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O risco da banalização do Código de Defesa do Consumidor

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21/09/2014 às 15:15
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CAPÍTULO V - HARMONIA NAS RELAÇÕES DE CONSUMO

5.1          Transparência: o primeiro caminho para a harmonia

No capítulo anterior procurou-se demonstrar que tanto a conduta de fornecedores como a de consumidores, pela invocação indevida e desmedida das normas tutelares, podem ocasionar a sua vulgarização.

Para que isto não aconteça, além da vigilância da sociedade e do Estado, que devem agir como fiscais em defesa da norma, fundamental que os seus destinatários compreendam que o CDC não foi criado para medir forças, instaurar disputas, provocar avalanchas de demandas judiciais,  mas como um instrumento de agregação entre eles, interdependentes que são. Se por um lado a lei preponderantemente protege o consumidor, por outro ela serve para estimular a concorrência entre as empresas, o que vem em seu próprio benefício, pois quem cumprir as diretrizes do Código, respeitando mais o consumidor, produzindo com mais qualidade e prestando as informações de forma mais adequada, por exemplo, será melhor enxergado por aqueles que consomem, que passarão a preferir os seus produtos e serviços. 

O Código de Defesa, portanto, não veio para promover a discórdia, mas a harmonia. E esta é uma das principais diretrizes estabelecidas pelo Código de Defesa do Consumidor: harmonia nas relações entre consumidores e fornecedores. 

 Harmonia, de acordo com o dicionário Aurélio, significa proporção, ordem, simetria, acordo, conformidade.[91]

 E essa parece ter sido a conotação que pretendeu o legislador dar a tal termo, com a clara intenção de alterar o mercado de consumo, para que nele, as relações, depois de equilibradas, sejam harmônicas, simétricas, de paz, sem quaisquer abusos, por qualquer das partes,

  A concretização de tal objetivo não é tarefa das mais fáceis, especialmente porque, para harmonizar interesses de consumidores e fornecedores, será necessário, principalmente dos últimos, o despojamento de todos os artifícios comumente empregados no mercado de consumo, verdadeiramente abusivos, a exemplo de  informações falsas ou parcas sobre produtos e serviços ou a própria contratação,  da utilização excessiva de técnicas indutivas de marketing, contratações com larga vantagem ao fornecedor ou onerosidade ao consumidor, comercialização de produtos e serviços com baixa qualidade e em desacordo com as normas e tantas outras condutas lesivas ao consumidor.

 Para que se possa superar essas barreiras, pretendendo a harmonização de interesses de consumidores e fornecedores, inevitável que ambos enxerguem que a relação de consumo não pode sobreviver sem que haja um sentimento de solidariedade entre eles, uma dependência recíproca, em que cada qual sinta-se na obrigação moral de amparar o outro, num verdadeiro liame de responsabilidades que os une por interesses comuns.

Essa solidariedade vem para propiciar a igualdade entre os parceiros da relação. Não se trata, exatamente, de beneficiar o mais fraco, prejudicando o mais forte, mas de restabelecer ou instaurar a harmonia, com a quebra da desigualdade que dominava o mercado de consumo.

 Não se pode acreditar, entretanto, que esse  mercado, sempre dominado pelas empresas, possa mudar de uma hora para outra, alçando-se o consumidor, tão-só pelo fato do surgimento de uma norma protetiva, à condição de parceiro, de igual,  de solidário.

 O equilíbrio e a harmonia não serão alcançados porque o legislador assim objetivou. É necessário que sejam perseguidos. É preciso que consumidores e fornecedores sintam-se parceiros, dependentes um do outro, respeitando-se mutuamente.  Não é uma norma impositiva, mas um estado ideal, que só será atingido se houver uma conscientização geral no sentido de que o mercado não sobreviverá se atender apenas aos interesses de uma das partes.  

Essa percepção de interdependência, no entanto, não surgirá, de igual forma, apenas porque existente uma lei protetiva, mas fundamentalmente porque o consumidor alcançará o seu espaço dentro do mercado, que não será por outro caminho senão o do respeito.

