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Relativização da culpabilidade no artigo 217-a do Código Penal

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01/05/2015 às 15:33
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4. PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA X AFIRMAÇÃO DA VIOLÊNCIA

A Lei nº 12.015 de 2009 revogou, dentre outros dispositivos, o artigo 224 do Código Penal, o qual tinha por designo a presunção de violência, classificando-adiante dos casos concretos.

O discurso acerca da violência nas relações sexuais que envolvem sobretudo menores de 14 anos já despertava há tempos grandes discussões entre a doutrina e a jurisprudência. Pelo que parece, o legislador do Código Penal de 1940 pretendeu apresentar à presunção de violência o caráter absoluto, na medida que impôs marco etário à proteção de crianças e adolescentes abrangidas pela alínea “a” do já revogado artigo 224 do Código Penal.

O que se argumentava era que a imposição do critério biológico representava a natureza objetiva do dispositivo. Tratava-se de política criminal adotada pelo legislador da época, ante a alegação de proteção do desenvolvimento sexual desses menores.

De acordo com Rogério Greco,

Não conseguiam entender, permissiva venia, que a lei penal havia determinado, de forma objetiva e absoluta, que uma criança ou mesmo um adolescente menor de 14 (quatorze) anos, por mais que tivessem uma vida desregrada sexualmente, não eram suficientemente desenvolvidos para decidir sobre seus atos sexuais. Suas personalidades ainda estavam em formação. Seus conceitos e opiniões não haviam, ainda, se consolidado. 25

Embora trouxesse, desde sempre, de forma equivocada, a concepção de presunção de violência, a legislação antiga era mais facilmente justificada diante de um contexto social menos informado e mais retrógrado. Era mais compreensível uma vez que as restrições aos meios de informação eram tão presentes e, assim,poder-se-ia concluir por insuficiente a capacidade do indivíduo entre 12 e 13 anos incompletos de decidir sobre os atos de sua vida sexual.

Acontece que hodiernamente tal situação não pode ser mais admitida de forma absoluta, haja vista as transformações sociais, culturais e a crescente possibilidade de acesso aos meios de informação e comunicação.

Admitir, exclusivamente, o fator etário para configurar o injusto da conduta do acusado, é ferir largamente princípios já cristalizados no ordenamento jurídico pátrio– quais sejam da dignidade da pessoa humana e da liberdade de dispor sobre o próprio corpo - bem como ignorar condutas socialmente reconhecidas.

Contrários ao entendimento de proteção do desenvolvimento sexual desses menores, ilustres doutrinadores - a exemplo de Guilherme de Souza Nucci e Cezar Roberto Bitencourt -, embasados em decisões cada vez mais recorrentes dos Tribunais, defendem a tese da natureza relativa (iuris tantum) da presunção de violência. Elevando o Direito à condição de instrumento regulador das relações sociais do seu tempo, sustentam que a presunção contida no suprimido artigo deveria estar assentada a luz do caso concreto.

Em julgado da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (o número da ação penal não pode ser identificado), não foi outra a interpretação aos autos dada pela ministra Maria Thereza de Assis Moura, ao reanalisar a acusação de ter o réu praticado estupro contra três menores de 14 anos (a data dos fatos, as meninas possuíam 12 anos). Em brilhante percepção, a relatora afirmou que não houve violação à liberdade sexual das menores, tendo em vista a habitual prostituição que as envolviam. Foram as palavras da ministra:

Não me parece juridicamente defensável continuar preconizando a ideia da presunção absoluta em fatos como os tais se a própria natureza das coisas afasta o injusto da conduta do acusado [...] o direito não é estático, devendo, portanto, se amoldar às mudanças sociais, ponderando-as, inclusive e principalmente, no caso em debate, pois a educação sexual dos jovens certamente não é igual, haja vista as diferenças sociais e culturais encontradas em um país de dimensões continentais.26

Para finalizar, é de suma importância mencionarmos a sábia instrução do professor Guilherme de Souza Nucci:

O fulcro da questão era, simplesmente, demonstrar que tais vítimas (enumeradas nas alíneas a, b e c) não possuíam consentimento válido para ter qualquer tipo de relacionamento sexual (conjunção carnal ou outro ato libidinoso). A partir dessa premissa, estabeleceu o legislador a chamada presunção de violência, ou seja, se tais pessoas, naquelas situações retratadas no art. 224, não tinham como aceitar a relação sexual, pois incapazes para tanto, naturalmente era de se presumir tivessem sido obrigadas ao ato. Logo, a conduta do agente teria sido violenta, ainda que de forma indireta.27

Em face de tamanhas controvérsias foi que o legislador, por meio da reforma de 2009, pretendeu apresentar uma nova perspectiva à proteção dos menores de 14 anos, aos deficientes mentais ou àqueles que não se encontram aptos, por qualquer outra razão, para resistir, classificando-os, assim, como vulneráveis.

