A destinação da multa coercitiva no projeto de novo CPC:

em jogo a autoridade das decisões judiciais

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Os juízes e tribunais, receosos em enriquecer desproporcionalmente o autor, têm fixado o valor da multa em quantias irrisórias ou insuficientes para coagir, enfraquecendo o caráter coercitivo da multa.

Resumo: o texto aponta que, na atualidade, o valor das astreintes tem sido destinado exclusivamente ao autor, o que acaba comprometendo sua eficácia coercitiva. Apresenta as novas perspectivas sobre a destinação da multa, desde o anteprojeto do novo CPC (2010), passando pelo texto do Senado (2010), até o substitutivo da Câmara (2014), agora em fase final de apreciação pelo Senado. Defende a solução adotada no texto do substitutivo do Senado.


1. Segundo o art. 461, §4º do Código de Processo Civil (CPC) em vigor, “O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do preceito.”

Trata-se da multa conhecida por astreinte, conforme a equivalente do direito francês, melhor denominada de multa coercitiva, para bem esclarecer sua natureza, pois tem a função específica e exclusiva de emprestar força coercitiva à ordem judicial, sem caráter punitivo, ressarcitório ou compensatório.[1]

Esse dispositivo também está previsto, com idêntica ou semelhante redação, em outros diplomas legais, como no artigo 11 da Lei 7.347/1985 (Lei da Ação Civil Pública), no artigo 213, § 2º, da Lei 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), no artigo 84, § 4º, da Lei 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor ) e no artigo 83, § 2º, da Lei 10.741/2003 (Estatuto do Idoso).

Apesar da identidade de redação entre todos esses artigos de lei, há uma notável diferença entre o regramento do CPC e o das leis especiais: enquanto aquele é omisso em apontar o beneficiário do valor em dinheiro resultante da multa aplicada, estas o destinam a um fundo público.

Não obstante a lacuna legal, é comum ver a afirmação que o direito brasileiro destina ao autor o valor arrecadado com a multa prevista no art. 461, § 4º do CPC.[2] Esse entendimento atualmente domina a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.[3]

O objetivo deste texto não é reanalisar todos os fundamentos possíveis para, do ponto de vista exclusivamente jurídico-racionalista, confirmar ou infirmar essa interpretação segundo a qual o autor tem o direito de receber o dinheiro arrecadado com a multa.

A análise que se propõe é pragmática: avaliar as consequências práticas dessa interpretação, em termos de prestação jurisdicional, e procurar divisar os caminhos que a nova codificação, que está prestes a surgir, poderá proporcionar.


2. Pragmaticamente, existe um fato que não pode mais continuar a ser ignorado: a interpretação apontada – o autor como destinatário da multa – está fulminando o caráter coercitivo da multa.

A experiência já demonstrou, intensa e repetidamente, que os juízes e tribunais, receosos em enriquecer desproporcionalmente o autor, têm fixado o valor da multa em quantias irrisórias ou insuficientes para coagir, enfraquecendo o caráter coercitivo da multa.

Não é raro, por exemplo, ver multas diárias contra o Estado fixadas em R$100,00 (cem reais)[4], R$50,00 (cinquenta reais)[5] e, até mesmo, R$25,00 (vinte e cinco reais)[6].

Além disso, nas vezes em que os juízes, corajosamente, fixam a multa em patamares suficientemente altos para servir ao seu propósito coercitivo, as instâncias superiores, notadamente o Superior Tribunal de Justiça, têm reduzido o valor final. De fato, em muitos casos, para o autor, o valor da multa se torna mais atrativo do que o valor do direito discutido, incentivando aquilo que se convencionou chamar “indústria das astreintes”.[7]

Tudo isso sem falar em outros empecilhos à cobrança imediata e eficaz do valor da multa, sempre em decorrência do mesmo receio de favorecer injustamente o autor da demanda.

