3. CONCEITO DE DIGNIDADE HUMANA E SUA APLICAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS AOS ÍNDIOS NA AMÉRICA LATINA
Observamos que a visão ocidental tradicional da Dignidade Humana é de que, independentemente de serem nacionais ou estrangeiros, índios, brancos, mulatos ou mestiços, pessoas são antes seres humanos, seres únicos e dotadas de Dignidade. Kant afirma que “o homem – e, de uma maneira geral, todo o ser racional – existe como fim em si mesmo, e não apenas como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade.” (KANT, 2002, p. 58)
Tal visão filosófica é de que há um homem padrão, com cultura universal, racionalidade única e que esse homem tem em si um fim e merece respeito e consideração de todos de forma única, mas global. As políticas públicas são elaboradas e aplicadas universalmente sob essa ótica de Dignidade da Pessoa Humana traçada na história pelo pensamento ocidental.
Essa visão ocidental européia tradicional impõe sua cultura e visão de mundo dominante sobre outras culturas locais, traçando meios de vida, de vestir, de se portar, sentir, de enxergar o mundo ao seu redor. Tal imposição altera a própria condição humana desses povos e culturas locais.
Analisamos que a Dignidade da Pessoa Humana no Brasil contemporâneo é fundamento de quaisquer relações humanas, inscrito no art. 1º Constituição Federal e permeado em todo o ordenamento jurídico pátrio.
A Constituição Federal de 1988 apresenta normatização específica sobre os Índios:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
§ 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
§ 4º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
§ 5º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
§ 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.
§ 7º - Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.
Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.
(BRASIL, 1988)
Observamos que a lei maior prevê atenção especial dos poderes públicos aos povos indígenas, não se devendo aplicar conceitos universais como o da Dignidade da Pessoa Humana sem confronto com aspectos próprios da cultura indígena, especificamente em consideração a “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições” (BRASIL, 1988) indígenas.
Denhardt propôs em sua Teoria da Administração Pública que a administração é inseparável da política e as políticas públicas devem se voltar ao humano, evitando um racionalismo positivista que pode gerar injustiças se aplicada na Administração Pública aos moldes da administração privada.
A política, mesmo em uma democracia, é a vontade de uma maioria. Muitas vezes não temos representatividade nem respeito às minorias nas decisões sobre políticas públicas, mormente quando as minorias não estão integradas à sociedade, como se dá em certas comunidades indígenas no Brasil.
Se a Dignidade da Pessoa Humana é conceito universal, a ciência deve caminhar para uma forma cosmopolita de se aplicar a legislação sobre os Direitos Humanos, e aos aplicadores do Direito é dever a obediência ao artigo constitucional mencionado, em respeito às particularidades da cultura ameríndia.
O globo terrestre é dividido em muitas culturas locais, muitas das quais não reconhecem a Dignidade Humana sob essa ótica ocidental dominante, dentre elas as várias manifestações únicas de cultura no mundo consistente nas comunidades indígenas.
Especificamente quanto aos índios brasileiros, a própria disparidade entre natureza e cultura ou homem e natureza não tem assentimento por comunidades ameríndias. Viveiros de Castro, sobre as culturas dos índios na América indígena, ensina que
“as categorias de Natureza e Cultura, no pensamento ameríndio, não só não subsumem os mesmos conteúdos, como não possuem o mesmo estatuto de seus análogos configurações relacionais, perspectivas móveis, em suma - pontos de vista” (CASTRO, 2002, p. 349).
A racionalidade humana, tendo o homem como ápice dos seres no mundo, ratificado desde a visão sofista do homem como medida de todas as coisas até pela visão bíblica do homem como filho de Deus e dominador dos outros seres é questionada em culturas ameríndias.
A visão ameríndia, e.g., aponta que “quando estão reunidos em suas aldeias na mata, p. ex., os animais despem as roupas e assumem sua figura humana Em outros casos, a roupa seria como que transparente aos olhos da própria espécie e dos xamãs humanos”. (CASTRO, 2002, p. 351)
É incompatível a visão histórico-filosófica-ontológica de Dignidade Humana com tal visão de mundo em que não há divisão ontológica entre a razão humana e o puro instinto animal, sendo que ambos se confundem por vezes na praxis.
