INTRODUÇÃO
Após o advento da Lei nº. 12.015, de 7 de agosto de 2009, o Código Penal brasileiro, no Título VI, passou a prever os chamados Crimes contra a dignidade sexual, alterando, assim, a redação que antes constava no mencionado Título como Crime contra os costumes.
Como se sabe, a expressão crimes contra os costumes já era bastante ultrapassada e não mais traduzia a realidade dos bens jurídicos protegidos pelos tipos que se encontravam elencados no Título VI do Código Penal, haja vista que a dignidade sexual era o bem jurídico que precisava ser tutelado e não o comportamento sexual.
Por estar elencada no capítulo relativo aos crimes contra a liberdade sexual, a tipificação do crime de estupro está diretamente voltada para a proteção da liberdade sexual da vítima e, ao realizarmos uma análise sistêmica e teleológica, também para a proteção da dignidade sexual daquela.
A nova redação trazida pela Lei nº 12.015/09 reflete, desta forma a mudança da preocupação do legislador para com o objeto jurídico merecedor de tutela estatal. Ao invés de proteger a virgindade das mulheres, como acontecia com o revogado crime de sedução, o Estado agora via, a título de exemplo, proteger a exploração sexual de crianças.
Dentre as importantes alterações trazidas pela lei em questão, a de maior relevância para o desenvolvimento desse trabalho é aquela que introduziu no ordenamento jurídico brasileiro a figura do “estupro de vulnerável”, revogando, com isso, o antigo regime da presunção de violência contida no artigo 224 do Código Penal brasileiro, tendo como foco a vítima menor de 14 anos de idade.
De acordo com a redação do artigo 217-A, do Código Penal, aquele que mantiver relação sexual ou praticar outro ato libidinoso com menor de quatorze anos incorrerá na prática do crime de estupro, sujeitando-se à penalidade de oito a quinze anos de reclusão, independente de ter agido com culpa ou dolo.
A análise do crime de estupro de vulnerável é de suma importância para a exposição de uma reflexão acerca da vulnerabilidade retratada no artigo 217-A, caput, do Código Penal, a qual, apesar de seu atual caráter absoluto, poderia, sob a ótica do autor, ser relativizada e, com isso, apontar para uma relativização da culpabilidade do autor do delito.
Para tanto, o presente trabalho analisará, em seu decorrer, o histórico do crime de estupro, bem como sua estrutura sistemática, os direitos fundamentais envolvidos, a definição de adolescente nos diferentes diplomas legais pátrios e, por fim, a possibilidade de relativização da vulnerabilidade de adolescentes, para a consequente validação do seu consentimento na prática de atos sexuais.
1. ESTUPRO – ANÁLISE HISTÓRICA
Ao longo do tempo, o Direito, de forma bastante genérica, sempre passou por grandes evoluções, alterando, aqui e ali, seus fundamentos adotados em cada cultura. O mesmo se pode dizer da penalidade destinada àquele que cometia violência sexual. Desde os primórdios da nossa civilização, até os dias mais recentes, ela sofreu diversas mutações.
A análise do delito de estupro é de extrema necessidade para a observância do repúdio que está atrelado a ele, haja vista que a preocupação no resguardo da vítima tem origem nos períodos mais remotos.
Após longa data vivendo em constante estado de guerra, a humanidade passou a procurar formas de controle de conduta, criando, para tanto, normas de convivência que deveriam ser observadas por todos os integrantes da sociedade, sob pena de punição.
Bastante conhecida mundo afora, a Lei de Talião foi instituída com o intuito de retribuir de forma rigorosa e proporcional todo o dano causado à vítima pelo delinquente (HOEPPNER, 2008)1. Esta lei é simbolizada, de forma recorrente, pela expressão “olho por olho, dente por dente”, sinalizando a justa reciprocidade do crime e da pena. Como se pode notar, tratava-se de uma forma de inibir a prática reiterada de delitos graves, uma vez que a punição seria “na mesma moeda”.
Preconizando a Lei de Talião, existiu, ainda, a consolidação de leis babilônicas, também conhecida como Código de Hamurabi, o qual tratava o delito de estupro, em seu artigo 130: “Se alguém viola a mulher que ainda não conheceu homem e vive na casa paterna e tem contato com ela e é surpreendido, este homem deverá ser morto e a mulher irá livre” (PARENTONI, 2009)2.