Caso o autor, por exemplo, tenha seu pedido julgado improcedente pela sentença ou por acórdão posterior, a multa que anteriormente incidiu (para reforçar uma tutela antecipada, por exemplo), deixará de ser cobrada, pois o autor que não tem direito, não poderia enriquecer apenas pelo processo.[8]

Pelo mesmo motivo, predomina o argumento de que a multa que incidiu somente poderá ser cobrada após o trânsito em julgado, quando o direito do autor estará definitivamente fixado.[9]

E nos Juizados Especiais Cíveis, a coerção pela imposição de multa diária tem sido limitada ao valor de alçada, ainda que o réu seja um banco ou outra instituição com alto poder econômico, desequipando os juízes de juizados das ferramentas coercitivas adequadas.[10]

Esse quadro de interpretações antipragmáticas conspira contra uma prestação jurisdicional adequada e eficiente. Num sistema jurídico que não tem admitido a prisão civil por descumprimento de mandados judiciais,[11] é imprescindível revestir os instrumentos disponíveis da eficácia necessária, sob pena de destituir a jurisdição do seu poder de imperium,[12] tornando-a fraca e desacreditada, incapaz de fazer frente às demandas de uma sociedade complexa e de um Estado que pretende se constituir como uma Democracia de Direito.


3. O anteprojeto de novo CPC, apresentado pela Comissão FUX em junho de 2010, reagiu a essa situação antipragmática.[13]

Avançou significativamente no que tange à destinação do valor da multa coercitiva, propondo uma singular divisão do valor final: para o autor, até o valor da sua obrigação; para o Estado, o excedente.[14]

Com essa sistemática, que parece ter se inspirado na jurisdição administrativa portuguesa,[15] previne-se o enriquecimento desproporcional do autor – sem deixar de fazer justiça para com ele – e libera-se o juiz para fixar a multa em valor suficientemente alto para coagir.

Mas o anteprojeto não resolvia o problema quando a devedora fosse o próprio Estado, pois, nesse particular, mantinha a sistemática anterior, ou seja, destinava o valor da multa integralmente para o credor. Inevitavelmente, persistiriam os mesmos problemas constatados pela experiência: os juízes continuando a aplicar irrisórias multas à Fazenda Pública, por receio de locupletar o credor, comprometendo a sua eficácia coercitiva.

Eis o texto do anteprojeto, com destaque quanto às normas de destinação do valor da multa:

Art. 503. A multa periódica imposta ao devedor independe de pedido do credor e poderá se dar em liminar, na sentença ou na execução, desde que seja suficiente e compatível com a obrigação e que se determine prazo razoável para o cumprimento do preceito.

§ 1º A multa fixada liminarmente ou na sentença se aplica na execução provisória, devendo ser depositada em juízo, permitido o seu levantamento após o trânsito em julgado ou na pendência de agravo contra decisão denegatória de seguimento de recurso especial ou extraordinário.

§ 2º O requerimento de execução da multa abrange aquelas que se vencerem ao longo do processo, enquanto não cumprida pelo réu a decisão que a cominou.

§ 3º O juiz poderá, de ofício ou a requerimento, modificar o valor ou a periodicidade da multa vincenda ou excluí-la, caso verifique que:

I – se tornou insuficiente ou excessiva;

II – o obrigado demonstrou cumprimento parcial superveniente da obrigação ou justa causa para o descumprimento.

§ 4º A multa periódica incidirá enquanto não for cumprida a decisão que a tiver cominado.

§ 5º O valor da multa será devido ao autor até o montante equivalente ao valor da obrigação, destinando-se o excedente à unidade da Federação onde se situa o juízo no qual tramita o processo ou à União, sendo inscrito como dívida ativa.

§ 6º Sendo o valor da obrigação inestimável, deverá o juiz estabelecer o montante que será devido ao autor, incidindo a regra do § 5º no que diz respeito à parte excedente.

§ 7º O disposto no § 5º é inaplicável quando o devedor for a Fazenda Pública, hipótese em que a multa será integralmente devida ao credor.

