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O regime unicista e a Emenda Constitucional nº 19

24/06/1998 às 00:00
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I. INTRODUÇÃO

Promulgada no Diário Oficial de 05 de junho, modifica a Emenda Constitucional 19 o regime e dispõe sobre princípios e normas da Administração Pública, servidores e agentes políticos, controle de despesas e finanças públicas e custeio de atividades a cargo do Distrito Federal, e dá outras providências, predispondo-se, portanto, a implementar a anunciada e tão discutida "reforma administrativa".

Questão que tem oportunizado repetidas discussões, refere-se aos reflexos da aludida Emenda Constitucional sobre a Lei 8.112/90, que dispõe sobre o "Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais", especialmente porque, consoante insistentemente divulgado, pretendeu-se com a reforma do texto constitucional, dentre outras modificações, a extinção do regime único instituído a partir de 1988.

As alterações introduzidas no regime jurídico do Servidores Civis pela Emenda Constitucional em comento vai, entretanto, além da supressão da obrigatoriedade de instituição e manutenção de um regime jurídico único, incidindo sobre vários outros dispositivos da Lei 8.112/90.

Cumpre saber, no entanto, com a modificação introduzida no art. 39 da Carta Federal, qual a conseqüência imediata para o servidores estatutários, que constituem ainda o grande contingente de servidores mantidos pelo Poder Público.



II. RAZÕES DA INSTITUIÇÃO DO REGIME UNICISTA

O denominado regime unicista foi instituído pela atual Constituição, promulgada em 05 de outubro de 1988, com o escopo precípuo de racionalizar a administração de pessoal no Serviço Público, mas apenas em relação aos entes de Direito Público integrados à administração direta, autárquica e fundacional, administração essa que, nessa esfera, se mostrava extremamente dificultada pela diversidade de regimes que então se apresentava. Ora eram contratações regidas pela Lei 1.711/52 - Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União -, ora adotava-se o regime da Consolidação das Leis do Trabalho para a admissão de trabalhadores, sendo que, neste último, não se conferiam ao ocupante do emprego determinadas garantias típicas do regime estatutário, dispensando-se até mesmo maior rigor na admissão de pessoal, nem sempre submetida a prévio concurso público.

Verificadas as dificuldades gerenciais e os custos que daí resultavam, assim como visando a obstar procedimentos irregulares, decorrentes do favorecimento de amigos e apadrinhados, buscou-se, então, inserir no texto da Carta de 1988 regras que viessem a corrigir tais deficiências, determinando-se, de modo expresso, que "A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão, no âmbito de sua competência, regime jurídico único e planos de carreira para os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas" (art. 39).

Oportuno ver, que a disposição contida no art. 39, com a sua redação original, não se referia ao regime a ser adotado, mas apenas impunha a necessidade de unificação, evitando-se a grande confusão e os custos que resultavam da existência de regimes variados. Poder-se-ia, assim, optar por um regime de natureza tipicamente estatutária, ou então pelo da CLT, ou até mesmo por um regime misto, que se mostrasse mais adequado à atividade pública.

No âmbito federal, a Lei 8.112/90, optou pela adoção do regime estatutário, determinando, em seu art. 243, que ficariam submetidos ao regime jurídico por ela instituído, na qualidade de servidores públicos, os servidores dos Poderes da União, dos ex-Territórios, das autarquias, inclusive as em regime especial, e das fundações públicas, regidos pela Lei nº 1.711, de 28 de outubro de 1952, ou pela Consolidação das Leis do Trabalho, excetuando apenas aqueles contratados por prazo determinado pela CLT. Ocorreu, assim, que tanto os funcionários públicos ocupantes de cargos regidos pela Lei 1.711/52, quanto os empregados submetidos à Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, passaram ao regime da Lei 8.112/90.



III. REGIME JURÍDICO ÚNICO E REGIME ESTATUTÁRIO

E se havia essa liberdade para a escolha de um ou outro regime, ou até para a adoção de um regime misto, porque então fazer a escolha pelo conhecido regime estatutário, adotando uma lei que, em sua maior parte, consagrava regras da ab-rogada Lei 1.711/52? A resposta não parece difícil. Os entes de Direito Público que integram o Estado, como se acham organizados, como executam as suas atividades, como se desincumbem de suas atribuições, não possuem a feição de organizações empresariais, de modo a poderem adotar um regime tipicamente contratual, como o é o da CLT.

O regime estatutário reúne determinadas características, que o aproximam e o tornam apropriado ao disciplinamento da relação entre os entes e órgãos estatais e seus servidores. Veja-se que, enquanto a CLT se baseia em uma relação de caráter contratual, permitindo a discussão das respectivas condições de trabalho - respeitados os direitos e garantias mínimos estabelecidos em seu texto - o regime estatutário possui natureza "institucional", restando negado, portanto, caráter contratual à relação mantida entre o servidor e o Estado.

