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O dever fundamental de pagar impostos como meio de efetivação dos direitos sociais

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25/02/2015 às 13:58
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3 O CUSTO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: OS IMPOSTOS

Abordados os tipos de Estado Fiscal: Liberal, Social e Democrático, bem como a preferência constitucional – implícita – por este em detrimento dos demais, e percorridas as dimensões dos direitos fundamentais e a eficácia destes, revela-se imprescindível abordar quais são os direitos fundamentais, senão todos, que exigem recursos financeiros para que sejam socialmente eficazes. Delimitados tais direitos, emerge a necessidade de se perquirir a sua fonte financiadora a fim de fazer face aos seus custos. Sobressaem, neste contexto, especialmente, os impostos.

3.1 O CUSTO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Para grande parcela da doutrina, prevalece a clássica distinção entre os direitos fundamentais de primeira dimensão – de defesa – e os de segunda e os de terceira dimensão – prestacionais – como critério delimitador do custo dos direitos fundamentais. Aqueles, ao contrário destes, “podem, em princípio, ser considerados destituídos desta dimensão econômica, na medida em que o objeto de sua proteção como direitos subjetivos (...) pode ser assegurado juridicamente, independentemente das circunstâncias econômicas”[73].

Obviamente, a efetividade social dos direitos negativos é por demais simples, exige apenas que o Estado não faça, não reprima, não censure. Nada fazer, no comum das vezes, não reclama custos, não reclama aparato. Já a efetividade dos direitos positivos, ao seu turno, demanda a existência de um aparato estatal de prestação, incluindo estrutura física, logística e pessoal, a gerar gastos que devem ser cobertos.[74] (sem grifo no original).

“Positivo e negativo aqui são expressões empregadas para qualificar a obrigação (ou o dever) correlata ao direito em questão, sobre saber se se trata de uma prestação facere ou non facere, in casu, a cargo do Estado, que via de regra ocupa o pólo passivo da relação jurídica que tem como objeto um direito fundamental”.[75]

A tese esposada por Holmes e por Sunstein[76], por sua vez, ao se debruçar “sobre a relação existente entre o custo de implementação de um direito e a sua significação social”[77], considera irrelevante a dicotomia entre direitos de defesa e direitos a prestações para fins de averiguação do custo dos direitos fundamentais. Parte do pressuposto de que “todos os direitos são também positivos”[78], ou seja, requerem condutas comissivas por parte do Estado. Para esta doutrina, não há como se afirmar que apenas os direitos a prestações materiais requerem dispêndio financeiro pelo Estado. Explica-se:

também os ditos direitos de liberdade – primeira geração – implicam, a partir de sua necessária e intrínseca conexão com os ditos direitos prestacionais, demandar uma concretização positiva das condições necessárias e suficientes para a sua ampla usufruição. (...) para que as liberdades se exercitem não é suficiente o não-impedimento de sua prática, mas se faz presente a imperiosidade de sua promoção através da construção das condições infra-estruturais. [79]

No âmbito nacional, a tese acima referida é difundida pela obra de Flávio Galdino, que sugere cinco modelos teóricos a fim de demonstrar a relação direitos fundamentais positivos/negativos versus o custo desses direitos. Estas fases evolutivas são a seguir enunciadas: da indiferença; do reconhecimento; da utopia; da verificação da limitação dos recursos; e da superação dos modelos anteriores.[80]

Enquanto o modelo teórico da indiferença volta-se às liberdades negativas, de orientação liberal e de cunho individualista, o segundo modelo, por sua vez, reconhece a existência de direitos que demandam prestação positiva por parte do Estado. Reconhecer os direitos fundamentais sociais e o Estado do bem-estar social não significa, contrariamente ao que se costuma afirmar, “reconhecer que a “positividade” igualmente só surge neste mesmo momento histórico”[81]. Além de ser de reconhecimento, este é o momento em que se estabelecem as diferenças entre prestações negativas e positivas, conforme haja ou não a necessidade de uma atuação estatal positiva.

