tal: “toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de (...) prestação de serviços” (grifado). Já o § 2° do artigo define serviço como:

qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.

2.2.1 – O consumidor[36]

É o consumidor figura central de preocupação do Código de Defesa do Consumidor (CDC). Reconheceu o legislador que o mesmo é vulnerável frente às práticas do mercado de consumo. Ademais, foi incumbido o Estado da criação e do desenvolvimento de uma Política Nacional de Relações de Consumo apta a garantir à figura mais fraca da relação consumerista a efetiva proteção à sua dignidade, saúde, segurança e melhoria da qualidade de vida.

Resta, agora, entender quem é essa figura estelar, que tanto se preocupou o Código.

Com efeito, a conceituação normativa de consumidor, por demasiada ampla, deixou a cargo da jurisprudência e doutrina a sua limitação.

 Na doutrina, digladiam-se a corrente finalista e a maximalista.

Para os chamados maximalistas, o art.2° do CDC deve ser interpretado de maneira ampla, de modo que seria consumidor o destinatário fático do produto. Assim, bastaria a retirada do bem do mercado de consumo (independentemente de se utilizar-se do mesmo como insumo em outra atividade produtiva), que haveria relação de consumo. [37]

No entanto prevaleca a corrente dita finalista. Para ela, consumidor é o destinatário final e econômico do produto ou serviço, o qual faz uso para atender necessidade própria e não os utilizando para outra atividade empresarial. Bem expõe CLÁUDIA LIMA MARQUES que subtrai-se do conceito de consumidor, via de regra, a figura do profissional, já que:

destinatário final é o Endverbrauchen, o consumidor final, o que retira o bem do mercado ao adquirir ou simplesmente utilizá-lo (destinatário final fático) e não que  utiliza o bem para continuar a produzir, pois ele não é  consumidor final, ele está transformando o bem, utilizando o bem para oferecê-lo por sua vez ao cliente, seu consumidor[38]

Na opinião da autora, haveria contrato de consumo entre o fornecedor e o consumidor profissional quando o contrato em questão não visar ao lucro, não visar a sua atividade profissional.

Sobre o tema, JOSÉ GERALDO BRITO FILOMENO afirma que :

o conceito de consumidor adotado pelo Código foi exclusivamente de caráter econômico, ou seja, levando-se em consideração tão somente o personagem que no mercado de consumo adquirir bens ou então a prestação de serviços, como destinatário final, pressupondo-se que  assim age com vistas ao atendimento de uma necessidade própria e não para o desenvolvimento  de uma outra atividade negocial.[39]

É de se ressaltar que a posição atual do Superior Tribunal de Justiça é pela tese finalista. No entanto, com um ponto peculiar: a de fazer incluir a proteção do Código para os casos em que se configurar, in concreto, o traço da vulnerabilidade da pessoa jurídica (mesmo que ela se utilize dos bens/serviços como insumo para suas atividades profissionais).[40]

2.2.2 O Estado como fornecedor de serviços?

Vista brevemente a figura do consumidor, parte-se de imediato ao questionamento acerca da possibilidade de o Estado figurar-se como fornecedor de serviços.

O art.3° do Código do Consumidor inclui no conceito de fornecedor a “pessoa física ou jurídica, publica ou privada”. Outrossim, um dos direito básicos do consumidor, consoante dicção do art.6° do Código, inciso X, consiste na “adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral”. Ademais, o art. 22°, também do mesmo diploma legal, estatui:

Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são  obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.

Tudo a demonstrar pela possibilidade efetiva de o Estado, por si, por meio de suas empresas que explorem atividade econômica ou por quem lhes faça as vezes – como é o caso dos concessionários de serviços públicos -, ser enquadrado como fornecedor de serviços para fins do Código Consumerista (CDC).

A questão que se deve pôr, no entanto, diz respeito à remuneração de tais serviços para fins de enquadramento ou não da relação de consumo. Com efeito, “Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração (...)” - §2° do art.3° do Diploma (grifado).

E esse é um dos pontos que parece residir um critério chave da possibilidade ou não de inclusão das normas do Codex do Consumidor aos serviços públicos.

 2.3 A QUESTÃO DA REMUNERAÇÃO E A FORMA DE PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS: LIMITES E POSSIBILIDADES À APLICABILIDADE DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR (CDC) AOS SERVIÇOS PÚBLICOS.

 

2.3.1 prestação de serviços por particulares e as tarifas.

 

Como acima visto, há a possibilidade de os serviços públicos serem prestados por particulares. A exploração empresarial de tais atividades possibilitou o surgimento da delegação de serviços públicos aos particulares. Assim, ao empresário é deferida a prestação de tais serviços que, em contrapartida, terá direito a remunerar-se através das tarifas ou preços públicos.

