Dignidade: Quem teme a natureza humana?

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25/09/2014 às 07:38
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Ó Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.

[1] “Cuando eliminamos a la biología de la vida social, ¿qué nos queda? Palabras. Ni siquiera el lenguaje – que, desde luego, es profundamente biológico –sino solo palabras que tienen el poder mágico y son capaces de inclinar nuestro pensamiento. La ciencia misma queda reducida a uno de tantos sistemas arbitrarios de pensamiento” (R. Trivers, 2013). Assim choca a idiossincrasia com a realidade.

[2] Tomado e modificado levemente do original «¿Existen las razas?», http://ilevolucionista.blogspot.com.es/.

[3] Sobra dizer que os ecléticos e irênicos discursos sobre a dignidade humana são uma forma deveras eficaz para ganhar prestígio acadêmico, vender livros “de ocasião”, receber aplausos entusiastas dos mais crédulos, e, desde logo, inúmeros convites para proferir palestras: a «síntese admirável», «a satisfação perfeita». Desgraçadamente esses discursos, além de não servirem para  fazer  avançar  discussões originais e significativas, limitam-se a engrossar ad infinitum o tema da dignidade, sem chegar nunca ao «núcleo duro», ainda que parcial, dos fundamentos naturais e neurobiológicos dos valores humanos; um tipo de discurso condescendente adstrito a determinados marcos ideológicos e que só realça a fragilidade e a insuficiência que caracteriza a dignidade enquanto «constructo mental». Não tratam de expressar a realidade, senão que se restrigem a usar um tipo de razoamento tendencioso, uma fascinação perigosa pela dignidade que favorece e apoia determinados pontos de vista que são fáceis de justificar, mas não necessariamente melhores: «conhecem a música da dignidade humana, mas não a letra da natureza humana». Para dizer de modo mais simples: os argumentos que expressam representam os curiosos malabarismos que se pode chegar a fazer com os valores, princípios, normas e/ou métodos interpretativos para inferir as conclusões que valoram como positivas e que trabalham a favor de seus “sombríos sesgos emocionales, cognitivos e ideológicos (incluyendo rasgos propios de mente de colmena y por el tipo de presiones sociales «conservadoras» y «progresistas» descritas por Thomas Kuhn)”, torcendo de forma idiossincrásica os significados que atribuem à informação que tomam do mundo (D. Kahneman, 2011). Voltarei de imediato sobre este ponto.

[4] Deixarei de lado os aspectos lógico-formais da «falácia naturalista» que enunciou o pensamento analítico dentro da filosofia porque já resolvidos de maneira convincente por Richard Hare (1979). Sem embargo, conjecturar acerca do problema da «falácia naturalista» significa, em síntese, passar dos enunciados descritivos («Pedro matou a sua mulher») aos enunciados valorativos («Pedro deve ir à prisão»). Nada mais longe da realidade. E duas são as circunstâncias a considerar: em primeiro lugar, como mostrou  Hare, não existe falácia lógica porque a passagem dos enunciados descritivos aos valorativos se faz dando por suposto de maneira implícita um enunciado intermédio («Quem mata deve ir à prisão»); em segundo lugar, que os fatos da natureza e a história fundamentam e impõe limites aos valores, mas não os determinam. É a mente humana a que constrói os valores e as normas. Depois, talvez seja útil recordar que, simétrica à «falácia naturalista», está a chamada «falácia moralista». Esta falácia («moralista»), descoberta por Bernard Davis nos anos setenta do século passado (em resposta às crescentes demandas políticas e públicas para restringir a investigação básica), realiza o caminho oposto à «naturalista»: enquanto esta consiste em inferir um «dever ser»  de um  «ser», aquela supõe o «ser» a partir de um «dever ser» (quer dizer, inferir um fato de um desejo, valor, imperativo ou enunciado moral ou deôntico). Como é óbvio, ambas são falazes e insustentáveis logicamente. E S. Pinker (2002) já chamou a atenção sobre a frequência com que diversos intelectuais bem intencionados e “politicamente corretos” caem ( e/ou insistem) na «falácia moralista», isto é, na ideia de que devemos dar forma aos fatos, de tal modo que apontem às consequências mais moralmente desejáveis.

 

[5] Uma atitude similar à descrita por Paul Watzlawick (2013): “Un borracho está buscando afanosamente bajo un farol. Se acerca un policía y le pregunta qué ha perdido. El hombre responde: «La llave». Los dos hombres buscan la llave. Al fin, el policía pregunta al hombre se está seguro de haber perdido la llave precisamente ahí. El hombre responde: «No, aquí no, allí detrás, pero allí está demasiado oscuro». ¿Le parece absurda esta historia? Si cree que sí, busque también usted fuera de lugar”.