Do reconhecimento à utopia. Neste modelo teórico – utópico –, as prestações públicas não são confrontadas com o orçamento fiscal. Acredita-se não haver limites às prestações ao qual o Estado está socialmente vinculado. Não há espaço para a distinção entre prestações estatais positivas e negativas, pois os recursos orçamentários são tidos como inesgotáveis. “Os custos financeiros são vistos aqui como absolutamente externos ao conceito do direito, de tal sorte que o reconhecimento dos direitos subjetivos fundamentais precede e independe de qualquer análise relacionada às possibilidades reais de sua concretização”.[82]

Na fase utópica, a questão que se coloca diante do operador jurídico é se uma norma prevê ou não um determinado direito e, em caso afirmativo, em qual extensão. “A solução alvitrada pelo aludido operador não ultrapassa o plano normativo, o que conduz, muitas vezes, à elaboração de “soluções” injustas ou incondizentes com a realidade concreta”.[83]

O modelo teórico da utopia não ficou imune às críticas. Seus opositores colocaram em dúvida a sua eficácia, “em virtude de sua própria natureza de direitos que exigem do Estado determinadas prestações materiais nem sempre resgatáveis por exigüidade, carência ou limitação essencial de meios e recursos”[84].

Os direitos de segunda dimensão, apesar de ter passado por este período de duvidosa juridicidade, revelaram-se dotados de eficácia igual à dos de primeira dimensão graças ao preceito trazido pela Constituição Federal de 1988, art. 5°, § 1° – “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.

“Com efeito, até então em quase todos os sistemas jurídicos, prevalecia a noção de que apenas os direitos da liberdade eram de aplicabilidade imediata, ao passo que os direitos sociais tinham aplicabilidade mediata, por via do legislador”.[85]

Consolidada a eficácia de todos os direitos fundamentais, era inviável, senão impossível, atender a todas as demandas sociais. Ganha novamente relevância a distinção entre direitos fundamentais negativos e positivos. Faz-se necessário equilibrar as despesas – prestações públicas – e as receitas – impostos.

O operador jurídico, ainda sem conseguir incluir de todo a realidade em seu espectro de considerações, passa a ter em conta ao menos as impossibilidades materiais das prestações públicas, ainda que os direitos a tais prestações estejam expressamente previstos no texto constitucional e, nesta qualidade, sejam objeto de reconhecimento em sede jurisdicional.[86]           

No modelo teórico da verificação da limitação dos recursos “os custos dos direitos assumem feição meramente limitativa (negativa)”.[87] Para esta teoria, os direitos de defesa, tipicamente negativos, não requerem dispêndio financeiro por parte do Estado, bem como estão alheios às limitações da Teoria da Reserva do Possível. Neste contexto, a preocupação estatal deve voltar-se tão somente aos direitos sociais, eis que oneram os cofres públicos.

Sintetizando, podemos afirmar que, em se tratando de direitos de defesa, a lei não se revela absolutamente indispensável à fruição do direito. (...) inexiste qualquer razão para não fazer prevalecer o postulado contido no art. 5°, § 1°, da Constituição, já que não se aplicam a estas hipóteses (dos direitos de defesa) os argumentos usualmente esgrimidos contra a aplicabilidade imediata dos direitos sociais, especialmente os da ausência de recursos (limite da reserva do possível) (...).[88]

Esta distinção entre prestação positiva/negativa a fim de se averiguar o custo dos direitos fundamentais parece tornar-se inútil quando se depara com o caráter dúplice de alguns direitos fundamentais de primeira dimensão, tidos por liberdades negativas. Tais liberdades, muitas vezes, para serem fruídas, requerem uma prestação do Estado a fim de que as proteja da intervenção alheia, o que, invariavelmente, também gera despesa.