§ 8º Sempre que o descumprimento da obrigação pelo réu puder prejudicar diretamente a saúde, a liberdade ou a vida, poderá o juiz conceder, em decisão fundamentada, providência de caráter mandamental, cujo descumprimento será considerado crime de desobediência.

4. O Substitutivo de novo CPC aprovado no Senado Federal manteve a linha do que previa o anteprojeto apresentado pela Comissão de Juristas, especialmente em relação à destinação do valor da multa coercitiva: para o autor, até o valor da sua obrigação; para o Estado, o excedente.

Mas o Senado foi além: também resolveu o problema que havia no anteprojeto, quando o executado é a própria Fazenda Pública, acatando sugestão proposta pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE)[16]: nesse caso, a parcela excedente ao valor da obrigação principal será destinada a entidade pública ou privada, com finalidade social, como uma creche ou um hospital.

Confira-se o texto do Senado, com os mesmos destaques:

Art. 551. A multa periódica imposta ao devedor independe de pedido do credor e poderá se dar em liminar, na sentença ou na execução, desde que seja suficiente e compatível com a obrigação e que se determine prazo razoável para o cumprimento do preceito.

§ 1º A multa fixada liminarmente ou na sentença se aplica na execução provisória, devendo ser depositada em juízo, permitido o seu levantamento após o trânsito em julgado ou na pendência de agravo de admissão contra decisão denegatória de seguimento de recurso especial ou extraordinário.

§ 2º O requerimento de execução da multa abrange aquelas que se vencerem ao longo do processo, enquanto não cumprida pelo réu a decisão que a cominou.

§ 3º O juiz poderá, de ofício ou a requerimento, modificar o valor ou a periodicidade da multa vincenda ou excluí-la, caso verifique que:

I - se tornou insuficiente ou excessiva;

II - o obrigado demonstrou cumprimento parcial superveniente da obrigação ou justa causa para o descumprimento.

§ 4º A multa periódica incidirá enquanto não for cumprida a decisão que a tiver cominado.

§ 5º O valor da multa será devido ao exequente até o montante equivalente ao valor da obrigação, destinando-se o excedente à unidade da Federação onde se situa o juízo no qual tramita o processo ou à União, sendo inscrito como dívida ativa.

§ 6º Sendo o valor da obrigação inestimável, deverá o juiz estabelecer o montante que será devido ao autor, incidindo a regra do § 5º no que diz respeito à parte excedente.

§ 7º Quando o executado for a Fazenda Pública, a parcela excedente ao valor da obrigação principal a que se refere o § 5º, será destinada a entidade pública ou privada, com finalidade social.

Assim, com o CPC do Senado, em todas as situações o problema estaria resolvido, ainda que a Fazenda Pública fosse a descumpridora da ordem judicial. Também na Justiça Federal, onde predominam ações contra entidades pública federais, estariam garantidas as condições necessárias para que os juízes bem aplicassem as astreintes, sem qualquer receio de enriquecimento desproprocional do autor.

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Quanto à destinação do excedente para a entidade pública ou privada, com finalidade social, nenhum problema haveria, pois se trata de atividade judicial cotidiana, especialmente nos juizados especiais e juízos criminais. A distribuição da renda, nessa hipótese, ainda contribuiria para aumentar a aproximação do Poder Judiciário com a população.


5. Incompreensivelmente, a Câmara dos Deputados retrocedeu e alterou o texto do Senado para reverter integralmente o valor da multa para o autor, mantendo as coisas como se praticam atualmente, com todas as dificuldades já tão exaustivamente denunciadas pela doutrina e pela experiência forense.

Veja o texto da Câmara, que agora está sendo analisado novamente no Senado:

Art. 551. A multa independe de requerimento da parte e poderá ser concedida na fase de conhecimento, em tutela antecipada ou na sentença, ou na execução, desde que seja suficiente e compatível com a obrigação e que se determine prazo razoável para cumprimento do preceito.

