1. Introdução
O Código Penal, em seu artigo 59 inciso II, não permite que a pena-base seja fixada abaixo do mínimo legal. Mas a pena mínima pode se mostrar excessiva à conduta praticada e desproporcional à lesão ocorrida, sobretudo porque é determinada por um processo legislativo que analisa a questão de maneira superficial.
Constata o jurista Luigi Ferrajoli a insuficiência de estudos e trabalhos científicos a respeito da pena mínima. Salienta o penalista italiano que “num livro recente, intitulado La commisurazione della pena, porém dedicado exclusivamente ao problema da determinação da pena por parte do juiz, Emilio Dolcini lamenta a escassez de literatura penal sobre o tema. Mas se é escassa a literatura em matéria de determinação judicial, no que se refere à predeterminação legislativa da qualidade e da quantidade de pena é quase inexistente”.[1]
Não há dúvida de que a referida carência de literatura sobre o assunto acarreta a irracionalidade na aplicação da pena, pois autoriza o legislador a fixar a retribuição penal de maneira discricionária, o que reflete necessariamente na determinação judicial da pena.
Diante disso, poderia o julgador fixar a pena-base abaixo da pena mínima estabelecida em lei?
2. O surgimento da pena mínima
A legislação vigente durante a Idade Média concedia ao juiz um grande poder de arbitrariedade no momento de aplicar a sanção penal.
A reação a esse modelo arbitrário foi justamente a criação do sistema de pena fixa, que tolhia do julgador qualquer margem de discricionariedade na escolha da qualidade e da quantidade de pena. Nas palavras do penalista Cezar Roberto Bitencourt:
“a iniqüidade que resultava do exercício arbitrário do “poder de julgar” constituiu um dos maiores fundamentos do movimento promovido por Cesare de Beccaria visando a reforma do Direito punitivo. E a reação mais eficaz contra aqueles extremos seria naturalmente a limitação do arbítrio judicial, com a definição precisa do crime e um sistema rígido de penas fixas. Na concepção de Beccaria, seguindo a de Montesquieu, ao juiz não deveria sequer ser admitido interpretar a lei, mas apenas aplicá-la em seus estritos termos. Assim, a um sistema largamente aberto na dosagem da pena sucedeu um sistema de pena rigorosamente determinada, consubstanciado no Código Penal francês de 1791. Por esse sistema, a função do juiz limita-se à aplicação mecânica do texto legal. Mas logo se percebeu que, se a indeterminação absoluta não era conveniente, também a absoluta determinação não era menos inconveniente. Se a pena absolutamente indeterminada deixava demasiado arbítrio ao julgador, com sérios prejuízos aos direitos fundamentais do indivíduo, igualmente a pena absolutamente determinada impediria o seu ajustamento, pelo juiz, ao fato e ao agente, diante da realidade concreta”.[2]
Percebeu-se, com isso, que a segurança jurídica buscada pela pena determinada de forma absoluta acarretava grandes inconvenientes, pois impedia a individualização da sanção penal, em evidente afronta aos direitos fundamentais que estavam aflorando no período da Revolução Francesa.
Foi, então, que, em 1810, com a edição de um novo Código Penal Francês, adotou-se um sistema em que ao juiz era permitido escolher a pena que melhor se adequava ao caso concreto dentro dos limites estipulados. Surgiram, assim, a pena máxima e a pena mínima, como balizas impostas ao poder de julgar: a pena máxima com a nítida finalidade de conter os excessos praticados por juízes sedentos por castigar o acusado; e a pena mínima, como manifestação de desconfiança na capacidade do juiz de ponderar a pena no caso concreto.
O sistema de pena fixa, convém salientar, não foi adotado por nenhuma legislação brasileira, já que no Código Criminal do Império - primeiro estatuto penal pátrio onde se previu a pena de prisão como regra -, o sistema vigente era o de pena variável, ainda que limitado pela escolha da pena mínima, média ou máxima.
Nas legislações nacionais, portanto, é o Código sancionado pelo Imperador D. Pedro I o primeiro a trazer o instituto da pena mínima, inclusive prevendo a sua intransponibilidade por força do art. 33, que dispunha que “nenhum crime será punido com penas que não estejão estabelecidas nas leis, nem com mais ou menos daquellas que estiverem decretadas para punir o crime no gráo maximo, médio ou mínimo, salvo o caso em que aos juízes se permitir arbítrio”.[3]
Desde então, todas as legislações nacionais subsequentes trouxeram a figura da pena mínima, impedindo que este limite fosse transposto pelo juiz.
3. A pena mínima como limitadora do status libertatis
Não há dúvida de que a vedação de fixar a pena-base abaixo do mínimo legal constitui limitação ao status libertatis do cidadão, além de acarretar, evidentemente, grandes injustiças.
O sistema de direito penal garantista tem como característica a limitação do poder punitivo para assegurar os direitos fundamentais do cidadão. Não se pode admitir, portanto, qualquer limite ao julgador, impedindo-o de aplicar a pena mais adequada ao caso concreto diante da lesão ao bem jurídico efetivamente ocorrida.
Não se pode perder de vista que a regra da intransponibilidade da pena mínima é regulada pelo Código Penal e, portanto, infraconstitucional. Com efeito, sempre que a pena mínima estiver em colisão com as garantias constitucionais, a exemplo da individualização da pena e da proporcionalidade, é lícito ao julgador afastá-la para estabelecer um patamar inferior.
O compromisso do juiz deve ser com a pena adequada, não excessiva, proporcional e não com a pena mínima. Isto porque não se mostra possível ao legislador de maneira abstrata prever todas as intensidades de lesões possíveis aos bens jurídicos tutelados, pois a realidade é sempre mais criativa que a imaginação humana.
