Introdução
No atual estágio do desenvolvimento social e econômico das sociedades, o tempo, invariavelmente relacionado à capacidade de produzir de riquezas, figura entre os bens mais preciosos, uma vez que, diante das exigências da contemporaneidade, ele tem se tornado cada vez mais escasso.
Destarte, aplicando a lógica econômica que deduz que tudo que é escasso é mais valioso, observamos que a perda de qualquer minúscula fração de tempo nos é um prejuízo irreparável, até porque o tempo não retrocede.
Assim, quando nos defrontamos com situações que nos expropriam de qualquer medida de tempo, sentimo-nos profundamente lesados.
Referida lesão, segundo as perspectivas da teoria da responsabilidade civil pela perda do tempo útil consumidor, não se limita a uma percepção subjetiva do indivíduo prejudicado.
Referida teorização, apoiada no projeto de sociedade tracejado pela Constituição Federal de 1988, bem como nas normas infraconstitucionais nela inspiradas, notadamente o Código de Defesa do Consumidor (CDC), enxerga que o descaso pelo tempo útil do consumidor implica a reponsabilidade civil do fornecedor displicente.
Tal possibilidade de responsabilização está intimamente ligada às [infelizmente] habituais e demoras esperas a que os consumidores são diuturnamente submetidos quando buscam dos fornecedores a solução de vícios em produtos e serviços ou reparação de prejuízos decorrentes de acidentes de consumo.
É o que ocorre, por exemplo, quando do consumidor é exigido despender vários minutos, quando não até horas, num telefonema para simplesmente solicitar o cancelamento de um serviço; ou quando o consumidor necessita telefonar diversas vezes, narrando a mesma história, ao SAC do fornecedor para ver solucionada determinada demanda; ou ainda quando esse consumidor dirige-se a uma agência bancária durante seu intervalo de almoço – único horário por ele disponível dentro do período de funcionamento dos bancos – e perde todo seu tempo de alimentação e descanso à espera de atendimento porque dos dez guichês existentes apenas dois ou três funcionam.
Diante do reconhecimento de que o desperdício do tempo do consumidor é fato jurídico – ilícito e danoso – Tribunais têm condenado ao pagamento indenizações fornecedores que propiciam aos seus consumidores perdas indevidas de tempo útil.
Com vistas nesse fenômeno, de certo modo recente, busca o presente estudo verificar a adequação técnica dessa novel hipótese de responsabilidade civil.
1. Responsabilidade civil: Noções gerais, conceito e elementos.
Responsabilidade civil é dever jurídico sucessivo, decorrente do descumprimento prejudicial de um dever jurídico originário (obrigação), que impõe ao responsável reparar dos danos causados pelo referido descumprimento (CAVALIERI FILHO, 2010).
Como anota Sergio Cavalieri Filho (2010, p. 2), responsabilidade e obrigação são figuras distintas, pois “obrigação é sempre um dever jurídico originário; responsabilidade é um dever jurídico sucessivo, consequente à violação do primeiro”.
Assim, responsabilidade é a consequência jurídica emergente do descumprimento ilícito e prejudicial de uma obrigação (dever jurídico originário).
Exemplificando, aquele que se obriga, por contrato, a prestar um serviço e descumpre tal obrigação, gerando, assim, prejuízo à outra parte, viola dever jurídico originário (obrigação) e faz surgir o dever jurídico sucessivo de reparar o prejuízo causado pelo não cumprimento da obrigação.
Além da responsabilidade decorrente do descumprimento de obrigações contratuais, existe a responsabilidade aquiliana, ou extracontratual, que exsurge da violação de um dever jurídico imposto pela lei, e não pela convenção das partes (contrato).
Em nosso sistema, a responsabilidade extracontratual é observável na disposição do art. 927 do vigente Código Civil, cuja leitura deve ser complementada com as previsões dos artigos 186 e 187 do mesmo Codex.
Destarte, a responsabilidade civil, seja ela contratual ou extracontual, de uma forma geral, compreende quatro elementos: violação de um dever jurídico originário (pelo Código Civil de 2002 chamada de “ato ilítico”), dano, nexo causal e, em determinados caso, culpa (em sentido lato).
A análise da presença ou não de culpa do agente causador do dano é o que destrinça a responsabilidade civil em duas modalidades: a subjetiva (com análise da culpa) e a objetiva.
2. Responsabilidade civil nas relações de consumo
No âmbito das relações de consumo, com exceção aos casos que envolvam responsabilidade pessoal de profissionais liberais (CDC, art. 14, § 4º), a responsabilidade civil é objetiva (CDC, art. 14, caput) e a clássica distinção entre responsabilidade contratual e extracontratual não adquire grande relevância já que, no que toca à responsabilidade do fornecedor de produtos e serviços por acidentes de consumo, a norma consumerista estabeleceu um tratamento unitário (CDC, art. 17), fundado no dever geral de segurança, equiparando as vítimas do acidente de consumo ao consumidor standard (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 16-17).
