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Introdução ao estudo de Direito processual civil. A teoria do processo e o direito processual civil contemporâneo.

Uma homenagem a Fredie Didier Jr.

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2. Devido processo legal e outros princípios constitucionais do processo

2.1. Devido processo legal

2.1.1. Introdução

Previsão constitucional: inciso LIV do art. 5º da Constituição de 1988 - “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

Expressão inglesa due process of law. Law significa Direito, e não lei (tradução mais aceita[1]).

Isso é importante porque o processo há de estar conforme o Direito como um todo (conforme o ordenamento jurídico-nacional como um todo), e não apenas com a lei.

Princípio do devido processo legal: confere o direito fundamental a um processo devido (justo, equitativo etc).

Processo: é entendido por nós como um método de exercício de poder normativo.

As normas jurídicas[2] são produzidas após um processo (conjunto de atos organizados para a produção de um ato final).

Nenhuma norma jurídica pode ser produzida sem a observância do devido processo legal. “O devido processo legal é uma garantia contra o exercício abusivo do poder, qualquer poder.” (DIDIER JR., Fredie).

Note-se: a dedicação nossa sobre o tema será a despeito do devido processo legal jurisdicional e suas repercussões no direito processual civil.

2.1.2. Conteúdo do devido processo legal

Consagra-se como cláusula geral (ver parte 1). Em geral[3], entende-se que a Magna Carta de 1215[4] é o documento histórico mais remoto de consagração do devido processo legal, gerando forte influência na formação dos Direitos inglês e estadunidense.

Com o passar do tempo, ocorreram mutações interpretativas em torno do devido processo legal: não se pode comparar o que era devido[5] no século XIV[6] junto com o que era devido no início do século XX[7]. Há um inegável acúmulo histórico a respeito da compreensão do devido processo[8].

No Direito brasileiro, podemos elencar seus efeitos históricos[9]:

a) contraditório e a ampla defesa (art. 5º, LV, CR88) e dar tratamento paritário às partes do processo (art. 5º, I, CPC);

b) proibição das provas ilícitas (art. 5º, LVI, CR88);

c) processo há de ser público (art. 5º, LX, CR88);

d) garantia do juiz natural (art. 5º, XXXVII e LIII, CR88);

e) as decisões hão de ser motivadas (art. 93, IX, CR88);

f) o processo deve ter uma duração razoável (art. 5º, LXXVIII); o acesso à justiça é garantido (art. 5º, XXXV) etc.

O devido processo legal é um direito fundamental de conteúdo complexo[10]. Entende-se que essa garantia anda em constante progresso.

Função dessa cláusula geral: permitir a mobilidade e abertura do sistema jurídico[11][12].

Função integrativa: criar elementos necessário à promoção do ideal de protetividade dos direitos, de modo a integrar o sistema jurídico eventualmente lacunoso.

Com isso, além de público, paritário, tempestivo etc., o processo, para ser devido, há de ter outros atributos: precisa ser (i) adequado, (ii) leal e (iii) efetivo.

É com base nessas premissas que surgem, então, os (i) princípios da adequação, da (ii) boa-fé processual e da (iii) efetividade. Que, por sua vez, são corolários do devido processo legal.

2.1.3. Devido processo legal formal e devido processo legal substancial

Podemos entender o devido processo legal em duas dimensões:

a) devido processo legal formal (ou procedimental): seu conteúdo é composto pelas garantias processuais[13]. É a dimensão mais conhecida pelos operadores.

b) devido processo legal substancial (inspiração estadunidense): um processo devido é um processo que gera decisões jurídicas substancialmente devidas. Ou seja, não basta a observância das exigências formais, como ocorre no devido processo legal formal (ou procedimental).

2.1.4. Devido processo legal “brasileiro”

A experiência jurídica brasileira assimila o devido processo legal de um modo peculiar. Utiliza-o como fundamento constitucional das máximas da proporcionalidade (também chamada de “postulado”[14], “princípio”[15] ou “regra da proporcionalidade”[16], conforme o pensamento doutrinário que adotar) e da razoabilidade. A jurisprudência do STF (Supremo Tribunal Federal) extrai da cláusula geral do devido processo legal os deveres da proporcionalidade ou razoabilidade (RE 374.981, Min. Celso de Mello, Info 381). O STF segue a concretização do devido processo legal substancial, sob entendimento desta cláusula geral, de modo amplo e vago (Sérgio MATTOS[17]).

