Princípio da Lesividade
O ordenamento jurídico brasileiro, mais notadamente a partir da Constituição de 1988, tem como pilares diversos princípios que deixam bastante evidente a adoção do Estado Democrático de Direito, tais como: a livre manifestação de pensamento, a inviolabilidade da intimidade e da vida privada, a proibição de privação de direitos em virtude de convicção filosófica e política, entre outros, bem como a expressa referência do “caput” do artigo 1º da Constituição da República.
A adoção de tais princípios pela Carta Maior demonstra que o sistema jurídico penal reconhece que o Estado, ao restringir a liberdade do indivíduo, na medida em que tipifica certas condutas como delito penal, não o pode fazer baseado em convicções particulares, em juízo de valor moral, apenas. O Estado, ao definir certos atos como delituosos, deve fazê-lo a partir do ponto em que tais atos importem em violação de bens jurídicos alheios. Isso significa dizer que, para que uma conduta seja considerada criminosa, deve atacar um direito externo ao agente. Portanto, a conduta delituosa nunca poderá ser assim considerada se tal conclusão se der a partir de questões morais; pelo contrário, as razões para tal tipificação penal devem ser estritamente jurídicas, sob pena de se ferir a ordem constitucional vigente, qual seja, o Estado Democrático de Direito.
Tal concepção, no Direito Penal, encontra respaldo no princípio da lesividade.
O princípio da lesividade define que o Estado só poderá punir o indivíduo quando a conduta por ele perpetrada representar uma afetação a um bem jurídico alheio, seja ele individual ou coletivo.
Segundo Eugênio Raúl Zaffaroni:
“Por certo tal proteção não se realiza mediante o poder punitivo; no entanto, é indiscutível que pretender aplicar penas quando não existe um direito ferido não só afeta o direito do apenado como também os dos demais cidadãos, ao transformar o modelo de estado: uma lei ou uma sentença que pretenda impor normas morais, cominando ou aplicando pena por um fato que não lesione ou exponha a perigo o direito alheio, é ilícita e sua ilicitude atinge a todos que se beneficiam ou podem beneficiar-se do respeito ao âmbito da autonomia moral que a Constituição estabelece” (2003).
O Professor Nilo Batista, em sua obra intitulada “Introdução crítica ao Direito Penal Brasileiro” admite quatro funções do princípio da lesividade (2001). Destas, apenas duas nos interessam citar neste trabalho, quais sejam: a de proibir a incriminação de uma conduta que não exceda o âmbito do próprio autor, e a de proibir a incriminação de condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico.
No tocante à primeira função retromencionada, estão incluídos naquela os atos preparatórios do delito que não foi iniciado e também a autolesão, que é a parte que interessa a este trabalho. Ora, se o indivíduo, ao praticar certo ato, não afeta qualquer bem jurídico que ultrapasse o seu próprio âmbito, pode-se dizer que não há motivo que enseje a interferência do Estado, no sentido de punir tal conduta. É o que ocorre no uso de substâncias entorpecentes. O usuário, ao fazer uso de drogas, estaria prejudicando apenas a sua própria saúde, seu próprio corpo; sua conduta de forma alguma representa qualquer lesão ou até mesmo perigo de lesão aos demais membros da sociedade. A partir daí, pode-se perceber como a norma penal constante do artigo 28 encontra-se em desacordo com os princípios que regem o Direito Penal, de forma que não há como negar a clara ofensa ao princípio da lesividade no caso em tela.
A segunda função apresentada na citada obra diz respeito à proibição de punição por condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico. O Direito não pode simplesmente estabelecer punições por condutas que a maioria da sociedade entende por imoral ou indesejada. A punição de atos pelo Direito Penal se legitima na afetação a um bem jurídico considerado de tal forma relevante que mereça a tutela penal, e não apenas com base em questões íntimas, subjetivas.