Corroborando tal entendimento, no sentido de que a obtenção do respeito é fundamental à harmonia, Cláudio Bonatto nos ensina:

Esta situação de desequilíbrio, todavia, é prejudicial para o convívio harmônico como um todo, pois fere ao fundamento maior da dignidade da pessoa humana, motivo pelo qual surgiu o CDC, como forma de igualar integrantes da relação de consumo, munindo o consumidor de arma eficaz a obtenção de respeito e, conseqüentemente, de força para impor sua vontade.[92]

  É indispensável permitir ao consumidor o atingimento dessa importância, dessa respeitabilidade, abrindo-se-lhe portas para esse desiderato através da educação, da informação, imprescindíveis, em qualquer caso, à expunção do domínio de uns sobre outros, notadamente pelo anteparo que representam.   Como bem analisa  Sérgio Pinheiro Marçal:

Também o Estado, na sua ingerência permitida pelo legislador, deve sempre ter como meta a harmonização e compatibilização de interesses. A tentação de tomar o fornecedor como naturalmente explorador e de praticar atos exemplares, deve dar lugar, prioritariamente, aos princípios da educação e informação, previstos no inc. IV do art. 4º do CDC.

Aliás, educação e informação são, sem sombra de dúvida, a única forma de criar um sistema de grande longevidade. O Consumidor somente estará efetivamente protegido, quando a sociedade tiver ciência, souber respeitar e reivindicar os direitos básicos, inerentes às relações de consumo. Na verdade, mais do que isso, educação e informação revelam-se a pedra de torque de qualquer sociedade civilizada.[93]

Nesse sentido, o legislador consumerista, pretendendo uma melhoria do mercado,enfatizou como objetivo da Política Nacional das Relações de Consumo, no artigo 4º, inciso IV,  a educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres.

A necessidade de educação sobre o consumo, como já mencionado quando da análise dos princípios, inicia na própria família, onde são apreendidos conceitos do certo e do errado, do bem e do mal, do justo e do injusto. É aí que se cristalizam entendimentos  sobre a lealdade, confiança, sinceridade, honestidade, transparência.

   A educação, portanto, deve vir antes da informação. Se houvesse consciência coletiva dos valores básicos acima citados, especialmente o da transparência,  a harmonia  não precisaria ser perseguida, postulada, reclamada, mas decorreria, naturalmente, das regras de convivência, dos valores éticos, existentes muito antes da relação de consumo. 

 Certamente esse seria o estado ideal. No entanto, por tudo o que já se mencionou, é necessário, sim, perseguir a simetria, a harmonia, a paz nas relações entre consumidores e fornecedores, situação que só será alcançada se for propiciado ao consumidor conhecer,  de forma efetiva, o mercado em que está inserido, com informações abrangentes, precisas, adequadas e claras sobre o consumo, especialmente sobre a forma de contratar, sobre o próprio parceiro, o fornecedor, sobre os produtos e serviços, enfim, no mínimo, ser detentor das mesmas informações que possui o outro, para se dizer que se está em posição de simetria, buscando a harmonização.

Esse saber é indispensável para bem decidir, escolhendo o melhor negócio, a  oferta mais viável, o contrato mais adequado, o melhor fornecedor.

Esse conhecimento que se entende seja o caminho da harmonia,  decorre da transparência que deve existir entre as partes contratantes. E o próprio legislador indica isso ao mencioná-las lado a lado no caput do artigo 4º do CDC.

O vocábulo transparente significa limpo, evidente, claro, óbvio[94].

 No Código de Defesa do Consumidor, a expressão aparece por uma única vez, no caput do artigo 4º, mas suficiente para a doutrina imprimir-lhe o caráter de princípio aplicável às relações de consumo, exatamente porque flagrante sua incidência sobre as normas protetivas.