Vejamos que no Código de Hamurabi já existe o conceito de proteção à família e à moralidade sexual, de forma que a punição com morte seria, à época, razoável para tal afronta.
No direito grego, por sua vez, o conceito de Estado era afirmado por meio de leis penais e o fundamento da pena era a intimidação e a vingança, tendo sido concebida como meio de retribuição, repressão e expiação.
A noção de pena como meio de repressão (intimidação) poderia ser considerada como necessidade social, haja vista que, em decorrência da ameaça das leis punitivas, ocorreria a inibição da propensão de um homem a praticar um delito com esperança de impunidade. Assim, no crime de estupro, primeiramente foi imposta uma multa e, após uma reforma legislativa, foi adotada a pena de morte. (CAVALCANTE, 2002)3
No direito romano, a violência carnal, que recebia o nome de stuprum e dizia respeito a qualquer ingresso sexual indevido, era punida com pena de morte, uma vez que, considerada a violência empregada e desde que a vítima fosse mulher virgem ou viúva honesta, era considerado um crime vil. Vale grifar que a escrava e os criados, agredidos exclusivamente pelos seus senhores, por serem considerados coisas pelos romanos, além da prostituta, não poderiam ser vítimas de tal delito (OLIVEIRA, 2008).
Já no direito germânico, constituído em sua maioria pelos costumes, complementado por princípios da Lei de Talião e do cristianismo, não havia distinção entre dolo, culpa e caso fortuito, punindo-se pelo dano causado, ou seja, tinha-se uma visão absolutamente objetiva do delito (CAVALCANTE, 2002)4. Nas antigas leis inglesas, o crime era punido com a morte, sendo posteriormente substituída pela castração e pelo vazamento dos olhos. (REHDER, 2010)5
O direito penal da Igreja (ou direito canônico), por sua vez, observava o caráter subjetivo, ou “intenção criminosa” para a determinação da medida penal. O objetivo da pena era a conscientização do mal praticado e o arrependimento. Punia- se o “deflorador” de mulher virgem ao casamento com a vítima, ou pagamento do dote. O condenado era entregue ao poder civil para a execução (CAVALCANTE, 2002)6.
Em nossa legislação, os crimes contra a dignidade sexual encontram previsão legal desde as Ordenações do Reino (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas), que se desfizeram da vingança privada, mas punia-se de forma mais rigorosa que as legislações posteriores. O estupro de mulher virgem, a título de exemplo, ocasionava ao agente a obrigação de se casar com a vítima ou o dever de constituir-lhe um dote. Se o autor do delito não possuísse bens para o dote, era açoitado e degredado, salvo se fosse nobre ou pessoa de posição social, sendo-lhe aplicado apenas o degredo (REHDER, 2010)7.
Em 1830, após a promulgação do Código Criminal do Império, o crime de estupro passou a contar com previsão legal e no artigo 222 do mencionado dispositivo constava “Art. 222. Ter copula carnal por meio de violencia, ou ameaças, com qualquer mulher honesta. Penas - de prisão por tres a doze annos, e de dotar a offendida. Se a violentada fôr prostituta. Penas - de prisão por um mez a dous annos”. 8
Em 1940, com o advento do Código Penal Brasileiro, o delito de esturpo passou a constar no Título VI, Dos Crimes contra os Costumes, no art. 213, in verbis: “Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça: Pena - reclusão, de seis a dez anos.”9 Observa-se que, previamente, a vítima do crime ora tratado apenas poderia ser a mulher, sem mais a discriminação quanto à pureza, além de que devia ter a consumação da cópula carnal para a configuração do delito.
Por fim, a última modificação legislativa deu-se com o advento da Lei nº 12.015/2009, que modificou o tipo base do crime de estupro e acrescentou a figura do estupro de vulnerável, objeto basilar de análise no presente estudo, tratando-se a seguir.
1.1 A lei nº 12.015 de 2009 e o estupro de vulnerável
A Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009, trouxe significativas alterações ao Código Penal brasileiro, principalmente no tocante ao Título VI, que atualmente é intitulado Dos Crimes contra a Dignidade Sexual e engloba os chamados crimes sexuais.
O art. 217-A, alvo de nosso estudo, veio, então, tipificar o Estupro de Vulneráveis, substituindo a antiga e polêmica presunção de violência contra o menor de 14 anos, anteriormente tratada no art. 224, do Código Penal.