Interessante notar que as constituições brasileiras anteriores à Constituição de 1988 não contemplavam expressamente o princípio do devido processo legal, mas nem por isso a proporcionalidade e a razoabilidade deixaram de ser aplicadas (ÁVILA, Humberto. “O que é ‘devido processo legal’?”).

Esse mesmo princípio pode ser extraído: do Estado de Direito[18], isonomia[19] ou liberdade[20].

Poder-se-ia entender isso como um problema, mas é bom lembrar da lição de Claus-Wilhelm CANARIS[21] de que os princípios não têm pretensão de exclusividade.

Um mesmo efeito jurídico (proporcionalidade e razoabilidade) pode ser resultado de diversos princípios (isonomia ou devido processo legal).

Lembre-se[22]: o princípio do devido processo legal é um princípio que se aplica em qualquer produção normativa, inclusive no processo de produção dos negócios jurídicos (autonomia privada).

2.1.5. Devido processo legal e relações jurídicas privadas:

Na primeira parte, falávamos da produção de normas jurídicas (jurisdicional, administrativo, legislativo ou negocial).

Há uma discussão doutrinária sobre a aplicação da teoria dos direitos fundamentais no âmbito privado, na chamada “eficácia horizontal dos direitos fundamentais”.

Por mais que nos manuais apareça como comum sua aplicação, existe uma polêmica sobre o assunto, dividida em teorias:

1) teoria do state action: nega a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas (fundamento: o único sujeito passivo daqueles direitos seria o Estado[23]);

2) teoria da eficácia indireta e mediata dos direitos fundamentais na esfera privada: a constituição não investe os particulares em direitos subjetivos privados, mas tão-somente serve de baliza para o legislador infraconstitucional, que toma como premissa para a criação da norma os valores constitucionais na elaboração das leis de direito privado[24];

3) teoria da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais na esfera privada[25]: os direitos fundamentais têm plena aplicação nas relações privadas, podendo ser invocados diretamente, independentemente de qualquer mediação legislativa infraconstitucional, privilegiando-se a atuação do magistrado em cada caso concreto (Brasil, Espanha e Portugal).

Para entender: a atual Constituição brasileira, está inserida em uma moldura axiológica de índole eminentemente intervencionista e social, o que faz admitir a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais nela erigidos, de modo que o Estado e a sociedade são sujeitos passivos desses mesmos direitos fundamentais.

Por exemplo: podemos aplicar o princípio do devido processo legal, seja na fase pré-processual, seja na fase executiva no negócio jurídico.

Por exemplo: a Lei 11.127/05 que determinou a alteração do art. 57 do atual Código Civil[26], relacionada ao procedimento para exclusão de associado[27].

2.2. Princípios constitucionais processuais expressos

2.2.1. Princípio do contraditório

Previsão constitucional: inciso LV do art. 5.º da Constituição de 1988. Veja seu teor: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

É um reflexo do princípio democrático: “democracia é participação, e a participação no processo opera-se pela efetivação da garantia do contraditório” (DIDIER JR., Fredie).

Dimensão formal do princípio do contraditório: é a garantia da participação. Esse é o conteúdo mínimo do princípio do contraditório e concretiza a visão tradicional sobre o tema. Para esse pensamento, o órgão jurisdicional efetiva a garantia do contraditório simplesmente ao dar possibilidade de a parte se manifestar (de ser ouvida).

Dimensão substancial do princípio do contraditório: é o poder de influência[28]. Não basta tão-somente a parte processual ser ouvida, há de haver também condições de poder influenciar a decisão do magistrado.

Por exemplo: não é lícita a aplicação de qualquer punição processual, sem que se dê oportunidade de o “possível punido” manifestar-se previamente, sem possibilidade de influenciar no resultado da decisão.

Exemplo: art. 599, inciso II, do CPC, que determina que o juiz deve, em qualquer momento da fase executiva, advertir ao devedor que o seu procedimento constitui ato atentatório à dignidade da justiça (ou seja, antes de punir, adverte para que a parte possa explicar-se).

No mesmo sentido: a aplicação da multa do art. 14, parágrafo único, do CPC. O magistrado deve expedir mandado para cumprimento da diligência em advertir os sujeitos[29] de que seu comportamento poderá resultar na aplicação a mencionada multa. Sem essa comunicação/advertência prévia, a multa porventura aplicada é inválida (ofende o princípio do contraditório).