§ 1º O juiz poderá, de ofício ou a requerimento, modificar o valor ou a periodicidade da multa vincenda ou excluí-la, sem eficácia retroativa, caso verifique que:

I – se tornou insuficiente ou excessiva;

II – o obrigado demonstrou cumprimento parcial superveniente da obrigação ou justa causa para o descumprimento.

§ 2º O valor da multa será devido ao exequente.

§ 3º O cumprimento definitivo da multa depende do trânsito em julgado da sentença favorável à parte; a multa será devida desde o dia em que se houver configurado o descumprimento da decisão e incidirá enquanto não for cumprida a decisão que a tiver cominado. Permite-se, entretanto, o cumprimento provisório da decisão que fixar a multa, quando for o caso.

§ 4º A execução da multa periódica abrange o valor relativo ao período de descumprimento já verificado até o momento do seu requerimento, bem como o do período superveniente, até e enquanto não for cumprida pelo executado a decisão que a cominou.

§ 5º O disposto neste artigo aplica-se, no que couber, ao cumprimento de sentença que reconheça deveres de fazer e de não fazer de natureza não obrigacional.

Não é possível insistir no erro!

O texto da Câmara reverte os avanços produzidos nas fases anteriores de tramitação da nova codificação. A história e a experiência já demonstraram que a destinação do valor da multa exclusivamente para o autor não dá certo, arruina a eficácia coercitiva das astreintes e compromete a autoridade das decisões judiciais, provisórias ou definitivas. E não só no Brasil isso já foi demonstrado, pois ao menos na França semelhante fenômeno foi conhecido e registrado.

A oportunidade de uma nova codificação só terá servido aos seus legítimos propósitos se corrigir os defeitos do regramento processual atual, conforme a experiência tem revelado.

Manter o produto da multa ao autor é manter o atraso e a ineficiência. A proposta produzida no Senado resolve o problema que hoje se constata e ainda faz justiça ao autor atingido pelo descumprimento da ordem.

Resta esperar que o Senado acate a nova nota técnica que a AJUFE encaminhou ao Congresso Nacional[17] e restaure a redação original do dispositivo relativo à multa coercitiva, conforme proposta dos próprios Senadores.

Não se trata do interesse dos juízes que está em jogo, mas do interesse de todos aqueles que desejam ver o sistema processual brasileiro funcionando de verdade.


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Sobre o autor
Vicente de Paula Ataide Junior

Professor Adjunto do Departamento de Direito Civil e Processual Civil da Universidade Federal do Paraná. Professor do Corpo Permanente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade Federal do Paraná. Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Pós-doutor em Direito Animal pela Universidade Federal da Bahia. Líder do Núcleo de Pesquisas em Direito Animal da Universidade Federal do Paraná (ZOOPOLIS). Pesquisador do EKOA: Direito, Movimentos Sociais e Natureza da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Coordenador do Programa de Extensão em Direito Animal da Universidade Federal do Paraná. Coordenador e Professor do Curso de Especialização em Direito Animal (EAD), da ESMAFE-PR/UNINTER. Juiz Federal titular da 2ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais do Paraná. Ex-Juiz Federal membro da Turma Regional de Uniformização da 4ª Região. Professor de Direito Processual Civil em diversas entidades, entre elas a Escola da Magistratura Federal do Paraná (ESMAFE/PR), a Escola da Magistratura do Paraná (EMAP), a Escola da Associação dos Magistrados do Trabalho do Paraná (EMATRAIX), a Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Paraná (FEMPAR), a Escola Superior da Advocacia da OAB/PR (ESA-PR), o Instituto Romeu Bacellar e a Faculdade de Pinhais (FAPI-PR). Formador de Magistrados pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM) e pela Escola da Magistratura do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (EMAGIS). Foi Promotor de Justiça do Ministério Público de Rondônia (1996-2002). Ex-Diretor de Assuntos Jurídicos da Associação Paranaense dos Juízes Federais (APAJUFE), na gestão 2016/2018. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e Membro-Fundador do Instituto Paranaense de Direito Processual (IPDP). Membro da Comissão de Direito Socioambiental da Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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