Ocorre, todavia, que a nova redação não foi suficiente para calar a discussão a respeito do caráter absoluto ou relativo da presunção de violência, que apenas teve seu alvo deslocado para a questão de vulnerabilidade. Neste sentido, disserta, brilhantemente, Nucci:
O nascimento do tipo penal inédito não tornará sepulta a discussão acerca do caráter relativo ou absoluto da anterior presunção de violência. Agora, submetida na figura da vulnerabilidade, pode-seconsiderar o menor, com 13 anos, absolutamente vulnerável, a ponto de seu consentimento para a prática sexual ser completamente inoperante, ainda que tenha experiência sexual comprovada? Ou será possível considerar relativa a vulnerabilidade em alguns casos especiais, avaliando-se o grau de conscientização do menor para a prática do ato sexual? Essa é a posição que nos parece mais acertada. A lei não poderá, jamais, modificar a realidade do mundo e muito menos afastar a aplicação do princípio da intervenção mínima e seu correlato princípio da ofensividade.10
É, justamente, neste ponto sensível que se pretende tocar, a vulnerabilidade do menor de 14 anos deve ser tomada em seu caráter absoluto? Isto não corresponderia a uma responsabilização penal objetiva do sujeito ativo deste crime? Deve-se relativizar a depender do caso concreto? Todas estas questões receberão breve análise, uma vez que sua discussão divide a própria doutrina brasileira que já começa a manifestar-se a este respeito.
O já mencionado artigo 217-A não deixa de apresentar condutas semelhantes às descritas no artigo 213 do Código Penal (referente ao crime de Estupro, cuja redação também fora alterada pela já mencionada Lei), aduzindo que a vítima deve apresentar, como característica obrigatória, a idade menor de 14 anos, fato que resultou na penalização de 8 a 15 anos de reclusão. (GRECO, 2009) 11
Desta maneira, fica fácil notar que o legislador, ao transcrever este dispositivo, intentava com o mesmo poder punir de forma mais severa os crimes que atingem a criança e o adolescente, vítimas de uma crescente atuação de pedófilos. Talvez, não tenha sido sua intenção a de suscitar discussões a respeito do tratamento que se estenderia a vulnerabilidade tipificada.
A inclusão do referido tipo penal no rol dos Crimes Hediondos, previsto na Lei nº8072/90, mais especificamente em seu artigo 1º, inciso VI, é também demonstrativo do que pretendia o legislador: oferecer maior rigor ao crime .
Não existe dúvida no sentido de que a violência que obriga o menor de 14 anos a ato sexual é merecedora de reprovação social e penal. Porém, e nos casos onde há o consentimento do menor ou o mesmo este já se revela prostituído, desempenhado sua vida sexual precocemente? Não comportaria, pois, cada caso, uma análise mais minuciosa?
A doutrina, pelo que se pode notar, ainda se encontra bastante dividida. Existem autores, a exemplo de Rogério Greco, que defendem o seu caráter absoluto, não comportando qualquer prova em contrário, pois tão objetivo já se revela o critério da idade.12 Todavia, existem aqueles que defendem a relativização da vulnerabilidade, devendo-se considerar o caso em suas particularidades.
Chega, pois, o momento de melhor compreender a questão da vulnerabilidade tratada pelo art. 217-A no que concerne o menor de 14 anos, como assim segue.
2. DEFINIÇÃO DE VULNERÁVEL
De acordo com o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, vulnerável é aquele que se encontra “do lado fraco de um assunto ou de uma questão; ou do ponto pela qual alguém pode ser atacado ou ferido”13. Desta maneira, se levadas em consideração mencionadas situações e circunstâncias, qualquer pessoa poderia se enquadrar na definição de vulnerável, haja vista que, ora ou outra, todo mundo pode se encontrar suscetível, propenso, enfraquecido, em perfeita situação de vulnerabilidade.
Todavia, não é dessa vulnerabilidade que o legislador tratou no artigo 217-Ado Código Penal.
É de suma importância, nesse momento, destacarmos as brilhantes elucidações de Cezar Roberto Bitencourt:
Mas não é dessa vulnerabilidade eventual, puramente circunstancial, que este dispositivo penal trata. Observando-se as hipóteses mencionadas como caracterizadoras da condição de vulnerabilidade, concluiremos, sem maiores dificuldades, que o legislador optou por incluir, nessa classificação, pessoas que são absolutamente inimputáveis (embora não todas), quais sejam menores de quatorze anos, ou alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.14
A inovação trazida pela Lei 12.015 de 2009, titulando os crimes sexuais contra vulneráveis, almejou suprimir a questionada denominação a respeito da presunção de violência, assim como sua classificação diante de situações fáticas.