Pronunciamentos judiciais: pautam-se em questões de fato e de direito, para, daí então, o Estado-juiz poder decidir (CPC, art. 131). O Estado-juiz pode até mesmo basear-se em fato que não foi alegado pelas partes, mas que influa no julgamento da causa, mesmo que ninguém tenha provocado a respeito (CPC, art. 462).

Todavia, e isto é importante: o juiz não pode levar em consideração um fato de ofício, sem que as partes tenham tido a oportunidade de se manifestarem a respeito, sob pena de ferir o contraditório.

O juiz pode agir de ofício, sem provocação da parte; mas, o juiz não pode agir sem provocar as partes.

Em poucas palavras: o juiz pode agir/conhecer de ofício, mas antes de decidir precisa ouvir as partes.

Perceba, com o exemplo do Prof. Fredie DIDIER JR., a dificuldade prática e a importância do tema: verifica que a lei é inconstitucional. Ninguém alegou que a lei é inconstitucional. O autor pediu com base em uma determinada lei, a outra parte alega que essa lei não se aplicava ao caso. O juiz entende de outra maneira, ainda não aventada pelas partes: “Essa lei apontada pelo autor como fundamento do seu pedido é inconstitucional”. Portanto, julgado improcedente a demanda[30]”. O órgão jurisdicional pode fazer isso, mas deve antes submeter essa nova abordagem à discussão das partes. O correto seria de o juiz intimar as partes para manifestar-se a respeito sobre a constitucionalidade da lei (o que não caracteriza aí qualquer prejulgamento[31]).

A nova dimensão do princípio do contraditório (isto é: cooperativo) redefine o modelo do processo civil brasileiro: o processo há de ser cooperativo. E no caso de providências jurisdicionais antes da ouvida da outra parte (inaudita altera parte)? Há violação do contraditório? Não, porque, neste caso, o contraditório é postecipado para momento posterior à concessão da providência de urgência.

2.2.2. Princípio da ampla defesa

Previsão constitucional: inciso LV do art. 5º da Constituição de 1988.

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A doutrina tradicional distinguia contraditório e ampla defesa. A doutrina moderna, por sua vez, não faz essa distinção. Com o desenvolvimento da dimensão substancial do princípio do contraditório, pode-se dizer que eles se fundiram, formando um único direito fundamental. Em suma: atualmente, a ampla defesa corresponde ao aspecto substancial do princípio do contraditório.

2.3. Princípio da publicidade

Processo devido é o processo público: o princípio da publicidade gera o direito fundamental à publicidade.

Duas funções da publicidade processual:

a) proteger as partes contra juízos arbitrários e secretos;

b) permitir o controle da opinião pública sobre os serviços da justiça (sobre o exercício da atividade jurisdicional).

Com base nas duas funções, têm-se as duas dimensões da publicidade processual:

a) interna: publicidade para as partes, bem ampla, em razão do direito fundamental ao processo devido;

b) externa: publicidade para os terceiros, que pode ser restringida[32] em alguns casos, como se verá. A publicidade e a constituição brasileira: EC45/2004 ratificou a exigência da publicidade de todos os atos provenientes dos órgãos do Poder Judiciário (ex.: incisos IX[33] e X[34] do art. 93).

Perceba a íntima relação: entre os princípios da publicidade e a regra[35] da motivação das decisões judiciais.

Por exemplo: transmissão ao vivo[36] dos julgamentos do STF (considera-se uma técnica de concretização da dimensão externa do direito fundamental à publicidade processual).

Por exemplo: publicidade em processos eletrônicos tem as suas peculiaridades. Ver Lei 11.419/2006 e a Resolução 121/2010 do Conselho Nacional de Justiça.

2.2.4. Princípio da duração razoável do processo

Previsão internacional: Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Ricas[37], item 8.1).

Artigo 8º - Garantias judiciais

1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.

Com base nesse dispositivo, entende-se o direito ao processo sem dilações indevidas, que, na verdade, poderia ser exercido como corolário do devido processo legal, bem ainda dos princípios da inafastabilidade e da proteção à dignidade da pessoa humana.

A EC45/2004 reformou constitucionalmente o Poder Judiciário, incluiu o inciso LXXVIII[38] do art. 5º da CR1988. Outro interessante dispositivo acrescentado foi a alínea “e”[39] ao inciso II do art. 93 da CR1988.

Em suma: “processo devido é, pois, processo com duração razoável” (Fredie DIDIER JR., p. 68).