Assim, tanto o consumidor, possuidor de uma relação contratual, quanto o terceiro vítima de um acidente de consumo, que pela teoria clássica teria de se valer da responsabilidade aquiliana, recebem o mesmo tratamento em relação aos prejuízos decorrentes do fato de produto ou do serviço (CDC, arts. 12 a 14), modalidade distinta da responsabilidade por vício do produto e do serviço (CDC, arts. 18 a 20) – com aplicabilidade restrita à figura do consumidor final.
Nas relações de consumo, tanto as obrigações contratuais, quanto as legais, implicam responsabilidade objetiva do fornecedor, uma vez que a norma protetiva dos interesses do consumidor não faz tal distinção.
Deste modo, além de suas obrigações contratuais, o fornecedor deve observar todos os deveres jurídicos originários legais, notadamente os estabelecidos pelo Código de Defesa do Consumidor sob a rubrica “Direitos Básicos do Consumidor”.
Ao presente trabalho incumbe analisar se o não desperdício do tempo útil do consumidor é um dever jurídico originário cuja violação seja capaz de implementar responsabilidade.
3. Relevância jurídica do tempo
No plano jurídico, o simples decurso do tempo é capaz de criar, modificar e até de extinguir direitos (v.g., os institutos da prescrição e da decadência).
Ademais, como bem destaca Vitor Vilela Gugliski (2012, s.p)
No direito pátrio, encontra-se presente na própria Constituição Federal, como direito fundamental implícito na norma que assegura a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação, tanto no âmbito judicial quanto no administrativo (art. 5º, LXXVIII). Foi com vistas nesse direito fundamental que o CNJ criou a campanha chamada “Meta 2: bater recordes é garantir direitos”, cujo objetivo é o de “assegurar o direito constitucional à ‘razoável duração do processo judicial’, o fortalecimento da democracia, além de eliminar os estoques de processos responsáveis pelas altas taxas de congestionamento.
Logo, não é difícil perceber que o tempo encontra relevância jurídica em nosso ordenamento.
Assim, de mera medida de duração de fenômenos, o tempo passou a ser considerado valor jurídico, tutelado, inclusive, na Constituição Federal (v.g., art. 5º, LXXVIII).
Isso porque, como já vimos, o tempo também encontra relevo nos âmbitos social e econômico. Sob a perspectiva econômica, “tempo é dinheiro”; sob o prisma social, “tempo é vida” (GUGLINSKI, 2012).
Destarte, observada sua perspectiva social, que também encontra implicações jurídicas, o tempo é um dos bens mais preciosos da atualidade, e seu livre gozo e disposição por parte de seu titular se equipara a um direito fundamental, pois é um dos objetivos de nossa República “promover o bem estar de todos” (CF/88, art. 3º, IV).
Outrossim, como bem destaca Luciana Lie Kuguimiya (2013, s.p),
a cláusula geral de proteção dos direitos fundamentais, qual seja, a dignidade da pessoa humana, permite a ampliação das hipóteses de danos indenizáveis, de forma que o dano injusto decorre não somente de atos ilícitos, mas também de condutas lícitas capazes de afetar a dignidade.
Cabe, portanto, ao titular desse direito fundamental dispor do tempo como bem entender, aproveitando-o para atividades econômicas, culturais, educacionais, recreativas, e até para o exercício do mais puro ócio.
Desta forma, o desperdício do tempo por parte de outrem que não seu efetivo titular constitui lesão material e moral.
Isso porque, como bem destacou o Desembargador Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro,
o tempo, pela sua escassez, é um bem precioso para o indivíduo, tendo um valor que extrapola sua dimensão econômica. A menor fração de tempo perdido em nossas vidas constitui um bem irrecuperável. Por isso, afigura-se razoável que a perda desse bem, ainda que não implique prejuízo econômico ou material, dá ensejo a uma indenização. A ampliação do conceito de dano moral, para englobar situações nas quais um contratante se vê obrigado a perder seu tempo livre em razão da conduta abusiva do outro, não deve ser vista como um sinal de uma sociedade que não está disposta a suportar abusos (apud GUGLINSKI, 2012, s.p).
4. Fundamentos da responsabilidade civil pela perda de tempo útil do consumidor
Como visto, a responsabilidade é um dever jurídico sucessivo, decorrente do descumprimento prejudicial de um dever jurídico originário (obrigação), que impõe ao responsável o dever de reparar os danos causados.
Assim, para que seja possível atribuir responsabilidade ao fornecedor de produtos ou serviços em razão do desperdício injustificado do tempo útil do consumidor é preciso, em primeiro lugar, identificar o dever jurídico originário violado.
Pela experiência prática observamos que o maior número das reclamações dos consumidores refere-se ao momento da execução dos contratos de prestação de serviço e em relação ao pós-venda (utilização) de produtos, especialmente quando esses buscam a solução do problema junto aos call centers dos fornecedores.
Esses call centers, destinados ao Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC), são regulados pelo Decreto nº. 6.523, de 31 de julho de 2008, que “com vistas à observância dos direitos básicos do consumidor de obter informação adequada e clara sobre os serviços que contratar e de manter-se protegido contra práticas abusivas ou ilegais impostas no fornecimento desses serviços” (art. 1º), fixa normas gerais sobre tal serviço.