A capitulação dos crimes sexuais contra vulnerável reafirma o desejo do legislador em proteger a evolução e o desenvolvimento normais da personalidade do menor, para que em sua fase adulta possa se ver livre de traumas psicológicos.

Após realizar sucinta leitura do artigo 217-A do Código Penal, de pronto, percebe-se a reunião da conjunção carnal e de outro ato libidinoso diverso, quando praticados, isolado ou conjuntamente, com menor de catorze anos, em um único tipo penal, qual seja o estupro de vulnerável. Essa mudança, vale grifar, alarga as possibilidades de participação de sujeitos no tipo penal em comento, na medida em que torna o crime comum.

Diferentemente do que constava no já revogado artigo 224 que previa apenas a figura do estupro mediante a conjunção carnal - o que admitia somente uma relação heterossexual -, sendo a menina menor de 14 anos o sujeito passivo da relação sexual, enquanto o sujeito ativo do crime se consubstanciava na figura masculina (podendo uma mulher ser apenas coautora, nos termos dos artigos 29 e 30 do Código Penal), a conjuntura do artigo 217-A do Código Penal tem caráter ampliativo, de modo que permite a prática da conduta por qualquer pessoa, seja home, seja mulher, independente de sua idade, opção sexual ou qualquer outra circunstância. Logo, extrai-se que o sujeito passivo deve ser pessoa menor de 14 anos, qualquer que seja o gênero.

Analisando, ainda o mencionado dispositivo, fica fácil, também, concluir que a inclusão da prática de outro ato libidinoso implica na absorção da figura do atentado violento ao pudor ao crime de estupro, restando revogado o artigo 214 do Código Penal. Por ultimo, o artigo 217-A aumentou a pena mínima de 6 para 8 anos e a máxima de 10 para 15 anos de reclusão.

O novo quadro normativo retrata não só a tentativa do legislador de superar a presunção relativa da violência, como acaba por aumentar, de forma indireta, os prognósticos dos comportamentos vedados, vez que, como já dito, o que antes era tido como atentado violento ao pudor, hoje está inserido ao tipo estupro; o que antes somente admitia como sujeito ativo o homem, hoje permite a mulher, o mesmo ocorrendo para o sujeito passivo, embora menor de 14 anos.

O que não se pode deixar de questionar, nesse momento é: Essa alteração foi suficiente para superar os questionamentos a respeito da natureza objetiva da norma? Essa vulnerabilidade será, por essência, absoluta? Não parece adequado adotar essa conclusão.

Apesar das significativas mudanças, o legislador desconsiderou as transformações sociais ao sustentar uma realidade que já não mais existe. Deixou,por óbvio, de considerar as influências da mídia no comportamento dos jovens da atualidade , os quais, não raramente, possuem acesso irrestrito a materiais de conteúdo erótico e pornográfico.

As redes sociais, que hoje ocupam grande nicho no mercado de consumo dessas supostas vítimas, oferecem diversas oportunidades de desbravamento do mundo que parece o legislador afirmar ser, por elas, desconhecido.

A geração atual está extremamente contaminada pela sensualidade adulta e cada vez mais cedo as pessoas experimentam os efeitos da puberdade, o que conduz à premissa de que a iniciação sexual desses indivíduos ocorre, cada vez mais cedo.

De outro lado, é responsabilidade da ciência jurídica limitar as liberdades individuais, reprimindo os excessos comportamentais, com o objetivo de garantir uma sociedade mais harmônica e moralmente ética. O mais coerente, nesse diapasão, seria defender a natureza absoluta do imperativo contido no artigo 217-Ado Código Penal quando se tratar de menor de 12 anos, acolhendo, assim, de forma uníssona, a definição de criança contida no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Em se tratando de menor impúbere, o caráter objetivo da norma se justifica pela necessária proteção do desenvolvimento sexual dessas vítimas, tendo em vista que eventual consentimento para a prática sexual estaria, no mínimo, viciado pela conduta do agressor.

Desta maneira, mostra-se adequada e necessária a ponderação dos interesses contrapostos a luz do caso concreto, mediante investigação minuciosa da realidade comportamental da suposta vítima, que por ocasião dos fatos possuía 12 ou 13 anos.