A Corte Europeia dos Direitos do Homem e os três critérios para se determinar a duração razoável do processo:

a) a complexidade do assunto;

b) o comportamento dos litigantes e de seus procuradores ou da acusação e da defesa no processo;

c) a atuação do órgão jurisdicional.

O princípio da celeridade existe? Entende-se que o processo não tem de ser rápido/célere: o processo deve demorar o tempo necessário e adequado à solução do caso submetido ao órgãos jurisdicional. Processo não tem de ser rápido/célere[40]. Exemplo histórico: os processos da Inquisição poderiam ser rápidos, mas a humanidade não sente saudade deles, afirma Fredie DIDIER JR.

2.2.5. Princípio da igualdade processual (paridade de armas)

O procedimento deve proporcionar às partes as mesmas armas para a luta. Mas, se houver diferenças eventuais de tratamento, estas devem ser justificáveis, racionalmente, à luz de critério de reciprocidade, deve-se evitar mesmo o desequilíbrio global em prejuízo de uma das partes[41] (MARINONI, Luiz Guilherme. Novas Linhas do Processo Civil, 1999, p. 256). O princípio da igualdade processual impõe a criação de uma série de regras processuais adequadas às particularidades de cada sujeito do processo. A igualdade processual confunde-se com a adequação subjetiva do processo, examinada em item seguinte sobre o princípio da adequação.

2.2.6. Princípio da eficiência

O processo há de ser eficiente, para poder ser um processo devido. Esse princípio é um dos corolários da cláusula geral do devido processo legal (NERY JR., Nelson).

Previsão constitucional: art. 5º, LIV, e o caput do art. 37, ambos dispositivos da Constituição de 1988, dispositivo este que também sujeita o Judiciário.

O referido princípio repercute no Poder Judiciário em duas dimensões:

a) Administração Judiciária[42] e

b) a gestão de um determinado processo. Não nos interessa o estudo da dimensão sobre a Administração Judiciária, porque ela é própria do estudo do Direito administrativo brasileiro. Interessa-nos a dimensão voltado à gestão de um determinado processo, pois, aqui, o princípio dirige-se ao órgão do Poder Judiciário (órgão jurisdicional, e não administrativo), concernente à gestão de um processo (jurisdicional) específico.

Compreensão da eficácia processual do princípio da eficiência e suas premissas:

a) esse princípio se relaciona com a gestão do processo: vê-se, aqui, o órgão jurisdicional como um administrador de um determinado processo, de modo que a lei atribuiu-lhe poderes de condução (gestão) do processo. Esses poderes dados pela lei devem ser exercidos com o máximo de eficiência ao processo (o “estado de coisas”[43] que se busca aqui é o de um processo eficiente);

b) a aplicação do princípio da eficiência ao processo é uma versão contemporânea (e também atualizada) do conhecido princípio da economia processual. Mudou-se a denominação. Dois motivos: (i) assim que ela aprece no texto constitucional; (ii) por ser uma técnica retórica de reforço da relação entre esse princípio e a atuação do juiz como um administrador – ainda que administrador de um determinado processo;

c) os dois deveres do princípio da eficiência[44]: (i) o de obter o máximo de um fim com o mínimo de recursos (efficiency); (ii) o de, com um meio, atingir o fim ao máximo (effectiveness).

Eficiente: é a atuação que promove os fins do processo de modo satisfatório em termos quantitativos, qualitativos e probabilísticos. A ideia é de adaptar ou arquitetar, na expressão de Eduardo José da Fonseca COSTA, regras processuais, com o propósito de atingir a eficiência; pode-se falar que o mesmo busca-se coma aplicação do princípio da adequação, por exemplo.

Diferença entre efetivo e eficiente: (i) efetivo: é o processo que realiza o direito afirmado e reconhecido judicialmente; (ii) eficiente: é o processo que atingiu esse resultado de modo satisfatório.

Conclusões da diferença entre efeito e eficiente: (i) um processo pode ser efetivo sem ter sido eficiente (atingiu um fim de realização do direito de modo insatisfatório (ex.: excessiva demora da prestação jurisdicional); (ii) jamais poderá ser considerado eficiente sem ter sido efetivo: por exemplo, a não realização de um direito reconhecido judicialmente (ineficiência do processo).