A posse de substâncias entorpecentes para uso próprio é considerada, pela maioria da sociedade, como uma conduta imoral, que desafia os bons costumes. Porém, não significa que, por não ser aceita, poderá o Estado entrar na esfera da liberdade individual do usuário e puni-lo, simplesmente porque sua conduta não agrada à coletividade.
Segundo Nilo Batista:
“O bem jurídico põe-se como sinal da lesividade (exterioridade e alteridade) do crime que o nega, revelando e demarcando a ofensa. Essa materialização da ofensa, de um lado, contribui para a limitação legal da intervenção penal, e de outro a legitima. Por isso mesmo, como parece ter percebido von Listz, o bem jurídico se situa na fronteira entre a política criminal e o direito penal. Não há um catálogo de bens jurídicos imutáveis à espera do legislador, mas há relações sociais complexas que o legislador se interessa em preservar e reproduzir” (2001).
Infere-se, portanto, que a punição da posse de drogas para uso próprio não representa proteção a bem jurídico algum, demonstra apenas a falta de adequação da legislação penal para com a realidade social existente no Brasil. O usuário de entorpecentes não pode ser tratado como delinquente, criminoso, uma vez que o mesmo representa tão somente a vítima da expansiva comercialização de drogas, e não o contrário.
Direito à privacidade
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso X, consagra a proteção ao direito de “intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
Dos direitos fundamentais presentes em tal dispositivo da Carta Maior, o que nos interessa neste trabalho é o direito à intimidade e à vida privada, ou seja, à privacidade do indivíduo.
A Constituição da República utilizou-se dos termos “intimidade” e “vida privada”, demonstrando haver uma diferenciação no significado dos dois termos.
A doutrina prefere utilizar-se do termo “privacidade”, uma vez que este abrange tanto os direitos relativos à não exposição de certos atos e situações referentes ao indivíduo, como também características inerentes à sua personalidade.
José Afonso da Silva, em sua obra “Curso de Direito Constitucional Positivo” (2001) diz que a expressão “privacidade” foi utilizada pela doutrina para abarcar todos os direitos individuais que a Constituição pretendeu resguardar quando os inseriu em seu artigo 5º, inciso X.
Quando a Constituição Federal fala em intimidade, entende-se que o legislador quis fazer menção àquele âmbito da vida do indivíduo que este pode impedir a que os outros tenham acesso. Neste contexto estão inseridos a inviolabilidade do domicílio, o sigilo da correspondência e o segredo profissional (SILVA, 2001).
Quando utiliza-se do termo “vida privada”, no mesmo artigo 5º, inciso X, a Constituição da República quis resguardar a maneira de viver do indivíduo, através da concessão de liberdade para que o mesmo possa expandir sua personalidade, além de resguardar o direito que todos têm de manter seu modo de vida em sigilo, se assim o preferir.
A Carta Maior, no mesmo dispositivo, fala, ainda, em “honra e imagem das pessoas”. Tais direitos assegurados constitucionalmente estão mais próximos do aspecto físico da pessoa e, por si só, não dizem respeito à privacidade do indivíduo. Porém, se analisados mais profundamente, percebe-se que tanto a honra quanto a imagem, quando contiverem questões que possam ferir a dignidade do indivíduo, atingem o âmbito do direito à privacidade, pois “aquilo que é contrário à dignidade da pessoa deve permanecer um segredo dela própria” (SILVA, 2001).
Conjugando tais considerações a respeito do conceito jurídico de privacidade, pode-se perceber que o ordenamento jurídico brasileiro, principalmente no âmbito constitucional, buscou-se preservar as características da personalidade de cada indivíduo, uma vez que cada ser humano é diferente um do outro, cada pessoa apresenta peculiaridades que lhe são próprias, e não podem, nem devem ser atingidas pelo julgamento moral da sociedade.
A partir da Revolução Francesa foram consagrados os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, representando um marco na História da civilização. Atualmente, tais ideais continuam sendo uma das bases do Estado Democrático de Direito, estando claro que as diferenças pessoais devem ser respeitadas, não só por cada um dos componentes da sociedade de maneira individual, mas também pela coletividade, representada pelo Estado.