Um dos exemplos citados pela doutrina é o direito de propriedade. Apesar de ser um direito fundamental que, à primeira vista, não requeira uma prestação estatal positiva, revela-se ele, ao fim, também como um direito prestacional. Explica-se. O direito de propriedade, além de exigir a não-intervenção do Estado, requer que o Estado lhe assegure, “no mínimo através da edição de um sistema de regras protetivas positivadas”[89], que não haverá ingerência por parte de outrem, seja ele o Estado ou o particular.

Alcança-se esta percepção a partir da diferenciação, dentro do gênero “direitos negativos”, entre direitos de defesa e direitos de proteção. Aqueles “seriam puramente negativos, demandando tão-somente o absenteísmo estatal”[90], enquanto que estes “permitiriam ao respectivo titular exigir determinada prestação, notadamente no sentido de exigir do Estado proteção em face de ingerências de terceiros”[91].

Entretanto, o reconhecimento da escassez dos recursos, apesar de ter dado um passo à frente dos demais modelos teóricos, peca por visualizar a existência de direitos fundamentais totalmente independentes de qualquer prestação do Estado – direitos de defesa –, bem como pelo fato de reconhecer que alguns direitos – de proteção – requerem atuação estatal específica, porém apenas no campo normativo. Após detalhada análise, a conclusão não inova: o modelo teórico da verificação da limitação dos recursos é aplicável apenas aos direitos a prestações materiais sociais, únicos que requerem despesa pelo Estado.

O quinto modelo teórico sugerido por Galdino identifica-se com a tese esposada por Holmes e Sunstein. Prega a superação dos modelos anteriores ao reconhecer que todas as prestações públicas são positivas ou ativas e demandam despesa por parte do Estado.

Bolzan de Morais também partilha desta teoria: “para que as liberdades se exercitem não é suficiente o não-impedimento de sua prática, mas se faz presente a imperiosidade de sua promoção através da construção das condições infra-estruturais”.[92] Ricardo Lobo Torres define que, além do status negativus, os direitos de liberdade “também possuem em certa medida o status positivus”[93].

(...) Os direitos fundamentais, em suma, são garantidos pelos serviços públicos e por isso mesmo lhes constituem o fundamento. Se o Estado por qualquer, por qualquer motivo, deixar de entregar tais prestações positivas, permitindo que pereçam direitos fundamentais ou a propriedade do cidadão, torna-se civilmente responsável pelos prejuízos causados.[94]           

Ou seja, “omitir-se, para o Estado, também custa dinheiro”[95]. “Demonstrado que o direito possui um custo, a opção pela sua efetivação independe de sua caracterização como individual ou social”.[96]

Embora desborde o desiderato ao qual se propôs o presente estudo, faz-se necessário abordar, ainda que sumariamente, que o reconhecimento de que todos os direitos têm um custo, além de rechaçar as divisões estanques entre direitos negativos e positivos, faz com que, além dos direitos sociais, também os direitos individuais, entrem na esfera de escolha do administrador público. Pode acontecer, muitas vezes, que no momento da alocação de recursos, seja preterido um direito individual em favor de um direito social.

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A máxima de que todos os direitos implicam um custo, além de permitir melhor escolha na alocação de recursos, geralmente insuficientes, também enaltece a contribuição dada pela sociedade na forma de tributos, especialmente por meio de impostos. Não apenas os direitos sociais são custeados pela sociedade, mas também os direitos civis e políticos, o que reafirma a dimensão socializante dos impostos.

Poder-se-ia perguntar se há e qual é a contribuição trazida pelo reconhecimento de que todos os direitos têm um custo. A resposta poder ser resumida em uma única palavra: responsabilidade, pois “a falsa ideia de que alguns direitos nada custam, ou são gratuitos, gera irresponsabilidade”. Na seara tributária, a gratuidade com que são vistos determinados direitos faz com que a sociedade se esquive de suas obrigações tributárias, pois mantém a crença – falsa – de que apenas contribui para a concretização dos direitos sociais.