Superadas essas premissas, vejamos algumas aplicações do princípio da eficiência no processo:

a) dever de eficiência: escolha do meio a ser utilizado para a execução da sentença (art. 461, §5º, CPC). Busca-se o meio executivo que deva promover a execução de modo satisfatório;

b) função interpretativa: a legislação processual deve observar a eficiência. Ex.: após o vencimento do prazo máximo de suspensão é medida que pode revelar-se extremamente ineficiente, sob o pontos de vista da administração o processo (art. 265, §§ 3º e 5º, do Código de Processo Civil);

c) permissão de “conexão probatória” entre causas pendentes: com base no princípio da eficiência, pode-se unificar a atividade instrutória, como forma de redução de custos, mesmo que isso implique a necessidade de julgamento simultâneo de todas elas. Ex.: nocividade de um determinado produto e várias demandas judiciais, pode-se determinar apenas uma única perícia, de modo que eventuais custos seriam repartidos entre os sujeitos interessados de todos os processos;

d) adoção de técnicas atípicas[45] pelo órgão jurisdicional: como, por exemplo, a ampliação de prazos ou inversão da ordem de produção de provas, porque assim exige a situação do caso concreto.

2.3. Princípios constitucionais processuais implícitos

2.3.1. Princípio da boa-fé processual

A origem dessa temática é proveniente de uma expansão da exigência de boa-fé do direito ao direito público. Um precedente interessante sobre o assunto foi o que ocorreu na Alemanha[46], que acabou estendendo a aplicação da cláusula geral de boa-fé também ao direito processual civil[47] e penal[48].

Ou seja, sempre que existir um vínculo jurídico, as pessoas envolvidas estão obrigas a não frustrar a confiança razoável do outro, devendo comportar-se como se pode esperar de uma pessoa de boa-fé (LARENZ, Karl).

Consequentemente, a boa-fé recai também sobre as relações processuais (CHIOVENDA, Giuseppe. Princípios de derecho procesal civil.; JUNOY, Joan Pico i. El debido processo leal.). Os sujeitos processuais devem comportar-se de acordo com a boa-fé (entendida, aqui, como norma de conduta – boa-fé objetiva[49][50]). Até mesmo o órgão jurisdicional[51] está comprometido com a boa-fé.

Previsão legal: inciso II do art. 14 do CPC. Teor: “Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo: (...) II – proceder com lealdade e boa-fé”. Boa-fé objetiva processual[52]: não se está falando em intenções (boas ou más intenções), fala-se de conduta (objetivamente).

Natureza jurídica: cláusula geral processual, porque a infinidade de casos que podem aparecer durante a atuação jurisdicional corromperia qualquer enumeração legal exaustiva das hipóteses de comportamento desleal (TARUFFO, Michele; VINCENZI, Brunela Vieira de.).

Regras de proteção à boa-fé: as normas sobre litigância de má-fé (arts. 17-18, CPC), por exemplo.

Doutrina alemã e os quatro casos de aplicação da boa-fé ao processo: a) proibição de criar dolosamente posições processuais, ou seja, proibição de agir de má-fé; b) proibição de venire contra factum proprium; c) proibição de abuso de poderes processuais; d) Verwirkung (ou para alguns: supressio): seria a perda de poderes processuais em razão do seu não-exercício por tempo suficiente para incutir no outro sujeito a confiança legítima de que esse poder não mais seria exercido.

O quinto caso: o princípio da boa-fé impõe deveres de cooperação entre os sujeitos do processo.

Seguindo.

Onde encontrar o fundamento constitucional do princípio da boa-fé processual? Primeira corrente: pode ser extraído implicitamente dos princípios constitucionais. Segunda corrente: está previsto no inciso I do art. 3º[53] da Constituição (VINCENZI, Brunela Vieira de.). Terceira corrente: decorre da proteção constitucional à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CR1988), ensina assim o teórico ROSENVALD, Nelson.; NEGREIROS, Teresa. Quarta corrente: decorre do direito fundamental à igualdade (CORDEIRO, António Manuel de Rocha e Menezes). Quinta corrente: fundamento é o princípio do contraditório[54] (CABRAL, Antônio do Passo.). Sexta corrente (STF[55]): compõe a cláusula do devido processo legal, limitando o exercício do direito de defesa, como forma de proteção do direito à tutela efetiva (JUNOY, Joan Pico i.). Em suma: é mais fácil, levando-se com base a sexta corrente, entender a argumentação da existência de um dever geral de boa-fé processual como conteúdo do devido processo legal (fundamento: o processo para ser devido[56] precisa ser ético e legal).