Parece, portanto, nesse caso - particulares atuando na prestação -, que: (i) somente a exploração da atividade de forma empresarial é que possibilita a incidência do CDC aos serviços públicos; além do mais, faz-se imperiosa também (ii) a presença do regime remuneratório via tarifa ou preço público.

Se ao particular explorador é dada a possibilidade de lucrar com a atividade de exploração, de outra banda, ao usuário deve ser garantido seus direitos de consumidor. Isso deve se passar para que se equilibrem as forças dos interesses antagônicos entre ambos. Nem se argumente que as normas protetivas do Código do Consumidor, que prezam por compensar o usuário–consumidor de forma individualística, acarretariam em prejuízos aos demais usuários. Nesse caso, o prejudicado pelos maus serviços prestados seria diretamente o explorador. A aplicação do CDC serve como importante fator de coação ao prestador: na medida em que os serviços são inadequadamente prestados, os prejuízos daí advindos recaem sobre seu lucro.

Aliás, uma das formas de otimização de lucros para o explorador de serviços é justamente a apropriação de ganhos pela eficiência empresarial na prestação dos serviços.

Enfim, na medida em que a lógica de prestação de serviços se insere na lógica de exploração de mercado, faz-se necessário a contrapartida devida, que é a aplicação protetiva das Normas Consumeristas.

Tudo leva a crer, pois, que um critério diferenciador, a priori, reside na remuneração do serviço prestado e na forma de como o mesmo é prestado: se empresarialmente ou não. Se o regime tarifário é aquele que se refere à exploração de serviços públicos por particulares de forma empresarial, então estará aí presente uma forma de discriminação adequada apta a concluir pela aplicação ou não das   normas de defesa do consumidor a esses serviços. De outra banda, se a remuneração acontece por tributos, ou seja, taxas cobradas pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos, não há que se falar em relação de consumo (igual raciocínio aplica-se aos serviços remunerados por impostos).

O regime das taxas parece evidenciar que a prestação de serviços acontece de maneira a excluir benefícios individuais egoísticos, tal como presente na exploração que visa ao lucro. Há, aqui, um regime substancialmente diferente em comparação ao tarifário. O usuário, nos serviços remunerados por taxa, tem como garantia os direitos fundamentais que marcam a relação fisco x contribuinte. E mais, são levados em conta não o utente em si, mas sim a coletividade, a generalidade dos usuários. Exclui-se, pois, desse universo a incidência das normas do CDC: se cada usuário, individualmente, buscasse o máximo de benefícios, os atingidos diretamente seriam os outros usuários.

Sobre o tema, JOSÉ GERALDO BRITO FILOMENO bem esclarece que:

O que se pretende dizer é que o “contribuinte” não se confunde com o consumidor, já que no primeiro caso o que subsiste é uma relação de direito tributário, inserida a prestação de serviços públicos, genérica e universalmente considerada, na atividade precípua do Estado, ou seja, a persecução do bem comum

Imagine-se, por exemplo, em um determinado serviço remunerado por taxa, a hipótese de condenação do prestador de serviços à devolução em dobro de quantias indevidamente cobradas: isso por óbvio surtiria efeitos diretos aos demais usuários em proveito de um benefício individual que o código consagra.

Portanto, quando particulares, de forma empresarial, prestam, por delegação, serviços públicos cuja remuneração seja por tarifas, haverá a incidência do Código de Proteção ao consumidor.[41]

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Enfim, e corroborando, tudo leva a crer que, todas às vezes que o serviço é prestado de forma empresarial e remunerado por tarifas, incidirão as normas protetivas do Código do Consumidor. Mas com algumas ressalvas, porém.

É que, mesmo aqui, essa aplicação não é irrestrita. Lembre-se que, mesmo quando explorado por particular de forma empresarial, o serviço em causa ainda é serviço público.

Assim, por exemplo, imagine-se a situação de determinado usuário insurgir-se contra cobrança de determinada tarifa cujo valor refere-se a subsídio para que outros usuários (carentes) tenham acesso ao mesmo serviço, hipótese essa conhecida como subsídio cruzado. Nos termos do Código do Consumidor, poder-se-ia considerar abusiva a cláusula que preveja remuneração por serviços não prestados. Mas, acontece que:

Analisarmos valores da tarifa de serviço do serviço público apenas sobre o ponto de vista da legislação do consumidor é desprezar o fato de que a tarifa não representa apenas a contraprestação das prestações recebidas pelo usuário, sendo, outrossim, um elemento fundamental da preservação do equilíbrio da política pública e do projeto de infra-estrutura consubstanciados na concessão, sendo muitas vezes o instrumento de um   subsídio cruzado ou subsídio interno[42]

Outra hipótese que afigurar-se-ia incompatível com a realidade do serviço público é a questão da desconsideração da personalidade jurídica, consoante delineado pelo sistema do Código de Defesa do Consumidor em seu art.28. Se admitida à hipótese o próprio serviço público correria sérios riscos em sua solução de continuidade. Ademais, seria conferir ao consumidor, individualmente considerado, poderes próximos ao ente concedente, pois, como é cediço, esse tem poderes de, inclusive, extinguir a concessão antecipadamente (encampação); mas, mesmo que o ente seja o titular do serviço em causa, tem de obedecer ao prévio procedimento administrativo e à necessidade de indenização prévia.