A partir da afirmação de que todos os direitos geram despesas, a sociedade sente-se, assim, maior compromissada com o seu mister constitucional: o pagamento de impostos, eis que visualiza a alocação de sua contribuição tanto para a implementação das políticas públicas quanto para a garantia de não intervenção alheia na sua esfera de liberdade.

A consciência de que os direitos custam implica ipso facto a conscientização de que as pessoas somente possuem direitos na medida em que um Estado responsavelmente recolha recursos junto aos cidadãos responsáveis para custeá-los, mostrando ser incorreta a tese atomista de que os direitos inculcam a irresponsabilidade para com os deveres sociais.[97]

Importante observação a ser tecida refere-se à necessidade de haver a superação da ideia dos custos como óbices à efetivação dos direitos fundamentais. “Aconselha-se a mudança de perspectiva, passando-se a trabalhar com os recursos econômicos como pressupostos, que tornam possível a realização dos direitos”.[98] Galdino ressalta a natureza biface do custo dos direitos fundamentais. Pode ser visto como óbice ou como pressuposto de concretização de tais direitos. [99] A segunda opção revela-se mais ajustada aos propósitos deste trabalho.

Casalta Nabais, por sua vez, diferencia três tipos de custos em sentido amplo que suportam os atuais Estados: custos relacionados à existência e sobrevivência do Estado, materializados no dever de defesa da pátria; custos do funcionamento democrático do Estado como, por exemplo, o dever de votar seja em representantes, seja em questões submetidas a referendo; e, por fim, custos em sentido estrito ou custos financeiros públicos concretizados no dever de pagar impostos.[100] Sobre este custo, especialmente, se debruçam as notas a seguir.

3.2 OS IMPOSTOS

Desse modo, se não há direito fundamental desprovido de eficácia e se todos os direitos fundamentais “possuem uma dimensão positiva”[101], é inegável que todos os direitos fundamentais têm um custo. “Ao se extraírem pretensões positivas dos direitos fundamentais, sua realização passa a demandar emprego de meios financeiros”[102], ou seja, não é por meio do vácuo orçamentário que os direitos, em especial os fundamentais, são implementados.

É verdade que sem a economia privada e, consequentemente, os direitos dos particulares não podem existir nem mesmo os tributos, mas também é verdade o contrário: os tributos são a condição da existência da propriedade, ou melhor, “sem tributos a propriedade não existe”. Se estas premissas são aceitas, então todos aqueles que têm direitos, e todos são titulares de direitos – são obrigados à solidariedade e à solidariedade fiscal.[103]

O financiamento dos direitos fundamentais deve ser suportado por todos em virtude de que as receitas originárias – “aquelas que o Estado obtém através da exploração de seu próprio patrimônio ou da prestação de serviços”[104] – auferidas pelo Estado são incapazes de financiá-los.

“Na realidade estatal contemporânea, as receitas públicas são, por excelência, as receitas tributárias”[105], ou seja, as receitas derivadas, “como o próprio nome indica, derivam do poder de império do Estado, e são, em sua essência, decorrentes da cobrança de tributos”[106]. Logo, a sociedade, por meio da tributação, é chamada a financiar os direitos fundamentais, o que se dá, por excelência, por meio dos impostos, que lhe são cobrados pelo Estado e redistribuídos à população conforme as suas necessidades básicas.

“Então, há que esclarecer o que são impostos e como esta figura se distingue das que conceitualmente lhe são próximas e lhe andam associadas. Isto é, há que detectar o conceito de imposto relevante para a elucidação da configuração constitucional de um tal dever”.[107]

Em comum com as demais espécies tributárias, o imposto tem a definição do art. 3° do Código Tributário Nacional, que estabelece que não é sanção pela prática de ato ilícito. “Se há um ponto em que a doutrina está unanimemente de acordo, é o de afastar do conceito de imposto quaisquer manifestações do ius puniendi, ou seja, a finalidade sancionatória principal (...)”.[108]

Diferentemente das demais espécies tributárias, o imposto não é comutativo. É distributivo, ou seja, seu pagamento não está condicionado a uma retribuição estatal específica. Não há troca, nem permuta de prestações. Para que sejam feitas tais diferenciações, faz-se necessário analisar o aspecto material da sua hipótese de incidência.[109]

A definição de imposto deve ser buscada no art. 16 do Código Tributário Nacional: “Imposto é o tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente (sem grifo no original) de qualquer atividade estatal específica, relativa ao contribuinte”. A Constituição Federal, por sua vez, não define o que seja imposto, apenas o baliza conforme a capacidade contributiva do contribuinte no § 1° de seu art. 145.