[6] O mesmo é dizer que hoje, mais que nunca, se impõe a convicção de que nenhuma filosofia ou teoria social normativa, por pouco séria que seja, pode permanecer distanciada ou isolada fingindo desconhecer os resultados dos descobrimentos procedentes dos novos campos de investigação científica que trabalham para estender uma «ponte» entre a natureza e a sociedade, a biologia e a cultura, em forma de uma explicação científica da mente, do cérebro e da conduta humana. Nenhum filósofo ou teórico do direito consciente das implicações práticas que sua atividade provoca deveria desconsiderar a questão última do pensamento moderno: a dimensão natural do ser humano, do ser humano considerado simultaneamente como um ser (neuro) biológico, cultural, psicológico e social; uma espécie animal que há alguns milhões de anos atrás não era senão parte do menu de numerosos depredadores e que conseguiu sobreviver, evolucionar, criar ferramentas e vencer sérias adversidades, e cujos descendentes conseguiram logros tais como pintar O Juízo Final, compor e interpretar a Tocata e Fuga em Ré Menor  e escrever Crime e castigo.

[7] Recordemos que o cérebro humano, sede de nossas ideias e emoções, da linguagem, da moral e do direito, é o único meio através do qual os valores chegan ao mundo. É o cérebro que nos permite dispor de um sentido moral, que nos proporciona as habilidades necessárias para viver em sociedade, para interpretar e dar sentido ao mundo, para tomar decisões e solucionar determinados conflitos sociais, e o que serve de base para as discussões e reflexões filosóficas mais sofisticadas sobre direitos, deveres, justiça e dignidade. Toda nossa conduta, nossa cultura e nossa vida social, tudo o que pensamos, sentimos, fazemos ou deixamos de facer sucede e depende de nosso cérebro; se originam em nossas faculdades de percepção, pensamento e emoção, “y se acumulan y difunden a través de la dinámica epidemiológica en la que una persona contagia a otras.” (S. Pinker, 2013). Se em algum órgão se manifesta a natureza humana em todo seu esplendor é sem dúvida em nosso volumoso cérebro. O que implica que para compreender “lo que somos y cómo actuamos, debemos comprender el cerebro y su funcionamiento.” (P. S. Churchland, 2006). Dito de modo mais direto: não somente a causa da mente e de toda conduta é o cérebro, senão que «somos nosso cérebro» (D. Swaab, 2014).

[8] Como assinalou em certa ocasião Patricia Churchland: “Una de las cuestiones más importantes de nuestra cultura tiene que ver con en quién confiamos en el ámbito del conocimiento. Para contestar a esta pregunta, debemos saber algo para albergar una creencia razonable sobre quién puede ser de fiar para obtener los datos técnicos que necesitamos”. 

[9] “Uma descrição naturalista de como ocorreu nossa evolução e de nossas mentes parece ameaçar o conceito tradicional de liberdade, e o medo ante esta perspectiva acabou por distorcer a investigação científica e filosófica nesta matéria. Alguns dos que deram à voz de alarma ante os perigos dos novos descobrimentos sobre nós mesmos apresentaram uma imagem muito falseada dos mesmos. Uma severa reflexão sobre as implicações de nosso novo conhecimento sobre nossas origens servirá de fundamento para uma doutrina mais sólida e prudente sobre a liberdade que os mitos aos que está chamada a substituir” (D. Dennett, 2003).

[10] Há, por certo, quem crê que existe algo assim como um mundo platônico de direitos que só temos que aprender a ver para reconhecer-lhes. Outros creem que os direitos estão outorgados por um ente superior e que, em escritos a «ele» atribuídos, deixou dito quais são. Outros, ainda, creem que a só existência desse «ser» implica também a existência de direitos, que se pode ir desglosando com boa Teologia. Também estão os que creem que as cartas de direitos são provisionais e que refletem as preferências dos mais poderosos. Finalmente está quem crê que os direitos poderão deduzir-se usando a razão, estando escondidos nela e desde donde, razoando adequadamente, poderemos sacar-lhes, esta vez com boa Metafísica. Não é muito distinta esta última da postura platônica inicial, nem é distinta a maneira em que cada qual crê haver vislumbrado o deduzido pela razão. Mas o fato de que nenhuma destas posturas tenha conseguido avançar em sua agenda, senão mais bem que para seus respectivos «progressos» haja corroborado as próprias intuições e prejuízos, as fazem igualmente débeis e inúteis. Daí a proposta da simples consideração de que não existem mais direitos que os que concedemos uns a outros e/ou aos demais, um conjunto de estratégias destinadas à oferecer soluções aos desafios adaptativos que surgem em determinadas situações da vida comunitária, delimitando, modelando, controlando e separando por uma via não conflituosa os campos em que os interesses individuais podem (ou devem) ser válida, legítima e socialmente exercidos - quer dizer, o direito como um artefato cultural desenhado e empregado para abordar, regular e articular, por meio de atos que são qualificados como valiosos, os vínculos sociais relacionais elementares através dos quais os humanos constroem sistemas aprovados de interação e estrutura social (Fernandez, 2007).