2.3.2. Princípio da efetividade

Os direitos devem ser, além de reconhecidos, efetivados. Processo devido é processo efetivo. Esse princípio garante o direito fundamental à tutela executiva[57].

Esse posicionamento está atrelado ao princípio da inafastabilidade, o qual deve ser entendido como garantia de acesso à ordem jurídica justa, consubstanciada em uma prestação jurisdicional célere, adequada e eficaz (WATANABE, Kazuo). “O direito à sentença deve ser visto como direito ao provimento e aos meios executivos capazes de dar efetividade ao direito substancial, o que significa o direito à efetividade em sentido estrito” (MARINONI, Luiz Guilherme. O direito à efetividade da tutela jurisdicional na perspectiva da teoria dos direitos fundamentais.). Mais sobre teoria geral da execução processual: DIDIER Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Editora Jus Podivm. 2013. p. 83.

Conclusão: é preciso partir da premissa de que existe um direito fundamental à tutela executiva.

2.3.3. Princípio da adequação (legal e jurisdicional) do processo

Pode ser visualizado em dois momentos: (i) legal (legislativo): como informador da produção legislativa das regras processuais; (ii) jurisdicional (princípio da adaptabilidade, elasticidade ou adequação formal do processo): permite ao juiz, no caso concreto, adaptar o procedimento às peculiaridades da causa que lhe é submetida.

Origem. Polêmico. Três correntes: 1C - Do princípio da inafastabilidade é possível retirar o princípio da adequação da tutela jurisdicional. 2C - Também é possível retirá-lo do direito fundamental a um processo devido (do princípio do devido processo legal, que, para lembrar, é cláusula geral), pois processo devido é processo adequado. 3C - Doutro lado, há quem entenda que o princípio da adequação decorre do princípio da efetividade, também corolário do devido processo legal.

Critérios objetivos que se vale o legislador para aplicar o princípio da adequação, adequando a tutela jurisdicional pelo procedimento: 1) natureza do direito material: a importância do direito material eleva a da tutela jurisdicional, buscando-se uma tutela mais efetiva. Ex.: os procedimentos das “possessórias”; dos alimentos, da busca e apreensão em alienação fiduciária; liminar em ação civil pública, entre outros; 2) a forma como se apresenta o direito material no processo: por exemplo, mandado de segurança, ação monitória e a tutela antecipada genérica do art. 273, CPC; 3) a situação processual da urgência: os procedimentos especiais de alimentos e mandado de segurança preventivo.

Indisponibilidade do direito é fator levado em consideração para a diferenciação procedimental: é preciso observar a disponibilidade e a indisponibilidade do objeto, o bem jurídico material influi necessariamente nas regras de processo (LACERDA, Galeno).

Tutela da evidência ou tutela do direito evidente: tutela-se energicamente o direito em razão da evidência (aparência) com que se mostra nos autos. A princípio, a natureza do direito material posto em litígio não tem importância, pois privilegia-se a comprovação do direito alegado: direito líquido e certo (cujos fatos se comprovam documentalmente) e prova escrita, em se tratando de ação monitória.

Regras legais que autorizam a adequação judicial do procedimento. Exemplos: a) inversão da regra do ônus da prova (ope iudicis): art. 6º, VIII, CDC; b) conversão do procedimento sumário em ordinário, em razão da complexidade da prova técnica ou do valor da causa (art. 277, §§4º e 5º, CPC); c) julgamento antecipado da lide (art. 330, CPC); d) determinação ou não de audiência preliminar, a depender da disponibilidade do direito em jogo (art. 331, CPC); e) Lei de Ação Popular; f) possibilidade de o relator da ação rescisória fixar o prazo de resposta, dentro de certos parâmetros (art. 491, CPC); g) mutações permitidas ao agravo de instrumento do art. 544, §4º, CPC; h) adequação do processo em jurisdição voluntária (art. 1.109, CPC) etc.