O mesmo se pode dizer aos casos em que as supostas vítimas são enfermas ou doentes mentais. Ou seja, deve ser respeitado o seu consentimento (e mesmo sua vontade) quando possuírem o discernimento suficiente para exercitar o direito ter uma vida sexual saudável.

Não se pode ignorar que ditos vulneráveis também sentem necessidade de manter relacionamentos estáveis.

Do mesmo modo, deve ser analisado, pelo magistrado, no caso concreto, qual seria a capacidade do sujeito de oferecer resistência. É, sem sombra de dúvida, o caso do indivíduo que se embriaga sabendo dos riscos envolvidos e, depois participar de prática sexual, alega ter sido vítima de estupro. Cabe ao magistrado, em todas essas situações, analisar o estado de vulnerabilidade da suposta vítima, concedendo a possibilidade de ser produzida prova em contrário.

Diante do exposto, pode-se concluir que a alteração legislativa de 2009 embora tenha tido o condão de borrar a imagem obsoleta da presunção de violência do Código Penal, falhou ao generalizar a presunção de culpabilidade, afrontando, de forma direta o princípio constitucional da presunção de inocência, inadmitindo que pessoas entre 12 e 14 anos possam livremente expressar seus desejos e vontades mais íntimas.

Presumir a culpabilidade como absoluta significa condenar injustamente – e afrontando princípios constitucionais – o suposto agressor. É apropriado dizer que ao agir dessa forma, o judiciário condena, também, os menores de 12 a 14 anos a deixar de gozar de sua liberdade sobre seu corpo para satisfazer os prazeres da carne.

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4.1 O consentimento do ofendido e a maturidade da vítima

Para iniciar o presente tópico é necessário apontar a nobre lição do professor Luiz Regis Prado: “O consentimento do sujeito passivo pode excluir a tipicidade da ação ou da omissão, quando requisito intrínseco ao tipo legal, ou, eventualmente, quando externo a ele, elidir a ilicitude da conduta” (PRADO, 2008)28.

Analisando o que acaba de ser apontado, pode-se perceber que o consentimento do ofendido pode ser estudado sob dois prismas, quais sejam: 1) da tipicidade e 2) da ilicitude.

No primeiro caso, o consentimento do ofendido atua como causa excludente da tipicidade, por óbvio quando a conduta típica apresenta o assentimento da vítima como elemento específico do tipo.

Deste modo, o fato será, via de regra, considerado atípico, diante da aceitação do titular do bem jurídico tutelado. Para tanto, se mostra necessário que o sujeito passivo da relação tenha anuído de modo consciente e livre, anterior ou concomitantemente à concretização da ação ou omissão.

De outro lado, o consentimento do ofendido pode funcionar como causa excludente da ilicitude. Depreende-se que a ilicitude (ou antijuridicidade) só pode ser analisada depois de realizado o juízo de tipicidade do fato. Se, num primeiro momento, concluir pela atipicidade da conduta, não há, sequer, que suscitar a ilicitude, a despeito da inexistência do delito. Portanto, funciona este consentimento como causa de justificação.

É necessário, para tanto, que o bem jurídico tutelado seja disponível possibilitando ao seu titular a faculdade de anuir. O mencionado consentimento deve, por óbvio ser anterior à atuação do agente e deve, ainda, estar livre de vícios.

O mais razoável parece ser admitir que o menor, de 12 ou 13 anos, possa consentir com o ato sexual, desde que não haja coação em sua escolha.

4.2 O erro de tipo

O tipo constitui a união dos elementos que compõem o crime. É o tipo que representa o ponto de partida de toda construção jurídico-penal objetiva ou subjetiva. Decorre do princípio da fragmentariedade do Direito Penal, tendo por base uma construção tipológica individualizadora de condutas que considera gravemente lesiva de determinados bens jurídicos que merecem ser tutelados.

Trata-se, portanto, de um modelo abstrato, fruto da imaginação do legislador ao descrever legalmente as ações que aprecia, em tese, como delitivas.

O tipo tem a função de descrever de forma objetiva a execução de uma ação proibida. Assim, determinada conduta reveste-se de tipicidade, sempre que houver uma adequação típica (subsunção do fato a norma). É o que doutrinariamente se denomina de juízo de tipicidade.