  É percebido, por exemplo, no artigo 6º, inciso III, que expressa como básico o direito à informação adequada e clara sobre produtos e serviços; no artigo 30, que trata da publicidade, onde o princípio da transparência atua em favor do consumidor, obrigando o fornecedor que a veicular, com a sua integração ao contrato que vier a ser celebrado; no artigo 46, onde há manifesta incidência do princípio, pela desobrigação dos consumidores, quanto aos contratos, se não lhes for dado conhecimento prévio do seu conteúdo ou, pela forma como redigidos, forem de difícil compreensão; no artigo 47, onde a norma determina que as cláusulas contratuais devem ser interpretadas de forma favorável aos consumidores, em especial porque redigidas, costumeiramente, de forma confusa, mas em seu prejuízo;  no artigo 50, que trata da garantia complementar, onde a transparência aparece pela exigência de que o termo deva ser feito por escrito, com esclarecimentos suficientes à sua compreensão;  no artigo 51, na proibição das chamadas cláusulas abusivas, exatamente porque, se elas não permitem a mensuração exata por parte do consumidor das obrigações assumidas por ele no contrato, transparência não haverá;  no artigo 52, onde é flagrante a aplicação do princípio, no caso de concessão de crédito ao consumidor, quando o fornecedor deverá informá-lo, pormenorizadamente, sobre o negócio, especialmente sobre preço, encargos, prestações, multas, resíduos.

 De acordo com a doutrina, a inserção da transparência como princípio norteador tem por objetivo propiciar uma relação mais próxima e adequada entre o fornecedor e o consumidor, almejando a existência de sinceridade no negócio entre ambos os contratantes.

Nesse sentido, Cláudia Lima Marques nos ensina que:

Transparência significa informação clara  correta sobre o produto a ser vendido, sobre o contrato a ser firmado, significa lealdade e respeito nas relações entre fornecedor e consumidor, mesmo na fase pré-contratual, isto é, na fase negocial dos contratos de consumo.[95]

A transparência aparece como verdadeiro dever de conduta, de maneira especial ao fornecedor,  no sentido de que as suas atitudes, frente ao parceiro contratual, objetivando atraí-lo ao negócio, sejam levadas a efeito de forma séria e verdadeira, sem artifícios, cumprindo-lhe esclarecer e avisar o consumidor das escolhas que faz, que devem ser refletidas e autodeterminadas.  É um bom começo para o atingimento da confiança que deve existir entre as partes, condição igualmente essencial à busca da harmonia.

 O conhecimento que se afirmou ser indispensável ao respeito que deve existir nas relações de consumo, exatamente pelo anteparo que representa à dominação do mercado, parece ser alicerce do princípio da transparência, revelada através da informação que deve existir na relação contratual. Para Cláudia Lima Marques,

[...]a transparência é clareza, é informação sobre os temas relevantes da futura relação contratual. Eis porque institui o CDC um novo e amplo dever para o fornecedor, o dever de informar ao consumidor não só sobre as características do produto ou serviço, como também sobre o conteúdo do contrato. Pretendeu, assim, o legislador evitar qualquer tipo de lesão ao consumidor, pois sem ter o conhecimento do conteúdo do contrato, das obrigações a que estará assumindo, poderia vincular-se a obrigações que não pode suportar ou que simplesmente não deseja. Assim também adquirindo um produto sem ter informações claras e precisas sobre suas qualidades e características pode adquirir um produto que não é adequado ao que pretende ou que não possui as qualidades que o fornecedor afirma ter, ensejando mais facilmente o desfazimento do vínculo contratual.[96]

 Não se pode imaginar que o consumidor sinta-se confortável numa relação em que não possa externar livremente a sua vontade, escolher a melhor forma de negociar, o melhor produto, o melhor parceiro contratual, seja porque não os conhece suficientemente, seja porque não detém a melhor informação capaz de lhe dar condições de proferir um juízo de valor satisfatório sobre o negócio a ser realizado.

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 Se o consumidor não possuir as mesmas informações que seu parceiro contratual, certamente com ele não se harmonizará; pelo contrário, a ele continuará submisso, pela posição desigual e inferior em que se encontra.