O já revogado artigo 224 do Código Penal entendia que as vítimas elencadas em suas alíneas “não possuíam consentimento válido para ter qualquer tipo de relacionamento sexual”15, seja a conjunção carnal ou outro ato diverso, como bem explica Guilherme de Souza Nucci.
Foi partindo dessa premissa que o legislador brasileiro estabeleceu a presunção de violência, ou seja, se tais pessoas, nas situações retratadas no artigo 224 do Código Penal, não tinham como aceitar a relação sexual, natural seria presumir que elas tivessem sido obrigadas à prática do ato.
Desta maneira, com a vigência da Lei 12.015 de 2009 e a previsão do artigo217-A do Código Penal, o fato da relação sexual ter ocorrido de forma consentida ou não, tornou-se indiferente. Por esse motivo, é bastante importante destacar, pelo menos em parte, a Justificação ao projeto resultante na edição da Lei 12.015 de 2009, no tocante ao artigo 217-A, do Código Penal:
Que tipifica o estupro de vulneráveis substitui o atual regime de presunção de violência contra criança ou adolescente menor de 14 anos, previsto no art. 224 do Código Penal. Apesar de poder a CPMI advogar que é absoluta a presunção de violência de que trata o art. 224, não é esse o entendimento em muitos julgados. O projeto de reforma do Código Penal, então, destaca a vulnerabilidade de certas pessoas, não somente crianças e adolescentes com idade até 14 anos, mas também a pessoa que, por enfermidade ou deficiência não possuir discernimento para a prática do ato sexual, e aquela que não pode, por qualquer motivo, oferecer resistência; e com essas pessoas considera como crime ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso; sem entrar no mérito da violência e sua presunção. Trata-se de objetividade fática.
Da leitura da Justificação pode-se depreender que a intenção do legislador foi de tão somente reafirmar o caráter objetivo do tipo penal, inserindo, de forma tácita, a coação psicológica na figura típica do artigo 217-A do Código Penal.
Para esclarecer, vale mencionarmos o que disse Damásio de Jesus:
O escopo da mudança foi o de impedir a subsistência do entendimento, segundo o qual a realização de atos sexuais voluntário com adolescentes menores de 14 anos, pudesse ser considerada atípica, por ser relativa a presunção de violência em tais casos.16
O que parece, todavia, é que o legislador ignorou a necessidade de adequar as normas de conduta à realidade social de seu tempo. Imaginar que não exista a possibilidade de alguém com 12 ou 13 anos poder livremente consentir com a relação sexual, demonstra claro desconhecimento das transformações sociais que deveria regular.
O que sabemos é que pela simples alteração do tipo penal, não há força suficiente para alterarmos a realidade.
Anunciando atenção para com o comportamento da atualidade, o Projeto de Reforma do Novo Código Penal utiliza o mesmo critério adotado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente para estabelecer o requisito etário de 12 anos. Além disso, no tocante aos casos de enfermidade ou doença mental, é importante grifarmos o entendimento do mestre Nelson Hungria, mencionado em obra literária de Rogério Sanches Cunha, que defende a necessidade de verificação da qualidade de vulnerabilidade da vítima, devendo esta ao menos ser aparente, permitindo o reconhecimento da debilidade por qualquer leigo no assunto.17
Também merece ser destacado o fato de que o bem jurídico a ser tutelado é a dignidade sexual, seja a do menor de 14 anos, seja a do enfermo ou deficiente mental que apresente complicação em discernir a eventual relação sexual.
Existem autores que defendem que o bem jurídico imediatamente tutelado seria a liberdade sexual, ao mesmo tempo que em sua minoria, a exemplo de Cezar Roberto Bitencourt, entendem justamente o contrário, senão vejamos:
Na realidade, na hipótese de crime sexual contra vulnerável, não se pode falar em liberdade sexual como bem jurídico protegido, pois se reconhece que não há a plena disponibilidade do exercício dessa liberdade, que é exatamente o que caracteriza sua vulnerabilidade.18
Como sabemos, a Lei 12.015 de 2009, ao revogar o crime de atentado violento ao pudor, passou a tratar da conjunção carnal e do ato libidinoso diverso daquela no mesmo tipo penal (estupro). Com isso, a concepção de vulnerável acabou por ampliar as possibilidades de vítimas do delito do artigo 217-A, haja vista que independe do gênero.