Em seu artigo 8º referido Decreto estabelece que esse atendimento observará os princípios da dignidade, boa-fé, transparência, eficiência, eficácia, celeridade e cordialidade.
Ademais, estabelece uma série de regras e prazos para o registro e solução das demandas do consumidor.
Entre eles dispõe que “o SAC garantirá a transferência imediata ao setor competente para atendimento definitivo da demanda, caso o primeiro atendente não tenha essa atribuição” (art. 10, caput), e que “a transferência dessa ligação será efetivada em até sessenta segundos” (art. 10, § 1º).
Prescreve, ainda, que “ é vedado solicitar a repetição da demanda do consumidor após seu registro pelo primeiro atendente” (art. 12), bem como que em caso cancelamento de serviços, o fornecedor receba e processe o pedido de forma imediata com relação aos seus efeitos, ainda que o seu processamento técnico necessite de prazo (art. 18, caput e § 2º).
Como se vê, as normas de proteção ao consumidor, especialmente a que trata do seu atendimento junto aos SAC, reconhecem o valor jurídico do tempo e propiciam proteção ao seu não desperdício ou perda.
Isso porque, de uma forma geral, o ordenamento jurídico assegura ao consumidor atendimento rápido e eficaz, como medida de respeito à sua dignidade.
Destarte, nas relações de consumo, resta claro que atender o consumidor de maneira célere, eficiente e eficaz, além de uma forma de evitar perda de tempo, é uma obrigação (dever jurídico originário) dos fornecedores de produtos ou serviços.
Assim, havendo descumprimento dessa obrigação, implementa-se para o fornecedor a responsabilidade (dever jurídico sucessivo) de reparar os prejuízos que o esse descumprimento ocasionar.
Com base nessas perspectivas – acertadamente, portanto – é que doutrina e jurisprudência entendem que o desperdício injustificado do tempo útil do consumidor impõe responsabilidade ao fornecedor desidioso.
Como destaca Pablo Stolze Gagliano (2013, s.p), “isso tudo porque o intolerável desperdício do nosso tempo livre, agressão típica da contemporaneidade, silenciosa e invisível, mata, aos poucos, em lenta asfixia, valor dos mais caros para qualquer um de nós”.
Conclusão
Pelo exposto, resta demonstrado que o tempo, dada sua relevância social e econômica, também tem relevo jurídico.
Como valor jurídico, o tempo encontra previsão e proteção nos planos constitucional e infraconstitucional, restando, pois, censurável seu desperdício, notadamente no âmbito das relações de consumo, onde as demandas do consumidor devem observar os princípios da eficiência, eficácia e celeridade.
Assim, verifica-se que o não desperdício do tempo útil do consumidor deve ser considerado um dever jurídico (originário), cuja inobservância e violação faz surgir o dever jurídico sucessivo consubstanciador da responsabilidade.
Com base nisso é que se observa acerto na doutrina e na jurisprudência que reconhecem a aplicabilidade do instituto responsabilidade civil aos casos de comprovado desperdício, perda ou usurpação do tempo útil (ou livre) do consumidor.
Essa aplicabilidade, no entanto, ainda parece ficar restrita aos Tribunais de Justiça do Rio de Janeiro (que já conta com diversos julgados nesse sentido) e de São Paulo (com apenas um aresto sobre o tema localizado até então).
No entanto, cumpre-nos disseminar tal possibilidade a fim de que sua judicialização alcance, além da efetiva sanção a eventuais prejuízos, a necessária prevenção à perda de tempo do consumidor – quiçá uma mudança de comportamento dos fornecedores -, uma vez que a perda de qualquer mínima fração de tempo é um prejuízo irreparável (o tempo não volta atrás), restando apenas a busca por uma compensação pecuniária.
Referências
BRASIL. Decreto nº 6.523, de 31 de julho de 2008. Regulamenta a Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, para fixar normas gerais sobre o Serviço de Atendimento ao Consumidor - SAC. Diário Oficial da União, 1º de agosto de 2008. Brasília, DF.
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial da União, 12 de setembro de 1990. Brasília, DF.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, 11 de janeiro de 2002. Brasília, DF.
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Direito do Consumidor. 3ª Edição. São Paulo: Atlas, 2011.
________. Programa de Responsabilidade Civil. 9ª Edição Revista e Ampliada. São Paulo: Atlas, 2010.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, Volume IV: Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2006.
GUGLINSKI, Vitor Vilela. Danos morais pela perda do tempo útil: uma nova modalidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3237, 12 maio 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/21753>. Acesso em: 9 set. 2014..
KUGUIMIYA, Luciana Lie. Responsabilidade civil pela usurpação indevida do tempo útil. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3805, 1 dez. 2013. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/25939>. Acesso em: 12 set. 2014.
STOLZE, Pablo. Responsabilidade civil pela perda do tempo. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3540, 11 mar. 2013. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/23925>. Acesso em: 9 set. 2014.