É por tal razão que há quem entenda que, ao cominar abstratamente a pena de um delito, o legislador deveria prever apenas o máximo de reprimenda permitido.
Assim se manifesta Edson O'Dwyer, em interessante artigo intitulado ‘Se eu fosse juiz criminal’:
“Quando tenho que fixar uma pena, sou obrigado a respeitar o mínimo que a lei impõe, ainda que eu ache que aquele mínimo é muito. Mas não posso apenar abaixo do quantitativo menor previsto, mesmo que na minha convicção seja injusta a fixação. E me pergunto: quais os critérios utilizados para colocar na lei aqueles mínimos? Foram critérios científicos? Empíricos? E depois de tanto tempo passado desde que foram estabelecidos, ainda são válidos de fato? E, angustiado, violentado mesmo, tenho que fixar uma pena que não me parece adequada.
Não seria melhor que a lei impusesse apenas máximos, para que o juiz não exorbitasse? Para mim as leis deveriam dizer assim: Pena - até tantos anos. E o juiz que, levando em conta tudo quanto estabelece o art. 59 do CP, fixasse, então, em cada caso, o que justo fosse. E seus erros, quando e se houvesse, seriam corrigidos via recurso”.[4]
Também se mostra contrário à ideia de balizas mínimas para aplicação da pena o jurista Luigi Ferrajoli:
“Sob este aspecto, parece-me em contradição com o princípio da equidade a previsão por parte da lei de limites mínimos, junto aos limites máximos de pena, para tipo de delito. Tal previsão, na realidade, não apenas contradiz o modelo de direito penal mínimo, mas humilha a função do juiz, ao não lhe consentir valorar plenamente a possível falta de qualquer gravidade do caso concreto, relativamente à gravidade do tipo de delito abstratamente valorada pela lei, conforme suas exclusivas conotações constitutivas, mediante a estipulação dos limites máximos”.[5]
E arremata o penalista italiano:
“Mais difícil é medir o custo das penas privativas de liberdade: mesmo uma pena breve pode causar, ainda que seja somente pelo seu caráter desonroso, uma aflição superior à vantagem proporcionada inclusive pelos delitos não leves. Por esta razão, a meu juízo, pelo menos para as penas privativas de liberdade, não se justifica a estipulação de um mínimo legal: em outras palavras, seria oportuno confiar ao poder equitativo do juiz a eleição da pena abaixo do máximo estabelecido pela lei, sem vinculá-lo a um limite mínimo ou vinculando-o a um limite mínimo bastante baixo”.[6]
A fixação de um limite mínimo intransponível impõe uma inaceitável limitação ao status libertatis do cidadão, em verdadeira transgressão ao sistema penal de garantias, cujo principal escopo consiste em restringir o poder punitivo estatal para reafirmar e fortalecer o Estado Constitucional de Direito.
O ilustre professor Paulo Queiroz apresenta entendimento nesse mesmo sentido:
“fundamental é aplicar, sempre, uma pena justa para o caso, proporcional ao delito, conforme as múltiplas variáveis que o envolvem, e motivadamente, ainda que, para tanto, tenha de fixá-la aquém do mínimo legal. Entender o contrário é adotar uma postura antigarantista”.[7]
4. Conclusão
A imposição de limite mínimo na aplicação da pena, impedindo que, diante do caso concreto, possa o julgador ultrapassá-lo para aplicar a sanção penal que se mostre mais adequada ao autor do delito, traduz inegável afronta aos postulados do modelo de direito penal mínimo e às garantias constitucionais do cidadão.
O sistema garantista adotado pela Constituição da República em 1988 trouxe um novo paradigma na interpretação das normas penais, fazendo com que o intérprete tenha que adequar a legislação infraconstitucional aos mandamentos trazidos pelo Texto Maior.
Sendo assim, não se sustenta a intransponibilidade da pena mínima na fixação da pena-base, consubstanciada no artigo 59, inciso II, do Código Penal, mormente diante das garantias da individualização da pena e da proporcionalidade, responsáveis por conferir limite ao poder estatal para impor a sanção penal.
A aplicação da pena-base aquém do mínimo legal mostra-se uma possibilidade autorizada pelo ordenamento jurídico pátrio, não dependendo de expressa revogação do inciso II do artigo 59 do Código Penal.
O compromisso do juiz deve ser com a pena adequada ao fato praticado e proporcional à lesão ao bem jurídico, e não com a pena mínima, que, não raras vezes, destoa das garantias fundamentais do cidadão.
A fixação de limites mínimos, pois, está ligada à ideia de um direito penal autoritário, que além de estar preocupado em castigar alguém a qualquer custo, enxerga o juiz com receio e desconfiança, suspeitando de sua capacidade de ponderar a reprimenda penal no caso concreto. Em um Estado que se diz Democrático de Direito, e que se mostra preocupado em garantir os direitos fundamentais de todos os cidadãos, qualquer limite irracional à liberdade constitui verdadeira afronta ao sistema de direito penal mínimo e aos direitos historicamente conquistados para assegurar indiscriminadamente a dignidade da pessoa humana.
Bibliografia
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PIERANGELI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. 2ª ed. 2ª tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
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ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
Notas
[1] Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª ed., RT, p. 367.
[2]Uma revisão conceitual da aplicação da pena - Pena aquém do mínimo: uma garantia constitucional.
[3]Mantida a redação da época.
[4] Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.7, n.86, jan. 2000, p. 8.
[5] Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª ed., RT, p. 158.
[6] Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª ed., RT, p. 368.
[7] Direito penal: parte geral, p. 355.