3. DA INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 217-A DO CÓDIGO PENAL
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, ao tutelar os direitos e as garantias fundamentais, determina, em seu inciso XXXIX que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. O Mencionado dispositivo retrata o tão conhecido princípio da legalidade.
De acordo com o professor Cezar Roberto Bitencourt, tem-se que:
A elaboração de normas incriminadoras é função exclusiva da lei, isto é, nenhum fato pode ser considerado crime e nenhuma pena criminal pode ser aplicada sem que antes da ocorrência desse fato exista uma lei definindo-o como crime e cominando- lhe a sanção correspondente.19
Para isso, é necessário que a lei seja suficientemente precisa ao definir a conduta proibitiva, sendo inadmissível a existência de expressões que sejam vagas, equivocadas ou ambíguas.
Ocorre que é de conhecimento geral que existem termos em nossa legislação que são empregados pelo legislador de forma a permitir diversas interpretações, demonstrando, com isso, que a ciência do Direito aceita um certo grau de indeterminação no que diz respeito a acepção de determinado vocábulo. Essa aceitação deve ocorrer de forma a permitir a complementação valorativa de conceitos, sem que, com isso, o princípio da divisão de poderes e a segurança jurídica sejam afetados.
É claro que os cidadãos devem estar protegidos de eventuais arbitrariedades do Estado, assentado em uma norma indeterminada ou imprecisa.
Nesse sentido, vale dizer que será legítima a complementação valorativa dos conceitos sempre que respaldada na necessidade de ser feita, almejando, assim, uma justa solução ao caso concreto. É o que determina o princípio da ponderação. Existirá, nesses casos, uma prevalência em detrimento aos interesses da segurança jurídica.
Nessa linha de raciocínio, parece bastante relevante a mudança trazida pela Lei 12.015/2009 ao dispor sobre o estupro de vulnerável como tipo penal autônomo, uma vez que substituiu, de forma bastante oportuna, a expressão presunção de violência, compreendida na redação do revogado artigo 224 do Código Penal. Pelo menos nesse sentido, “a alteração da forma típica de descrição do estupro de pessoa incapaz de consentir na relação sexual foi positiva” (NUCCI, 2012).20
O já revogado artigo 224 do Código Penal, ao citar o termo presunção de violência, inquietava tanto a doutrina quanto a jurisprudência na medida em que operava, obviamente, contra os interesses do réu.
A Constituição Federal brasileira prevê no inciso LVII de seu artigo 5º que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, dispositivo este, essencial para a formação do Estado de Direito, que consagra o estado de inocência. Nas palavras de Nestor Távora, “somos presumivelmente inocentes, cabendo à acusação o ônus probatório desta acusação” (TÁVORA, 2011)
Entende-se que o réu possui a prerrogativa da absolvição quando não houver elementos suficientes que comprovem a autoria e a materialidade do crime,alinhando-se ao consagrado princípio do in dubio pro reo. Sob a égide de uma política criminal voltada a proteção da dignidade sexual do incapaz, considerando que esses não possuem capacidade de discernimento suficiente para consentir com a prática sexual, o legislador optou por concluir que aquele ato teria sido presumivelmente danoso, sendo bastante para privar o suposto agressor da sua liberdade.
Ao analisarmos de forma mais profunda, torna-se inevitável a constatação de que o artigo 217-A reproduz o já revogado artigo 224, ambos do Código Penal, embora tenha removido da descrição formal do tipo a presunção de violência.
Essa nova aparência, trazida pela Lei nº 12.015 de 2009, não parece ter sido suficiente para assegurar que essa dita vulnerabilidade seja considerada absoluta.
Existem doutrinadores que comungam do pensamento de que o artigo 5º, LVII, da Constituição Federal pátria trata, na verdade, do princípio da não- culpabilidade, uma vez que o processo judicial seria instrumento legitimador da pretensão punitiva estatal. Argumentam que não se pode presumir inocente um indivíduo contra quem foi instaurada uma ação penal baseada em um conjunto probatório mínimo, podendo presumir-se apenas a sua não-culpabilidade, até sentença penal condenatória transitada em julgado.