 É preciso que o consumidor possa manifestar com liberdade a sua vontade e isto só será possível se detiver conhecimento suficiente sobre o negócio a ser realizado. Nas palavras da Doutora Claudia

[...]Se esta inversão de papéis ocasionada pelo ideal de transparência e lealdade no mercado imposto pelo CDC pode ser considerada renovadora, o sentido e o fim(Sinn und Zweck) do mandamento, como denominam os alemães a ratio legis, pode ser reduzida à tradicional procura da “verdadeira e livre vontade do consumidor”. Visto deste ângulo, o ideal de transparência seria apenas uma nova(e sem dúvida importante)pré-condição para que o consumidor possa manifestar sem medo e livremente sua vontade, e realizar(ao fim) as suas expectativas legítimas, aquelas que o levaram  a – informado devidamente sobre o produto ou serviço, ciente de seus futuros direitos e deveres contratuais – escolher aquele fornecedor como seu parceiro contratual.[97]

A transparência surge exatamente para que o consumidor possa bem decidir, porque lhe são fornecidos todos os elementos para que assim aja.   Ora, se ciente dos direitos e deveres futuros que lhe competem, poucos ou menores serão os motivos para discórdias futuras, sob alegação de desconhecimento.

 O dever e direito à informação, decorrentes do princípio da transparência,  portanto, despontam como fundamentais no caminho da harmonia. Nesse sentido, a renomada autora nos ensina que “[...]o dever de informar passa a representar, no sistema do CDC, um verdadeiro dever essencial, dever básico(art. 6º, inciso III) para a harmonia e transparência das relações de consumo[...]”[98]

 Esse dever de informar deve abranger todas as condições do negócio a ser realizado, desde o momento pré-contratual, abrangendo tanto a oferta como o próprio conteúdo do contrato, seja elaborado de forma escrita, seja verbal, a fim de que o consumidor  não adira irrefletidamente sobre negócio que, fosse-lhe melhor esclarecido, quiçá não realizaria. Nesse sentido, a análise efetuada por Luis Gustavo G. Castanho de Carvalho:

[...]A opulência da informação, o grande poder de persuasão que a reiteração da informação exerce sobre o homem, é o que o torna objeto de proteção, para que o homem não seja levado a assumir comportamentos que não correspondam a uma perfeita compreensão da realidade, nem a ter sentimentos que também não se apóiem na situação fática real.

A informação não teria qualquer valor jurídico se não estivesse visceralmente vinculada à capacidade de discernimento e de comportamento do homem. É justamente para proteger a sua capacidade de reflexão que se propõe do Direito de Informação.[99]  

O entendimento de que a informação, verdadeiro conhecimento, é primordial ao estabelecimento da harmonia nas relações de consumo,  reside no fato de que, se o consumidor detiver todo o conhecimento sobre os aspectos formais e fáticos do negócio,  sobre os direitos e deveres dele decorrentes, poderá refletir e decidir sobre o que melhor lhe convier. Nesse sentido o entendimento do citado autor:

[...]A essência da informação é a realidade, a objetividade, não a ilusão. Sobre a informação o homem reflete e decide. Na ilusão sua reflexão é viciada, é falsa, sua vontade é deturpada. O direito cuida para que isso não aconteça, para que o homem disponha de instrumentos seguros para receber informação real, de modo a poder refletir e decidir com segurança.[...][100]

 A harmonia, assim, verdadeiro estado de consonância, concórdia, proporção, só será alcançada se o consumidor se sentir como um autêntico parceiro contratual, sem ocultismos, detendo, de forma efetiva, conhecimentos suficientes acerca do outro sujeito da relação, de suas reais intenções, dos direitos e deveres relativos ao negócio a ser realizado.

Somente através dessa segurança, de que o negócio está bem compreendido, informado e explicado, cada qual com suas certezas, é que se poderá começar a falar em simetria ou harmonia entre consumidores e fornecedores, inexistente se apenas uma das partes detiver o conhecimento, exatamente pela opacidade que trará ao negócio, conhecido apenas por um dos sujeitos.

5.2       Boa-fé também na conduta do consumidor

A tão almejada harmonia das relações de consumo, além de trilhar o caminho da transparência, que entende-se seja o primeiro passo ao seu atingimento, deve ser formada através da boa-fé, valor indispensável na concretização de todos os objetivos da Política Nacional das Relações de Consumo.