 “Em se tratando de imposto, a situação prevista em lei como necessária e suficiente ao nascimento da obrigação tributária não se vincula a nenhuma atividade específica do Estado relativa ao contribuinte”.[110] Reitera-se que uma de suas características principais é ser uma espécie tributária não causal, isto é, não corresponde a uma atividade estatal específica.[111]

Com efeito, debalde procuraremos na hipótese de incidência dos impostos uma participação do Estado dirigida ao contribuinte. [...] A formulação lingüística o denuncia e a base de cálculo o comprova. É da índole do imposto, no nosso direito positivo, a inexistência de participação do Estado, desenvolvendo atuosidade atinente ao administrado.[112]

As taxas, por sua vez, são regidas pelo princípio da proporcionalidade, “no sentido de que seu montante há-de determinar-se essencialmente com base no valor da vantagem ou benefício proporcionado (princípio da equivalência) ou dos custos ocasionados (princípio da cobertura dos custos)”[113].

Ocorre que, seu custo, muitas vezes, ultrapassa o valor individual do serviço que é prestado. Entretanto, isto não lhe confere a pecha de inconstitucional. As taxas podem expressar, conjunta ou isoladamente, tanto o custo do serviço individualmente utilizado de maneira efetiva ou potencial, como o custo da manutenção do aparelhamento estatal.

Além de o imposto não ser contraprestação a uma atividade do Estado, também não pode ter sua receita vinculada a órgão, fundo ou despesa, conforme preceitua a regra geral da CF, art. 167, inciso IV. A exceção refere-se a percentuais fixos destinados constitucionalmente à saúde, à educação e à erradicação da pobreza.

Delineados os contornos do imposto e suas diferenças frente às taxas, destacam-se as finalidades de que pode se revestir o imposto: fiscal ou extrafiscal. Neste ensaio, relevante é a finalidade fiscal do imposto, “uma vez que ele não constitui um fim em si mesmo, antes é um meio, um instrumento de realização das tarefas (finais) do estado”.[114] “[...] através dos impostos, poderem ser prosseguidos, directa e autonomamente, as tarefas constitucionalmente imputadas ao estado, sejam de ordenação econômica, sejam de conformação social”.[115]

José Casalta Nabais ressalta três elementos em que o conceito de imposto se decompõe analiticamente: 1) o imposto é exigido de quem detém capacidade contributiva; 2) o imposto é estabelecido e exigido a favor de entidades que desempenham função pública; 3) a finalidade do imposto não se limita à finalidade fiscal. Sobre o terceiro elemento, as palavras a seguir se debruçam.

Em relação à finalidade constitucional do imposto, a doutrina refere que ele possui um papel instrumental, justamente para nele integrar os fins extrafiscais.[116] A partir das transformações do Estado Fiscal, houve, paralelamente, a transformação do conceito de imposto. Antes, era tido como meio de obtenção de receitas a fim de custear exclusivamente as tarefas do Estado: “a defesa, a justiça e os serviços públicos insusceptíveis de propiciar lucro”[117].

Para satisfazer estas exigências, o imposto devia ter as seguintes características: ser mínimo, geral, proporcional e exclusivamente fiscal, de modo a causar o menor sacrifício aos cidadãos e a manter a sua posição relativa na economia, ou seja, na sociedade. Só impostos com essa configuração respeitariam a ordem natural (racional e justa) e seriam assim considerados legítimos.[118]

O fim unicamente fiscal do imposto foi rechaçado tanto pelo conceito político-social, como pela a ideia de imposto como meio de revolução social. Aquele, baseado no socialismo de Estado de Wagner e este, na teoria de Marx. A construção teórica “wagneriana” é elaborada com o objetivo de reconstruir o conceito de imposto, de modo a fazer com que o Estado se volte às necessidades da sociedade.