O logos ameríndio, a compreensão indígena do mundo, compreende que “cada espécie de ser aparece aos outros seres como aparece para si mesma – como humana” (CASTRO, 2002, p. 354). Ora, nesse diapasão teríamos uma dignidade para todos os seres na natureza, pois todos partilham da mesma humanidade.
A condição humana no ameríndio é invertida do pensamento científico no século XXI, lastreado em Darwin e no evolucionismo. “A condição original comum aos humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade” (CASTRO, 2002, p. 355).
Ratifica-se que, adaptando-se (se possível fosse) a visão ocidental de Dignidade da Pessoa Humana, teríamos que não só as pessoas, mas todos os seres merecendo igual tratamento, como únicos, irrepetíveis e, enfim, dignos de respeito e consideração nos termos das normas estipuladas pela sociedade.
Diz-se que o grande desfio da teoria da Dignidade da Pessoa Humana é a aplicação prática de seus conceitos, levando a cada ser humano a Dignidade ínsita na teoria dos Direitos Humanos.
Mas um grandioso, senão o maior desafio para as ciências humanas e sociais, compatibilizar Dignidade Humana e respeito ao “outro” homem, com respeito a sua identidade, construída através de história e memória próprios de sua comunidade local, sem perpassar pelo curso histórico tradicional, para que a própria aplicação prática da teoria dos Direitos Humanos não desrespeite a condição humana de povos únicos.
As políticas públicas devem cotejar as minorias, suas particularidades. Deve-se desvendar a formação das identidades das comunidades afastadas da maioria. Em uma administração democrática e humana, é salutar o respeito a esses povos não partilhantes de um pensamento comum ocidental, sob pena de serem elaboradas barbáries em desfavor de povos sem voz nas políticas públicas.
4. CONCLUSÃO
Diante do que foi exposto, o tratamento do Estado brasileiro e o pensamento da Administração Pública quanto ao índio, mormente aquele chamado pela lei de não integrado às tradições e culturas ocidentais dominantes, nos parece malferir o próprio conceito e fundamento da ordem jurídica consistente na Dignidade da Pessoa Humana que se quer aplicar.
Seja sob a ótica racional, seja sob a ótica humanista da Teoria da Administração Pública, a aplicação de conceitos ocidentais dominantes de Dignidade da Pessoa Humana e de Direitos Humanos sobre populações que estão em outra forma de pensar; outra cultura e mesmo uma outra história deve ser pensada, de forma a não se impor por força a cultura da maioria.
O cerne da práxis Estatal deve ser o respeito às particularidades de comunidades tradicionais, sejam elas quilombolas, indígenas, estrangeiras, pessoas com doenças ou deficiências que as afastem da cultura dominante. As políticas públicas não podem nem devem ser aplicadas de forma similar em grandes centros urbanos e em comunidades indígenas isoladas. A Constituição Federal de 1988 protege especialmente a cultura indígena.
As políticas públicas brasileiras atinentes às minorias ou culturas locais devem ser pensadas de forma que não se tornem óbices à consecução dos fundamentos da República Brasileira, especificamente a Dignidade da Pessoa Humana na ótica tradicional histórica ocidental.
Deve-se respeito ao pensamento da própria Dignidade da Pessoa Humana sob a ótica da cultura local na aplicação das políticas públicas, em interpretação justa do próprio desenvolvimento histórico da Dignidade da Pessoa Humana.
Sob a visão tradicional ocidental, subjaz a possibilidade de violação ao princípio da Igualdade material, pois os desiguais devem ser tratados desigualmente nas políticas públicas, com atuação estatal mais eficiente àqueles em situação que mais estejam afetados em sua dignidade e respeito, sob pena de agravar um status desigual de fato.
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