Sobre a lealdade na conduta dos fornecedores, muito já se falou neste trabalho. O objetivo, agora, é demonstrar que ela deve estar presente também no comportamento dos consumidores.

 Através da leitura do caput e inciso III do artigo 4º do CDC, facilmente se percebe a preocupação do legislador com a obtenção da harmonia no mercado de consumo, bem como da indicação dos meios para que seja alcançada, especialmente através da transparência,  já tratado no item anterior, e da boa-fé e equilíbrio entre consumidores e fornecedores.

Nessa disposição legal, em que pese o caráter nitidamente protetivo do Código, o legislador demonstrou que não somente os interesses dos consumidores devem ser tutelados, enfatizando que essa proteção deve ser compatibilizada com o necessário desenvolvimento econômico e tecnológico do mercado.[101]

 Através dessa premissa, qual seja a de que a Lei 8.078/90 não foi criada com o único e exclusivo objetivo de defender a todo consumidor, mas, antes disso, harmonizar o mercado e defender o consumidor leal,  é que se enfatiza que, embora o legislador não tenha criado sequer uma disposição expressa, atribuindo dever de conduta ao consumidor, a interpretação das normas deve ser feita de forma sistemática, de modo que os princípios norteadores devem ser observados por todos os sujeitos da relação, também em homenagem à igualdade, que entende-se seja o maior dos princípios.

 Partindo dessa concepção e considerando que o próprio legislador previu a boa-fé como elemento harmonizador, afirma-se que ela deve estar presente na conduta de ambas as partes, consumidores e fornecedores, singelamente porque, se existir em apenas um dos pólos, a harmonia, vocábulo que também tem como sinônimo a simetria, por óbvio não estará presente. 

Essa preocupação em afirmar que os valores caracterizadores da boa-fé devam existir na conduta de todos os componentes da relação de consumo decorre da constatação de que, embora o mercado esteja mais equilibrado,  com os consumidores fazendo valer seus direitos, fiscalizando o cumprimento de seu Estatuto Tutelar, e os fornecedores, por outro lado,  coagidos pelos fortes mandamentos da norma reguladora, respeitando mais os consumidores e adequandose, a cada dia,  aos ditames do CDC,  cristaliza-se na sociedade um nefasto sentimento de que somente o consumidor age de boa-fé, e o fornecedor, ao contrário, é aquele que sempre age com dolo, malícia, perfídia. A boa-fé, assim, tem sido costumeiramente enxergada como atributo de conduta de consumidores, e a má-fé, de fornecedores.

Entretanto, é preciso enfatizar, o mercado de consumo está mudando e essa  conotação de que o consumidor é o possuidor da boa-fé, certamente não foi a que o legislador consumerista quis empregar ao prestigiá-la como um princípios mais caros da política de consumo. 

 O princípio da boa-fé, entendido como um padrão de conduta que a sociedade exige dos contratantes, não pode ser exigido de apenas um deles. Deve vincular tanto o fornecedor como o consumidor, especialmente porque não é direcionado à proteção de apenas uma das partes, mas da própria relação de consumo.  Nesse entendimento, o magistério de Heloísa Carpena:

A boa-fé é, sem dúvida alguma, um conceito ético, porém se liga igualmente à finalidade econômica do contrato. Embora identificada com o ideal de justiça contratual, no sentido de busca do equilíbrio das prestações, a boa-fé não se presta unicamente à defesa do contratante hipossuficiente, atuando como fundamento para orientar interpretação garantidora da ordem econômica. Nem sempre será favorecido o contratante débil pois, como assevera Stefano Rodotá, a escolha deve ser feita de modo a assegurar prevaleça o interesse que se apresenta mais vantajoso em termos de custo social. A intervenção na economia contratual visa, em última análise, à harmonização dos interesses e deve se dar com base na boa-fé, isto é, pautando o comportamento das partes segundo os deveres de lealdade, confiança e cooperação, cuja observância deve se sobrepor aos interesses egoísticos dos contratantes e ao mesmo tempo salvaguardar os princípios constitucionais sobre a ordem econômica[...].[102]