“O imposto, para além (ou mesmo independentemente) da sua função fiscal, devia assumir uma função político-social dirigida à correcção da repartição dos rendimentos e do patrimônio resultante dos mecanismos de mercado operando em livre concorrência”.[119]

No modelo teórico de Wagner, ambos os objetivos – fiscal e extrafiscal – estão no mesmo patamar. Não há mais um plano principal ao qual pertence o fim fiscal e um secundário no qual se situa o fim extrafiscal.

“E significava também, para além disso, que um imposto que prescindisse totalmente da finalidade fiscal, erigindo em objetivo único a finalidade político-social, não perdia, por esse facto, o seu caráter de imposto”[120].

A concepção de Wagner não foi aceita inicialmente. Emerge, gradativamente, o que se denomina de meio-termo entre o conceito liberal clássico e o político-social de imposto: é o conceito liberal, porém com moderações. Passa-se a admitir a finalidade extrafiscal do imposto, desde que esteja situada num plano secundário em relação ao objetivo fiscal.

O grande avanço deu-se a partir da Segunda Guerra Mundial, momento em que se fixaram constitucionalmente os direitos sociais prestacionais. Desde então, o Estado trouxe para si um maior número de tarefas e, conseqüentemente, um aumento do número de impostos. “De outro lado, verifica-se uma alteração qualitativa traduzida no facto de, através dos impostos, poderem ser prosseguidos, directa e autonomamente, as tarefas constitucionalmente imputadas ao estado, sejam de ordenação econômica, sejam de conformação social”.[121]

Somente a partir da década de sessenta, a doutrina e a jurisprudência reconheceram a possibilidade da finalidade extrafiscal como objetivo principal do imposto. “Para que se trate de um imposto basta a esta alta instância que o tributo tenha, ao menos como efeito secundário, a obtenção de receitas”.[122]

Nabais critica o imposto com fins destinados primordialmente a objetivos extrafiscais, pois “já não terá por fundamento a capacidade contributiva dos indivíduos e empresas, proporcionada pelo funcionamento da economia privada, mas sim a sua adequação ou adaptabilidade ao programa económico ou social, em relação ao qual foi instrumentalizado”.[123]

Num Estado Democrático Fiscal, o imposto não pode transmutar-se de exceção à regra. “O imposto não pode ser transformado em instrumento normal de intervenção económico-social: ele será sempre um instrumento por via de regra financeiro, um instrumento que assim se presume orientado por um objectivo principalmente fiscal”.

“O tributo, na forma do imposto, torna-se o instrumento para realizar a justiça que opera por meio de uma redistribuição dos rendimentos”.[124] “Garantir um direito significa, de fato, distribuir recursos”.[125] O imposto revela-se como “instrumento jurídico de abastecimento dos cofres públicos”[126] e, conseqüentemente, como meio de efetivação dos direitos fundamentais – “constatação de que mesmo os direitos fundamentais a prestações são inequivocamente autênticos direitos fundamentais”[127], a fim de permitir que se atenda a parcela da sociedade desfavorecida economicamente, uma vez que “Los grandes desafios de la democracia vienem de los marginados y de los excluídos...”[128].

O que significa que os actuais impostos são um preço: o preço que todos, enquanto integrantes de uma dada comunidade organizada em estado (moderno), pagamos por termos a sociedade que temos. Ou seja, por dispormos de uma sociedade assente na liberdade, de um lado, e num mínimo de solidariedade de outro.[129]

Para melhor compreensão, cabem algumas digressões históricas. No contexto da Constituição Federal de 1967, o eixo era a disciplina da separação das funções estatais. Para tanto, a tributação era vista meio de obtenção de recursos para financiar o Estado. A disciplina constitucional tributária tratava das limitações ao poder de tributar.