A Revolução Francesa culminou na aprovação, em 26 de agosto de 1789, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Tal Declaração, em seu artigo 4º, definia que o direito de liberdade seria “poder fazer tudo o que não prejudique os outros” (BOBBIO, 1992). Esta conceituação do direito à liberdade, apesar de parecer um tanto simplória e ser bastante antiga, nem por isso deixa de ser adequada ao conceito dos direitos defendidos no artigo 5º, inciso X da Constituição da República. Tal conceito serve para definir, principalmente, o delito tratado neste trabalho.
O porte de substância entorpecente para uso próprio, caso prejudique alguém, restringe-se apenas ao âmbito da saúde do indivíduo que faz uso de tal substância. Sendo assim, a referida conduta prejudica apenas ele próprio. Por isso mesmo, ao invés de ser criminalizada, deveria ser mantida no âmbito de proteção aos direitos individuais resguardados pela Constituição da República, mais precisamente do direito à privacidade.
Nota-se, portanto, que há uma clara divergência entre o dispositivo constitucional que prevê o direito à privacidade e o artigo da Lei de Tóxicos que visa punir o indivíduo que adquire, traz consigo ou guarda substância tóxica ou entorpecente, destinada a uso próprio.
Da atipicidade penal do delito previsto no artigo 28 da Lei de Tóxicos
Ao analisar o artigo 28 da Lei Antidrogas, fazendo-o livre de qualquer conceito moral, é latente o fato de que a posse de entorpecentes para consumo pessoal não afeta bem jurídico algum.
Neste trabalho, não se tem o objetivo de atacar todos os crimes de perigo existentes na lei penal. A saúde pública é um bem jurídico que, sem dúvida, deve ser tutelado pelo ordenamento brasileiro. Não há que de discutir a legitimidade de tal bem jurídico a ser protegido pelo Direito Penal. A grande questão a ser discutida é que o delito do artigo 28 da Lei nº 11.343/2006 não atinge a saúde pública e, portanto, a conduta prevista em tal dispositivo legal é atípica.
O indivíduo que traz consigo substância entorpecente para uso próprio, não o faz, como já está delimitado pelo próprio artigo 28, no intuito de difundir tal substância para a coletividade. Algumas orientações jurisprudenciais e doutrinárias afirmam que “o toxicômano normalmente acaba traficando, a fim de obter dinheiro para aquisição da droga” (GRECO FILHO, 1982).
Tal alegação é inaceitável, do ponto de vista jurídico, para justificar a tipificação da conduta aqui discutida.
Primeiramente, ao artigo 28 visa punir apenas o usuário, uma vez que a figura do traficante encontra previsão no artigo 33 daquela lei. É pacífico na doutrina e jurisprudência que, quando o agente é, ao mesmo tempo, usuário e traficante, será punido pela conduta mais grave, já que esta absorve o delito de posse de entorpecentes para uso próprio. Portanto, a alegação de que o usuário comumente torna-se um revendedor de substâncias ilícitas não é aceitável para justificar a proteção à saúde pública pela incriminação da conduta prevista no artigo 28.
A norma penal não pode basear-se na simples presunção de que todo usuário se transformará em traficante. Se assim for feito, alguns dos princípios basilares do Estado Democrático de Direito, quais sejam, o princípio da legalidade e o princípio da presunção de inocência estarão sendo totalmente desconsiderados.
Faz-se necessário encarar a posse de drogas pelo usuário de forma desprovida de qualquer preconceito ou conceito moral que a sociedade utiliza para julgar o usuário como um indivíduo indesejável no círculo social. O objetivo, aqui, não é tentar demonstrar a inofensividade do uso de entorpecentes no meio social. Está claramente demonstrado, nos dias atuais, que o uso de drogas não faz bem ao indivíduo, os prejuízos para usuário são bastante evidentes. Porém, o que se quer demonstrar é que os prejuízos para o usuário são sofridos apenas por aquele que se submete à situação de dependente de drogas. No máximo, a família do dependente será atingida, ou haverá interferência do vício no ambiente de trabalho daquele, sendo que, ainda assim, tais prejuízos continuam apenas no âmbito pessoal. De qualquer modo, é evidente que tais prejuízos não são motivo autorizador para a punição estatal do usuário na esfera penal.