 Antes de proteger interesses de consumidores e fornecedores existe a necessidade de manter equilibrado o mercado do qual fazem parte. Infrutífero seria defender apenas uns ou outros, caso em que a desigualdade continuaria presente. É necessário, sim, proteger o consumidor, por tudo o que já se mencionou neste trabalho, sem que isso, no entanto, macule a própria relação de consumo. E isto bem percebeu o legislador ao determinar que haja harmonia entre os sujeitos dessa relação, compatibilizando a norma do CDC, nitidamente protetiva, com os ditames do artigo 170 da Constituição Federal, sobre a ordem econômica. Nesse sentido, os abalizados conhecimentos de Ruy Rosado:

[...]a boa fé não serve tão-só para a defesa do débil, mas também atua como fundamento para orientar interpretação garantidora da ordem econômica, compatibilizando interesses contraditórios, onde eventualmente poderá prevalecer o interesse contraditório ao do consumidor, ainda que a sacrifício deste, se o interesse social prevalente assim o determinar. Considerando dois parâmetros de avaliação : a natureza da operação econômica pretendida e o custo social decorrente desta operação, a solução recomendada pela boa-fé poderá não ser favorável ao consumidor.[103]

Do magistério do Ministro Ruy Rosado, extrai-se o ensinamento de que a boa-fé não é um simples conceito ético, mas também integrador, que medeia a necessidade de preservação do desenvolvimento econômico e social e a de proteger o consumidor frente aos abusos costumeiramente decorrentes desse expansão.

 Isto significa que os valores decorrentes da boa-fé não devem pender apenas para o lado do consumidor; antes disso, deve-se buscar a harmonia, conciliando os interesses. Os deveres dela decorrentes, especialmente os de cooperar, confiar, ser leal, não devem ser exigidos apenas do fornecedor.  E isto foi bem apreendido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul ao julgar ação revisional proposta por consumidora, quando demonstrou que a boa-fé é uma via de mão dupla. Permite-se reproduzir parte do Acórdão:

[...]Consoante se depreende dos autos, a apelante firmou com o apelado, contrato de abertura de crédito em conta-corrente, cartão de crédito, CDC automático e seis empréstimos eletrônicos, esses, todos no mês de abril de 2003. Antes do vencimento da primeira parcela, já no mês de junho, constituiu advogado que, imediatamente, ingressou com a presente ação revisional.

É sabido que o vínculo jurídico que une os sujeitos na relação obrigacional, a partir da teoria dualista, é a recíproca confiança que, conjuntamente com o dever de conduta, forma a boa-fé objetiva, composta por uma regra de conduta, socialmente indicada, cujo paradigma é construído por padrões de correção, lisura e honestidade, insertos na consciência do homem médio comum.

Assim, a partir de padrão ético de confiança e lealdade, indispensável para o próprio desenvolvimento normal de convivência social, cria-se expectativa de um comportamento adequado por parte dos contratantes, legitimando  direitos e deveres, tanto no exercício, quanto no cumprimento da obrigação.

Erigida à categoria de princípio geral, a boa-fé objetiva deve ser observada na tríplice fase da relação obrigacional: formação, integração e execução. E esta norma é ínsita ao trato negocial. 

Não a vislumbro, todavia, no comportamento da apelante, de modo a ensejar a acolhida da pretensão revisional, considerando o exíguo espaço de tempo entre a contratação e o ingresso da ação, bem como o inadimplemento substancial do pacto. Não se pode olvidar que a autora utilizou os valores que lhe foram repassados pelo apelado, sabendo previamente as taxas e os valores das prestações, porquanto pré-fixadas.[...][104]

 Efetivamente, é necessário que o comportamento que se espera de fornecedores, a exemplo da correção, lisura, honestidade, naturalmente decorrentes da boa-fé, devam, de igual forma, ser exigidos do consumidor, sob pena de o parceiro prejudicado, sentido-se o senhor dos deveres, em nada colaborar para o atingimento da harmonia.

 É a dicotomia dos direitos e deveres que deve estar presente. Invertar as forças na relação de consumo certamente nunca foi a intenção do legislador; aliás, o que sempre se buscou foi torná-las iguais, exatamente para que não se precisasse falar delas, das forças, das disputas, mas da harmonia.