Para a Constituição Federal de 1988, o foco “não é mais o “Estado” (aparato), mas a sociedade civil. A CF/88 passa a assumir o papel de definir a tessitura fundamental do convívio social que deve ser assegurada por esse instrumento (aparato público)”.[130]

“[...] a tributação deixa de ser mero instrumento de geração de recursos para o Estado, para se transformar em instrumento que – embora tenha este objetivo mediato – deve estar em sintonia com os demais objetivos constitucionais que, por serem fundamentais, definem o padrão a ser atendido”.[131]

A perspectiva da Carta de 1988 faz com que a tributação passe a ser um poder juridicizado, o qual deve ser exercido em conformidade com os objetivos que a própria sociedade elevou à dignidade constitucional.[132] Abandona-se a teoria liberal das finanças neutras, “pela qual a imposição deve deixar inalteradas as posições econômicas dos contribuintes e pode ser justificada apenas pela remoção das causas de ineficiência do funcionamento do mercado”. Adota-se a funcionalidade das finanças, que abarca a função isonômica e redistributiva, tal qual expresso nos incisos do art. 3° da Constituição Federal.

Em suma, o uso do instrumento tributário no sentido extrafiscal, não é apenas constitucionalmente legítimo, antes se tornou um dever constitucional, pelo que o legislador, no exercício do seu poder impositivo, não só pode como deve prosseguir as finalidades de carácter económico, social e político, utilizando para esse efeito os impostos e as normas fiscais. [133]

Nestes termos, a extrafiscalidade dos impostos, além de admissível, é constitucionalmente exigida num Estado Democrático Fiscal como meio de materialização das políticas públicas e meio de inclusão social. A extrafiscalidade pode se manifestar tanto quando há a imposição da obrigação tributária – impostos –, quando há a isenção ou a imunidade, “sem que o propósito gerado seja a grandeza da arrecadação gerada pela exação tributária”[134].

(...) nem sempre tem sentido “tirar” com a cobrança para depois redistribuir, se os destinatários são aproximadamente as mesmas pessoas de quem se tirou; em outros termos, torna-se conveniente deixar com eles os recursos necessários e algo a mais, absolutamente não tributá-los. Um tipo de imposto negativo, que se traduz em equidade, mas também em eficiência.[135]

“O que tem por importante conseqüência a extrafiscalidade assumir caráter excepcional, apresentando-se assim como excepção à regra da natureza fiscal os impostos e das normas jurídicas que os disciplinam”.[136]

No Estado Democrático Fiscal, vale a classificação das normas de Direito Fiscal em dois grupos: um, as que têm objetivos fiscais, sujeitas à Constituição Fiscal e aos princípios da legalidade fiscal e da capacidade contributiva; dois, as com fins extrafiscais, que são submissas à Constituição econômica geral ou Constituição do intervencionismo econômico-social e pelo respeito imediato dos direitos, liberdades e garantias fundamentais.[137]

“Isso significa – a partir de uma perspectiva do Estado Social – que não podemos ver a tributação apenas como técnica arrecadatória ou de proteção ao patrimônio; devemos vê-la também da perspectiva da viabilização da dimensão social do ser humano”.[138]

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Sobre a autora
Marianna Martini Motta Loss

Mestranda em Direito, Democracia e Sustentabilidade pelo Complexo de Ensino Superior Meridional (IMED); especialista em Direito Processual Civil pela LFG – Anhanguera; especialista em Direito Público pela PUC/RS; graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM/RS); membro do grupo de pesquisa intitulado “Jurisdição e Democracia”, vinculado à IMED; Procuradora Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOSS, Marianna Martini Motta. O dever fundamental de pagar impostos como meio de efetivação dos direitos sociais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4256, 25 fev. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32339. Acesso em: 24 abr. 2024.

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