Não se pode negar que a questão do uso de substâncias entorpecentes é um problema social e, portanto, deve ser relevante na atuação do Estado. Tal atuação deve, em primeiro lugar, diferenciar os usuários eventuais dos dependentes e, a partir daí, aplicar medidas eficientes de prevenção aos primeiros, e de tratamento aos segundos. No lugar de buscar a implementação de tais medidas, o Estado brasileiro ainda mantém a visão estigmatizada dos usuários, cuidando da questão na esfera penal, colocando meros usuários na situação de criminosos, delinquentes. Tudo isso sob a justificativa de que a punição é aplicada tendo em vista resguardar a coletividade, proteger o bem jurídico “saúde pública”.
O Estado, ao adotar tal postura, utiliza-se de um argumento vago e, por isso mesmo, bastante perigoso, para justificar a punição infundada de uma conduta que não deveria ser considerada crime, não só pelos motivos político-criminais, que são muitos, embora não sejam o centro deste estudo, mas, principalmente, pela sua atipicidade penal.
Em análise dos delitos previstos no Título VIII, Capítulo III do Código Penal (Crimes contra a saúde pública), nota-se que as condutas incriminadas em todos os artigos são condutas que realmente colocam em risco a saúde pública, uma vez que há a propagação de alguma substância ou uma situação que exponha a coletividade a um perigo, mesmo que este seja abstrato. Pois bem, ao se fazer a comparação entre tais crimes e o delito de posse de entorpecentes para uso próprio, resta ainda mais evidente o inofensividade de tal conduta. As condutas previstas naquele Capítulo do Código Penal Brasileiro realmente devem ser regulamentadas na esfera penal, já que apresentam relevância para tanto. Naqueles casos, a saúde pública está, de fato, em perigo, uma vez que um grande número de pessoas poderia ter sua integridade física lesada pela conduta perpetrada. Já a conduta de trazer consigo substância entorpecente para uso próprio não expõe a coletividade a nenhum risco de lesão, de modo algum coloca a saúde pública em risco. O único risco que tal conduta representa é para a saúde do próprio usuário de entorpecentes. Como bem expõe Maria Lúcia Karam,
“nesta linha de raciocínio, não há como negar a incompatibilidade entre a aquisição ou posse de drogas para uso pessoal – não importa em que quantidade – e a ofensa à saúde púlica, pois não há como negar que a expansibilidade do perigo e destinação individual são coisas antagônicas. A destinação pessoal não se compatibiliza com o perigo para interesses jurídicos alheios. São coisas conceitualmente antagônicas: ter algo para si próprio é o oposto de ter algo para difundir entre terceiros, sendo totalmente fora de lógica sustentar que a proteção à saúde pública envolve a punição da posse de drogas para uso pessoal” (1993).
Em tempos passados, considerava-se que a tipicidade penal se restringia apenas ao aspecto formal, ou seja, a conduta, para ser definida como crime, deveria apenas encaixar-se no tipo descrito na norma penal. Tal conceito foi formulado por Liszt Beling (PRADO, 1999). A teoria do tipo independente afirmava que, para a configuração do delito, bastava a prática da conduta narrada pela norma. Não havia qualquer elemento de juízo de valor daquela conduta, havia apenas a descrição do ato, sem qualquer vinculação com o seu significado social.