 Tornar mais forte o consumidor, mas para atingir a isonomia entre os contratantes, foi um dos grandes objetivos do CDC.  Finalmente o consumidor passou a ser detentor de mecanismos eficientes de proteção, tanto no Código de Defesa como em outros Diplomas que, direta ou indiretamente, o protegem.

As alterações no comportamento dos agentes da relação de consumo, entretanto, como já se mencionou anteriormente,  não podem ser uma mudança às avessas ou uma inversão nas responsabilidades, cobrando-se do fornecedor transparência, boa-fé, confiança, prudência, igualdade e permitindo-se que o consumidor, extasiado com a imensidão de normas que o protegem, confunda-se e acredite que o Código, por ter sido criado com o objetivo de equilibrar as relações entre ele e o fornecedor, protegendo-o dos abusos praticados no mercado de consumo, permita-lhe esquecer da boa-fé, acreditando estar imune à qualquer tipo de coibição e repressão.

 Não pode ser um autêntico “ir à forra”, com condutas desleais, a exemplo das demandas temerárias ou dos comportamentos censuráveis que foram mencionados no capítulo 4 deste trabalho, numa legítima vingança institucionalizada aos abusos cometidos em detrimento dos consumidores.

Comportamentos dessa natureza são prejudiciais ao interesse de todos nós, consumidores, especialmente porque, sem qualquer ingenuidade, se os fornecedores tiverem de arcar com todos os prejuízos, em especial daqueles provindos de demandas temerárias em que não raras vezes o Judiciário entende que o consumidor sempre tem razão, a socialização não será do lucro, mas dos danos, repassados a produtos e serviços, onerando os bons consumidores.

Harmonia é ponderação e isto é o que deve prevalecer. Para que se a atinja, mesmo que para alguns possa parecer utópico, é fundamental que haja comprometimento mútuo, em um verdadeiro depor de armas, no sentido de que a relação de consumo seja dotada de sentimentos de solidariedade e que os sujeitos dessa relação vejam-se como verdadeiros parceiros, confiando um no outro, sem abusos, por qualquer das partes, sob pena de ocorrer um retrocesso nessa evolução de igualdade que se alcançou no mercado consumidor. Nessa linha de entendimento, permite-se utilizar as palavras do Ministro Ruy Rosado, segundo o qual

[...]O art. 4º do Código se dirige para o aspecto externo e quer que a intervenção na economia contratual, para a harmonização dos interesses, se dê com base na boa-fé, isto é, com a superação dos interesses egoísticos das partes e com a salvaguarda dos princípios constitucionais sobre a ordem econômica através de comportamento fundado na lealdade e confiança.[...][105]

Por fim, para que se possa alcançar a esperada harmonia, faz-se necessário um pensar

diferente, por todos os partícipes da relação de consumo, inclusive, sim, pelo consumidor. Neste momento em que começa a surgir o aguardado equilíbrio e desaparecer um pouco os abusos no mercado, é imprescindível que, permitam, acalmem-se os ânimos, fazendo com que a boa-fé seja natural, o norte para consumidores e fornecedores.

Fundamental, nesse sentido, para concluir, repetir o ensinamento de  Nelson Nery Júnior:

[...]o Código pretende criar a necessidade de haver mudança de mentalidade de todos os envolvidos nas relações de consumo, de sorte que não mais seja praticada a ‘Lei de Gerson’ no país, segundo a qual se deve tirar vantagem devida e indevida de tudo, em detrimento dos direitos de outrem. O Código pretende desestimular o fornecedor com espírito de praticar condutas desleais ou abusivas, e o consumidor de aproveitar-se do regime do Código para reclamar

infundadamente pretensos direitos a ele conferidos[...].[106]

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Sobre o autor
Alfredo Benito Cechet

Advogado - Especialista em Direito do Consumidor e Direitos Fundamentais

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CECHET, Alfredo Benito. O risco da banalização do Código de Defesa do Consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4099, 21 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31546. Acesso em: 19 dez. 2024.

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