Mas o princípio da adequação do processo pode atuar diretamente, sem a intermediação de regras que o concretizem. Se a adequação do procedimento é um direito fundamental, cabe ao órgão jurisdicional efetivá-lo, quando diante de uma regra procedimental inadequada às peculiaridades do caso concreto (MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos). 1. Exemplo prática: é sabido que o prazo para contestação é de 15 dias. Imagine um caso com dez volumes de documentos. Esse prazo é inadequado. Permite-se que o magistrado dilate o prazo de defesa, permitindo a efetivação do direito fundamental a um processo adequado À apresentação da defesa pelo demandado. 2. Ex.: na ação rescisória trabalhista, exige-se do autor a efetivação de um depósito prévio no montante de 20% sobre o valor da causa. Se isso, no caso concreto, for um obstáculo intransponível ou de difícil superação pelo autor, por ser demasiado, poderá o tribunal adequar o valor, reduzindo-o a garantir a efetivação do direito fundamental de acesso à justiça. Em suma: a flexibilidade do procedimento às exigências da causa é, então, fundamental para a melhor consecução dos fins do processo. Alguns aderem tanto essa temática que defendem uma espécie de cláusula geral de adequação do processo (OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de.). É bom lembrar que eventual mudança pela adaptabilidade o magistrado deve informar as partes[58].

2.4. Devido processo legal, princípio da cooperação e o modelo do processo civil brasileiro

2.4.1. Introdução

Há vários modelos de direito processual. Todos eles devem estar em conformidade com o princípio do devido processo legal. E tudo vai depender do que se entende por devido processo legal, eis se tratar de cláusula geral, o que pode variar a depender do espaço e do tempo em que seja aplicado. A doutrina elenca dois modelos de processo na civilização ocidental influenciada pelo iluminismo: (i) modelo dispositivo e o (ii) modelo inquisitivo. Atualmente, contudo, defende-se um terceiro modelo: o processo cooperativo.

2.4.2. Modelos tradicionais de organização do processo: adversarial e inquisitorial.

O modelo adversarial[59] é compreendido como uma forma de competição ou disputa, em que dois adversários, diante de um órgão jurisdicional relativamente passivo, tem a principal função de decidir. Peculiaridade: a maior parte da atividade processual é desenvolvida pelas partes. Prepondera o princípio dispositivo (as partes levam a matéria ao juiz). Alguns doutrinadores identificam o common law com o processo adversarial.

Já o modelo inquisitorial[60] (não adversarial) organiza-se como uma pesquisa oficial, o órgão jurisdicional é o grande protagonista do processo. Peculiaridade: a maior parte da atividade processual é desenvolvida pelo órgão judicial. Há uma liberdade de o juiz iniciar a lide. Alguns defendem a relação entre processo inquisitorial e o civil law.

Matérias relacionadas aos modelos: a) instauração do processo; b) produção de provas; c) delimitação do objeto litigioso; d) análise de questões de fato e de direito; e) recurso etc. Papel do legislador: nada impede o uso dos dois de forma híbrida. Interessante lembrar: não há sistema totalmente dispositivo ou inquisitivo: os procedimentos são construídos a partir de várias combinações e elementos adversariais e inquisitoriais (JOLOWICZ, J. A. Adversarial na inquisitorial approaches to civil litigation.).

Doutrinadores brasileiros: pretendem dar aos princípios inquisitivo e dispositivo uma dimensão substancial. Isto é: se direito material, disponível (processo dispositivo); se indisponível: processo inquisitivo (MOREIRA, José Carlos Barbosa).

Ordenamento jurídico brasileiro: a regra é o início processual começar por iniciativa das partes. Todavia, admite-se a abertura ex officio de processo de inventário, que cuida de interesses eminentemente disponíveis (art. 989, CPC). Outro ponto: é irrelevante a natureza do direito no que se refere à iniciativa oficial[61] de produção de provas (art. 130, CPC).

2.4.3. Processo cooperativo: um terceiro modelo de organização do processo. Princípios e regras de cooperação. Eficácia do princípio da cooperação

Com os princípios do devido processo legal, da boa-fé processual e do contraditório, juntos, servem de base para o surgimento de outro princípio: o princípio da cooperação, que define o modo como o processo civil deve estruturar-se no direito brasileiro.

Esse modelo segue um redimensionamento do princípio do contraditório. Busca-se uma condução cooperativa do processo (OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Poderes do juiz e visão cooperativa do processo).

Características: 1) paritário na condução do processo e no diálogo processual; 2) assimétrico no momento da decisão, porém não ignorando ou minimizando o papel das partes na “divisão do trabalho”; 3) visa o diálogo e o equilíbrio; 4) há participação na discussão da gestão adequada do processo pelo juiz; 5) não há paridade no momento da decisão, as partes não decidem com o juiz. Em suma: eis o modelo de direito processual civil adequado à cláusula do devido processo legal e ao regime democrático (DIDIER Jr., Fredie). Conclusão: o princípio da cooperação torna devidos os comportamentos necessários à obtenção de um processo legal e cooperativo.