Em outras palavras, o que se defende aqui é a aplicação a priori das normas protetivas do consumidor se o serviço público é prestado por particulares empresarialmente e remunerado por tarifas. Essa aplicação, no entanto, não pode ser irrestrita e indiscriminada, sob pena de desvirtuamento das características do serviço público.

Seria, então, de se admitir a aplicação em bloco das normas previstas no código, sempre que possível. Tal tese é razoável na medida em que se admita a premissa, tal como exposta por Sérgio Cavalieri Filho, de que inaugurou o Código de Defesa do Consumidor um microssistema jurídico[43].

2.3.2 prestação de serviços pelo Estado e as tarifas. 

A conclusão acima – que leva em conta a remuneração do serviço –, aplica-se, a priori, também quando é o Estado o remunerado por tarifa na referida prestação.

Isso se passa, por exemplo, quando empresa pública ou sociedade de economia mista (entidades da administração indireta dotadas de personalidade de direito privado), são remuneradas pela prestação dos serviços públicos via tarifa.

Mas nessa hipótese, a aplicação do Código do Consumidor acontece não propriamente porque a atividade é exercida de maneira empresarial-lucrativa, tal como foi acima concluído em relação às concessionárias[44]. A aplicação do Código aqui, é a contrapartida que o usuário-consumidor tem em relação à maior agilidade que tais entidades da administração indireta possuem em seu regime operacional em comparação às entidades estatais de natureza jurídica não privada.

Porém, como igualmente concluído acima para os casos de prestação por particulares, na presente hipótese (prestação por parte da própria Administração), haverá maior cautela ainda quanto à aplicação das Normas Consumeristas para a relação que envolve o fornecedor governamental e o usuário

Uma delas consiste na seguinte ressalva: se o ente estatal em causa for considerado dependente, nos termos preconizados pela Lei de Responsabilidade Fiscal, ter-se-á a proscrição da aplicação das normas do CDC.[45]

É que, em casos desse jaez, o ente é financiado por recursos provenientes do orçamento público[46], sendo certo que este orçamento é instrumento de financiamento de inúmeras outras necessidades sociais fundamentais.

Daí decorre que, se os benefícios individuais que sucedem da proteção do consumidor ocasionassem em elevação de repasses de recursos do ente   controlador à empresa dependente, quem certamente  seria atingido é a comunidade em geral, que já  sofre com os escassos serviços que o orçamento público destina ao atendimento de suas necessidades.

Mas há outro problema a ser enfrentado.

Pode acontecer de tais entidades estatais atuarem simultaneamente na prestação de serviços públicos e em atividades econômicas em sentido restrito. É o caso, por exemplo, da Infraero – Empresa Brasileira de Infra-estrutura Aeronáutica, que atua tanto prestando serviços públicos referentes à movimentação de aeronaves, como também de forma empresarial, atuando no comércio por via dos chamados “aeroshoppings”.

Questionar-se-ia, nesses casos, acerca da incidência ou não do Código de Defesa do Consumidor.

E a resposta não é simples.

Como bem conclui MARÇAL JUSTEN FILHO:

Uma alternativa simplista para superar essas dificuldades seria a vedação pura e simples de atuação de natureza heterogênea para empresas estatais. Mas uma solução dessa ordem não encontra respaldo na ordem jurídica, nem atende às necessidades geradas pela evolução da atuação estatal.

Por isso, o futuro poderá trazer a constatação de que a distinção entre entidades prestadoras de serviço público e exploradoras de atividades econômicas tratou a situação jurídica existente em certo momento histórico. A evolução dos fatos pode conduzir à superação dessa classificação, com surgimento de situações híbridas, dotadas de maior complexidade e demandando do estudioso a elaboração de novos instrumentos de análise, classificação e solução de problemas.[47]

Como se vê, o tema pode vir a se deparar com complexidades futuras, decorrentes da atuação cada vez mais dinâmica da Administração Pública.

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Sobre o autor
Jair Marocco

Procurador do Estado do Pará

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAROCCO, Jair. Limites e possibilidades à aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos serviços públicos no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4232, 1 fev. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31200. Acesso em: 24 nov. 2024.

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