Posteriormente, percebeu-se a necessidade de encontrar uma razão para a punição do agente, através de conteúdo valorativo da norma, que demonstrasse a real necessidade de enquadrar certas condutas no âmbito penal. Já não era suficiente que o tipo penal descrevesse a conduta, apresentando todos os elementos formais, fazia-se necessário que a tipificação dos atos humanos tivesse uma fundamentação nos valores que merecessem a tutela penal. Tal merecimento, enfatizando o que já foi dito, também não poderia ser avaliado através de meros juízos de valor moral; a tipificação penal haveria de basear-se em questões externas à moral de uns ou outros membros da sociedade. A partir daí, o Direito Penal passou a apresentar duas faces igualmente importantes da tipicidade dos delitos: a tipicidade formal e a tipicidade material ( LIMA, 2006).
A tipicidade formal do delito está contida no princípio constitucional da legalidade: “nullum crimen nulla poena sine lege”. Tal princípio representa, simultaneamente, o poder de coação do Estado e a garantia de liberdade do indivíduo, uma vez que delimita o espaço no qual poderá a ação estatal intervir nas ações individuais dos membros da sociedade.
O princípio da legalidade confere ao legislador a tarefa de criar a norma, descrevendo os elementos do tipo, de forma que, toda conduta que se mostre adequada à descrição abstrata contida no dispositivo legal seja passível de punição estatal.
Porém, o que mais nos interessa neste trabalho é a tipicidade material do delito. Conforme já dito, esta surgiu posteriormente ao conceito de tipicidade formal, e representa um passo importante na História do Direito Penal.
A tipicidade material é aquela que define que a conduta praticada pelo agente, para ser considerada crime, deve representar uma lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico a ser resguardado na esfera penal. Não será discutido, neste momento, qual seria o critério a ser utilizado para a definição de quais bens jurídicos merecem a tutela penal e quais devem ser objeto de outras áreas jurídicas. A intenção, nesta etapa, é demonstrar que, para haver tipicidade material, o delito deve atingir algum bem de relevância jurídica, de modo que, não basta que a conduta perpetrada pelo indivíduo esteja em consonância com a descrição delitiva, é necessário que, além disso, a prática daquele ato representa uma lesão a um direito alheio.
Considerações Finais
Diante do exposto neste trabalho, infere-se que existe um conflito entre a norma prevista no artigo 28 da Lei nº 11.343/2006 da Lei de Tóxicos e o disposto no artigo 5º, inciso X da Constituição da República.
O legislador da norma penal, ao definir quais condutas serão consideradas criminosas e punidas pelo Estado, deve, antes, fazer uma análise acerca da necessidade de criação de certas normas e se as mesmas estão resguardando, em primeiro lugar, os valores maiores do Estado Democrático de Direito, os direitos fundamentais de cada indivíduo.
Dessa forma, o legislador, ao criar normas, em especial aquelas do âmbito penal, deve faze-lo observando os princípios constitucionais, de modo que não sejam criadas leis que estejam em desacordo com toda a base da estrutura estatal e social.
No caso em questão, a norma prevista no artigo 28 da Lei nº 11.343/2006 surgiu após a Constituição da República atual. Ainda assim, pelo que se vê, tal norma foi publicada em desacordo com os parâmetros do paradigma jurídico e histórico vigente.
A Constituição vigente apresenta um paradigma que não mais se conforma com a punição da conduta do uso de entorpecentes, já que entre os direitos fundamentais defendidos constitucionalmente, estão o direito à privacidade e a dignidade humana.
Já que o disposto no artigo 28 da Lei Antitóxicos, atualmente, encontra-se em desacordo com a ordem constitucional vigente, tal dispositivo deve ser extirpado do ordenamento jurídico, pois não se pode admitir que uma regra penal continue vigente quando a mesma contaria princípios básicos e de extrema importância para a manutenção do Estado Democrático de Direito.
Da mesma forma que o legislador penal tem a obrigação, perante o texto constitucional, de criar normas que visam a punição de condutas que venham a ferir direitos fundamentais, existe também a obrigação de se retirar a vigência de normas que foram editadas em desacordo com os parâmetros constitucionais.
Pelo contrário, a criminalização dessas condutas fere os referidos dispositivos constitucionais ao invés de resguardá-los.