A finalidade do tipo, é a de reconhecer o bem jurídico tutelado pelo Direito Penal. É formado por três elementos estruturantes, quais sejam: 1) Elementos objetivos do tipo: Também chamados de descritivos, são aqueles cuja compreensão depende da simples atividade cognitiva. Estando ligados à materialidade da transgressão penal, são normalmente compostos por um verbo nuclear do tipo. No caso específico do estupro de vulnerável, representados pelos verbos ter ou praticar; 2) Elementos normativos do tipo: Aqueles cuja compreensão necessita da realização de uma atividade valorativa; 3) Elementos subjetivos do tipo: Refere-se ao estado anímico do agente, condicionando a tipicidade do fato. Tem-se o dolo como elemento subjetivo geral.

Dito isso, passar-se-á a abordar o erro de tipo, relacionando-o ao artigo 217-Ado Código Penal.

Erro, segundo a doutrina majoritária, é a falsa representação da realidade ou o falso ou equivocado conhecimento de um objeto. Conceitualmente, o erro difere da ignorância: esta é a falta de representação da realidade ou o desconhecimento total do objeto.

Todavia, penalmente, o erro e a ignorância possuem os mesmos efeitos. O artigo 20 do Código Penal, ao dissertar sobre o tema, aponta que “O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei”.

O erro de tipo, para a doutrina expert consiste no fenômeno que determina a ausência de dolo quando, havendo uma tipicidade objetiva, falta ou é falso o conhecimento dos elementos requeridos pelo tipo objetivo. Desta forma, e para que não pairem dúvidas acerca do tema, vale dizer que é o erro que recai sobre os elementos que estruturam o delito, viciando a vontade pela falsa representação da realidade.

O que acontece, quando da prática do fato, é que o agente desconhece uma condição atinente ao tipo legal. Não há, com isso, intenção de produzir o tipo objetivo, o que torna a conduta atípica, uma vez que o dolo não está presente.

Desta maneira, erro de tipo é todo erro que determina a impossibilidade da vontade realizadora do tipo objetivo. A doutrina procura diferenciar o erro de tipo vencível do erro de tipo invencível. O erro invencível ou inevitável afasta tanto o dolo quanto a culpa; já o erro vencível ou evitável é injustificável, inescusável. Decorre da falta de cuidado do agente. Para que fique claro, é imprescindível registrar o pensamento do professor Eugenio Raúl Zaffaroni, in verbis:

“Sendo o erro vencível (ou evitável), também elimina a tipicidade dolosa, mas no caso de haver tipo culposo e de configurarem-seseus pressupostos, a conduta poderá ser tipicamente culposa, isto é, dar lugar a uma forma de tipicidade que não se caracteriza com atenção à finalidade da conduta, e sim a seu modo de obtenção”.29

O crime tipificado no artigo 217-A do Código Penal exige a presença do elemento subjetivo para que seja, assim, reconhecido.

Vale dizer que é indispensável que o agente conheça o estado de vulnerabilidade da vítima, sob pena de incorrer em erro de tipo. Para praticar o delito previsto no artigo 217-A do Código Penal, o agente deve ter conhecimento - ou ao menos, a consciência plena -, no momento da ação, de que pratica uma relação sexual com pessoa vulnerável.

É esse o entendimento do mestre Cezar Roberto Bitencourt:

Em outras palavras, a vontade deve abranger, igualmente, a ação (prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso), o resultado (execução efetiva da ação proibida), os meios (de forma livre ou algum meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima) e o nexo causal (relação de causa e efeito). Por isso, quando o processo intelectual-volitivo não atinge um dos componentes da ação descrita em lei, o dolo não se aperfeiçoa, isto é, não se realiza. Na realidade, o dolo somente se completa com a presença simultânea da consciência e da vontade de todos os elementos constitutivos do tipo penal. Com efeito, quando o processo intelectual-volitivo não abrange qualquer dos requisitos da ação descrita na lei, não se pode falar em dolo, configurando-se o erro de tipo, e sem dolo não há crime, antes a ausência de previsão da modalidade culposa.

Diante de tudo que foi exposto, o que se deve concluir é que se o agente não tinha conhecimento ou a consciência, no momento da realização da conduta libidinosa, que se tratava de vítima vulnerável, cometendo engano razoável, é legítima a imposição do caput, do artigo 20, do Código Penal, tornando o fato praticado atípico (por ausência da previsão culposa).

De outro lado, caso tenha atuado utilizando-se da violência ou grave ameaça, convém desclassificar para a modalidade qualificada de estupro (§ 1º, do artigo 213, do Código Penal).

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Júlia Silva. Relativização da culpabilidade no artigo 217-a do Código Penal . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4321, 1 mai. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32636. Acesso em: 18 abr. 2024.

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