Deveres de cooperação das partes[62]: a) dever de esclarecimento[63]; b) dever de lealdade[64]; c) dever de proteção[65].

Dever de cooperação do órgão jurisdicional: a) dever de lealdade (consequência do princípio da boa-fé processual); b) dever de esclarecimento, quanto às dúvidas que tenham sobre as suas alegações, pedidos ou posições em juízo, para evitar decisões tomadas em percepções equivocadas/apressadas/temerárias, enfim, é preciso antes esclarecer os seus próprios pronunciamentos para as partes, que decorre do dever de motivar, dever de deixar claras as razões da decisão (em face de decisão obscura, cabe embargos de declaração – art. 535, I, CPC); c) dever de consulta: mesmo questões de fato ou de direito conhecidas de ofício (ex officio), as partes dela devem ser intimadas a manifestar-se; d) dever de prevenção[66][67]: ao magistrado cabe o dever de apontar as deficiências das postulações das partes, para que possam ser supridas. É uma variante do dever de proteção. Conclusão: a concretização do princípio da cooperação é também uma concretização do princípio do contraditório. Destina-se a transformar o processo em uma “comunidade de trabalho” (Arbeitsgemeinschaft, comunione del lavoro) “e a responsabilizar as partes e o tribunal pelos seus resultados”, e temos ainda as regras de cooperação, as quais concretizam esse princípio (ex.: a que exige o pronunciamento judicial claro, inteligível).

2.5. O princípio da proteção da confiança

Proteção da confiança e segurança jurídica. É subprincípio da segurança jurídica. Princípio da proteção da confiança é a dimensão subjetiva do conteúdo do princípio da segurança jurídica. Fundamento de ambos é o Estado de Direito. Implicitamente assegurado no § 2º do art. 5º da CR1988. Segurança: faceta geral da confiança; confiança: faceta particular da segurança.

Processo jurisdicional civil: é um meio de produção de normas jurídicas (é um meio de exercício de poder normativo). O órgão jurisdicional produz a norma jurídica individualizada, que regula o caso concreto e que pode servir de modelo para a solução de casos futuros semelhantes. Assim, o processo jurisdicional é um produtor de ato normativo que pode, como qualquer ato normativo, servir de base da confiança a ser protegida. Conclusão: o princípio da proteção da confiança é um dos princípios que estrutura o Direito Processual Civil (NERY JR., Nelson; FERRAZ JR., Tércio Sampaio.; CARRAZZA, roque Antonio.; DIDIER JR., Fredie; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia; CABRAL, Antonio do Passo).

Exemplos com os quais a proteção da confiança é princípio que decorre: a) overruling: dever de o tribunal modular a eficácia da decisão que altera jurisprudência consolidada, resguardando as posições jurídicas de quem havia confiado no entendimento que até então prevalecia; b) sistema de invalidades processuais: sobretudo para dificultar a decretação de invalidades ou limitar temporalmente os efeitos da invalidação, preservando alguns efeitos do ato invalidado; c) fundamento para modulação temporal dos efeitos de uma decisão: aquele decisão que quebre ou relativize uma estabilidade e jurídica. Isso é interessante porque não haveria necessidade de previsão legislativa, sendo decorrência o princípio da confiança de norma constitucional. d) esse princípio pode servir como fundamento para permitir que o órgão jurisdicional, sempre que tiver de rever a estabilidade de um ato normativo, possa estabelecer uma “justiça de transição”[68]: com a formulação de regras de transição para minimizar o impacto da quebra da confiança. Seria um poder jurisdicional implícito, decorrente do princípio da proteção da confiança. Essas regras de transição mudam conforme o caso.

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Sobre o autor
Marco Antonio Valencio Torrano

Marco Antonio Valencio Torrano é advogado e consultor, OAB/SP n.º 336.107, em São José do Rio Preto/SP. Pós-graduando "lato sensu" em Direito Público - EPD (Escola Paulista de Direito). Autor do livro: "Novo manual de prática processual: para pesquisas e peças processuais". Foi estagiário e concursado: Defensoria Pública/SP, PGE/SP e MP/SP; e estagiário voluntário: Justiça Federal (TRF 3ª). Concursando: DPU.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TORRANO, Marco Antonio Valencio. Introdução ao estudo de Direito processual civil. A teoria do processo e o direito processual civil contemporâneo.: Uma homenagem a Fredie Didier Jr. . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4296, 6 abr. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31949. Acesso em: 25 abr. 2024.

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