A atividade legislativa é extremamente importante para a efetivação dos direitos fundamentais previstos na Constituição. Por meio do legislador infraconstitucional é viabilizada a concretização dos valores resguardados pela Carta Maior.
Analisando o problema discutido neste trabalho, nota-se que o artigo 28 visa a proteção jurídica da saúde pública, enquanto fere o direito fundamental à privacidade sob a argumentação doutrinária de que, a partir do momento em que fere a saúde pública, a conduta prevista naquele artigo não mais está protegida pela norma do artigo 5º, inciso X da Constituição Federal, já que configura um delito penal.
O Estado brasileiro necessita de alterações significativas no que diz respeito ao tratamento dispensado aos usuários de drogas no país, uma vez que a posição adotada desde a década de 50, com a Lei nº 6.368/1976, não mais condiz com a realidade social dos tempos atuais.
Além de ferir os princípios penais universais da intervenção mínima, lesividade e fragmentariedade, a punição do porte de entorpecentes para uso próprio se encontra desviada das políticas públicas de sucesso ao redor do mundo. Trata-se de um problema a ser tratado no âmbito da saúde pública e da educação, e não no campo da repressão penal.
No caso em questão, talvez a solução mais adequada seria a denominada descriminalização substitutiva (CORAC INI, 2004). Essa solução seria baseada na transformação de ilícitos penais em infrações administrativas ou fiscais, punidas com multas de caráter disciplinar. Assim, a punição por porte de drogas para uso não acarretaria, para o indivíduo, as mesmas consequências que sofre um criminoso, tais como a prisão, a submissão a um processo penal, a inscrição no rol de culpados, entre outros.
O Direito Penal tem caráter subsidiário, uma vez que seu objetivo é proteger “bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens e que não podem ser eficazmente protegidos de forma menos gravosa” (PRADO, 2002).
Não é adequado que o usuário de drogas seja punido no âmbito penal, sendo mais apropriada uma punição no âmbito administrativo, sendo indispensável e mais importante, a submissão dos dependentes a tratamento médico dessa condição.
Importante asseverar que a solução apresentada neste trabalho visa, como objetivo maior a ser alcançado pelo Estado, a diminuição do número de indivíduos dependentes de substâncias entorpecentes, situação esta que vendo sendo denominada por especialistas como “epidemia”.
O objetivo é que o Estado concentre o trabalho na identificação dos usuários viciados, diferenciando-os dos meros usuários eventuais ou experimentadores, oferecendo a eles tratamento médico, e não os punindo pura e simplesmente com a imposição de uma decisão penal.
“Trata-se, neste ponto, do reconhecimento da existência de diferentes graus de ilicitude a conformar o sistema sancionatório moderno, do qual o direito penal é o último recurso, o mais drástico, mas que deve manter um potencial mínimo de eficácia, sob risco de perda da credibilidade do inteiro sistema punitivo. Isso significa que o mínimo possível de bens jurídicos deve estar sob sua proteção, para que não se incorra nas já mencionadas falhas estruturais do sistema, e cuja origem se encontra no irracionalismo legislativo e administrativo” (CORACINI, 2004).
É preciso mudar a visão e a estrutura estatal de modo que se possa perceber que existem outras formas a serem utilizadas pelo Poder Público para o controle da situação social advinda do uso de drogas, até mesmo porque não há, diante das evidências, como negar que o número de usuários aumenta a cada ano.
No Brasil, não há, ainda, um Direito Administrativo sancionador bem desenvolvido e estruturado, já que apenas em algumas leis esparsas estão presentes sanções administrativas referentes a ilícitos extrapenais. Ao mesmo tempo, a discussão acerca da descriminalização do uso de entorpecentes demonstra a evolução do tema.
A punição penal da posse de substâncias entorpecentes para uso próprio destoa da tendência mundial na procura por uma solução mais eficiente da questão. O Estado precisa se liberar de dogmas conservadores para que haja uma evolução no tratamento dispensado aos usuários e, consequentemente, uma resposta social satisfatória.
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