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[11] Como esclarece S. Pinker (2002), todo mundo tem uma teoria sobre a natureza humana. Todos nos afanamos em prever o comportamento dos demais, o que significa que todos necessitamos umas teorias sobre (e para entender) o que é o que move as pessoas a adotar determinadas condutas. Na própria maneira de pensar sobre a gente subjaz uma teoria tácita da natureza humana – a saber, que são os  pensamentos e os sentimentos  os causantes da conduta -. Damos corpo a esta teoria analisando nossa mente e supondo que nossos semelhantes são como nós, assim como observando o comportamento das pessoas e formulando generalizações. Ademais, também absorvemos outras idéias de nosso ambiente intelectual: da experiência dos expertos e da sabedoria convencional do momento. Nossa teoria sobre a natureza humana é a fonte de grande parte do que ocorre em nossa vida. A ela nos remetimos quando queremos convencer ou ameaçar, informar ou enganar. É esta teoria que nos aconselha sobre como manter vivo nosso matrimônio, educar aos filhos e controlar nossa própria conduta. Seus supostos sobre a aprendizagem condicionam nossa política educativa; seus supostos sobre a motivação dirigem as políticas sobre economia, justiça e delinquência. E dado que delimita aquilo que as pessoas podem alcançar facilmente, aquilo que podem conseguir somente com sacrifício ou sofrimento, e aquilo que não podem obter de modo algum, afeta os nossos valores: aquilo pelo que pensamos que podemos lutar razoavelmente como indivíduos e como sociedade. As teorias opostas da natureza humana se entrelaçam em diferentes maneiras de viver e em diferentes sistemas políticos, e tem sido causa de grandes conflitos ao longo da história. Por outro lado, o conhecimento da natureza humana também tem consequências profundas sobre nossos sistemas de justiça, os vínculos sociais relacionais e a dinâmica de poderes, na medida em que esta não somente gera e limita as condições de possibilidade de nossas sociedades senão que, e muito particularmente, guia e põe limites ao conjunto institucional e normativo que regula as relações jurídicas e os sistemas jurídicos concretos. Em resumo, é a natureza humana a que impõe constrições significativas para a percepção, transmissão e armazenamento discriminatório de representações culturais, limitando as variações sociais, morais e jurídicas possíveis.

 

[12] Para determinados acadêmicos desnorteados e alguns indivíduos do grêmio dos juristas não somente a ciência é um monólito, um mistério (antes que um método), senão que fazem caso omisso, por princípio, do fato de que há umas quantas coisas que temos que entender bem acerca da evidência empírica se queremos preservar a superioridade moral de nossos argumentos. Na verdade, tenho a impressão de que alguns juristas não são capazes de reconhecer uma história verdadeiramente científica nem que esta baile desnuda ante eles. Mas, ainda que a resistência para dar por sentado que as respostas a certas perguntas de uma disciplina possam vir de outros campos de investigação seja uma constante, podemos pelo menos aduzir novas razões para sustentar ou refutar explicações que até agora permanecem no limbo da filosofia e da ciência do direito. Citando a Steven Pinker (2013): “… cuando leo a Descartes, Spinoza, Hobbes, Locke, Hume, Rousseau, Leibniz, Kant, Smith, me asalta a menudo la tentación de viajar hacia atrás en el tiempo para ofrecerles alguna pieza de ciencia fresca del siglo XXI que pudiera llenar algún hiato en sus argumentos o servirles para dar un rodeo y salvar algún obstáculo atravesado en su camino. ¿Qué no habrían dado estos Faustos por disponer de ese conocimiento? ¿Qué no podrían haber logrado, muñidos y pertrechados con el mismo? […] La nuestra es una época extraordinaria para la comprensión de la condición humana. Problemas intelectuales que proceden de la antigüedad resultan ahora iluminados por los fogonazos procedentes de las ciencias de la mente, del cerebro, de los genes y de la evolución”.

 

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Atahualpa Fernandez

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