Tecendo seus comentários a respeito desse tema específico, IVAN BARBOSA RIGOLIN ("Comentários ao Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Civis"- São Paulo: Saraiva, 1992 - pág. 14), assevera com pertinência que "Todas as disposições da lei são, sem sombra de dúvida, estatuídas aos servidores, ou seja, outorgadas, impostas unilateralmente, estabelecidas como preceitos obrigatórios, ou, em outro termo, decretadas, no sentido do statuere ou do decernere latino". No magistério sempre sapiente do prof. PALHARES MOREIRA REIS ("Manual do Servidor Público" - Brasília-DF: Editora CTA, 1993 - pág. 37), "No sistema estatutário, não cabe ao funcionário, como uma das partes da relação, estabelecer critérios para sua participação no serviço público, eis que o laço jurídico então criado decorre da lei e, complementarmente, dos regulamentos emitidos pelo ente público a que ele vai servir".

Possui o regime estatutário, como visto, determinadas peculiaridades que não são encontradas ou admitidas no regime da CLT - este sim de caráter tipicamente contratual - o que enseja, ainda, sejam verificadas algumas características que lhe são próprias e que não se compatibilizam com um regime de cunho contratual. Observa-se, nesse contexto, que o regime estatutário é próprio dos entes de Direito Público, correspondendo a nomeação do servidor a um ato unilateral que se presta a proporcionar a sua inserção no âmbito do regime jurídico existente; na relação servidor-Estado o acordo de vontades é necessário apenas para a formação do vínculo estando ela consubstanciada, por parte do servidor, pela sua posse no cargo para o qual foi nomeado. Constitui a posse, portanto, mero ato de aceitação do vínculo com o Estado, sem atingir o conteúdo da relação formada, pois não é dado ao empossando discutir as respectivas condições de trabalho e vantagens previamente estatuídas.

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Pode-se afirmar, ante tais características, que o regime institucional proporciona ao servidor um determinado rol de garantias com o fim de propiciar-lhe razoável independência, permitindo-lhe agir sempre tecnicamente, orientado para finalidades públicas e, portanto, impessoais. Mas, a despeito de criar uma situação permanente, que subsiste enquanto o servidor fica em serviço e enquanto em vigor a lei que o criou, não se constitui, em princípio, em favor do servidor um direito adquirido à persistência das condições de prestação de serviço ou de direitos e deveres que existiam à época da formação do vínculo.

A opção feita pelo regime estatutário decorreu, portanto, do fato de reunir o regime institucional condições mais adequadas ao disciplinamento da relação Estado-servidor, tendo em mente especificamente a natureza das atividades que competem aos entes de Direito Público, garantindo uma administração de pessoal mais econômica e voltada ao alcance dos objetivos de interesse público, além de se prestar a dificultar os atos de mero favorecimento tão comuns no Serviço Público.



IV. EXTINÇÃO DO REGIME UNICISTA E A LEI 8.112/90

Com a nova redação imprimida ao art. 39 da Carta Política, determina-se à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a obrigação de instituírem conselhos de política de administração e remuneração de pessoal, não mais se fazendo menção à obrigatoriedade dessa unificação de regimes, ou seja, estar-se-ia permitindo, em tese, o retorno à indesejada sistemática anteriormente adotada, de regimes variados.

Subsistirão, no entanto, com a edição da Emenda Constitucional 19, as relações institucionais disciplinadas pela Lei 8.112/90, já que a aludida Emenda, atenta a essas características da relação Estado-servidor, não a ab-roga e não cria impedimentos à subsistência de um regime estatutário, típico do Serviço Público, no âmbito da administração direta, autarquias e fundações públicas.

Ao alterar a redação do art. 39 da Carta Política, deixando de exigir o regime unicista, pode-se dizer que tornou-se possível, além do regime institucional, também a utilização pelos entes de Direito Público do regime de natureza contratual regulado pela Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, embora não se possa entender que a simples exclusão da referência ao regime único importe em autorização para tanto, pois em Direito Público não basta a ausência de proibição, há necessidade de norma expressa prevendo a situação que se deseja praticar.

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Sobre o autor
Airton Rocha Nobrega

Advogado inscrito na OAB/DF desde 04.1983, Parecerista, Palestrante e sócio sênior da Nóbrega e Reis Advocacia. Exerceu o magistério superior na Universidade Católica de Brasília-UCB, AEUDF e ICAT. Foi Procurador-Geral do CNPq e Consultor Jurídico do MCT. Exerce a advocacia nas esferas empresarial, trabalhista, cível e pública.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NÓBREGA, Airton Rocha Nobrega. O regime unicista e a Emenda Constitucional nº 19. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 25, 24 jun. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/321. Acesso em: 18 abr. 2024.

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