É o que ensina Simone Schreiber, senão vejamos:
Só se poderia admitir a presunção de inocência do delinquente ocasional que houvesse negado a prática do crime, e mesmo assim enquanto não se reunisse a prova indiciária contra ele, para depois concluir que “a própria instauração do processo criminal autorizava que se presumisse a culpa do imputado, e não a sua inocência”.22
De outro lado, o entendimento da maior parte da doutrina é no sentido de que o mencionado dispositivo constitucional representa uma sensível limitação ao poder punitivo do Estado. Sob esta ótica, a presunção de inocência fica, então, consagrada como a proteção dos inocentes em face da pretensão punitiva estatal.
É importante observar que o status concedido ao Princípio da Presunção de Inocência, mesmo diante da atacada impropriedade técnica contida no enunciado do respectivo dispositivo constitucional, é fruto da superação de um governo de cunho autoritário e inquisitório, pugnando pelas garantias sociais e pelas liberdades individuais. Tem-se, pois, na conclusiva lição de Nestor Távora, exposta em obra literária de Ricardo Augusto Schimitt, que “todo o processo deve se desenvolver sob o manto da presunção de inocência” (SCHIMITT, 2007)23
As alterações da conduta típica apresentada no artigo 217-A não acompanham as transformações comportamentais da sociedade brasileira, sobretudo ao bradar por uma presunção, disfarçada por um conceito de vulnerabilidade, punindo práticas que podem ser apropriadamente consentidas, quando travadas com quem possua 12 ou 13 anos.
Parecia o mais adequado, aliás, que a reforma legislativa de 2009, ao versar sobre os “crimes contra a dignidade sexual”, acatasse o critério biológico abrangido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, definindo como criança a “pessoa até doze anos de idade incompletos”, sendo adolescente àqueles compreendidos entre 14 e 18 anos de idade. Ao menos nesse ponto, se mostra atento o Projeto de Reforma do Novo Código Penal, como já apontado anteriormente.
O legislador dá espaço para uma política criminal bastante descompassada com a realidade social e possibilita, com isso, a punição de relações idôneas e dotadas de reciprocidade. Presumir de forma absoluta que a liberdade sexual de um indivíduo que possua de 12 a 14 incompletos tenha sido ferida, é o mesmo que admitir o distanciamento entre a realidade legal e a realidade fática. Desta maneira, a ciência jurídica perde todo seu sentido, uma vez que proíbe comportamentos socialmente admitidos.
Em consonância com o princípio da adequação social, uma conduta, ainda que formalmente subsumida ao tipo legal do crime não poderá ser considerada criminosa se estiver de acordo com a ordem social, isso porque, como se sabe, a intervenção penal não se presta a atingir o fim de proteção ao bem jurídico.
Nesse sentido, não se pode olvidar que o Direito Penal é a ultima ratio na proteção dos bens jurídicos e, se instrumentalizado de forma diversa, pode incentivar as mais absurdas e arbitrárias decisões.
Segundo Vicente de Paula,
Se há um consentimento justificado pela capacidade de discernir com a prática sexual, aliado a genuína satisfação do desejo, porquanto ausente a violência ou a grave ameaça, não há que se falar em desvalor do resultado, uma vez que não houve efetiva lesão ao bem jurídico tutelado, não moldando-se a tipicidade material. Perceba a razoabilidade em admitir que o menor de 12 ou 13 anos que possui entendimento satisfatório da vida sexual, bem como os portadores de transtornos mentais, diante da comprovação de laudo técnico, possam dispor de sua liberdade sexual na essencial procura do prazer e da felicidade, seja de forma breve ou fruto de uma relação afetiva.24
O artigo 217-A afronta o princípio constitucional da Proporcionalidade ao retirar do indivíduo o direito de decidir quando iniciar sua vida sexual.
O legislador parece demasiadamente preocupado em proteger a dignidade sexual dos vulneráveis quando, na verdade, deveria trazer à baila uma definição legal condizente com a realidade social.
A própria legislação constitucional preferiu atuar como um médico, limitando o prazer da lascívia humana dos portadores de insuficiente discernimento, como se esse prazer não fizesse parte do conjunto de vontades destes indivíduos.
De outro lado, se for admitida a qualidade absoluta da condição de vulnerabilidade, impossibilitando a produção de prova em sentido contrário, estar-se-á permitindo uma reprovação penal objetiva da conduta do agressor. Isto posto, não há sequer que se falar em suposto agressor, tendo em vista que sua culpabilidade é precocemente presumida.
Coibir, de forma genérica, as relações sexuais, estendendo a proteção integral a adolescentes de 12 ou 13 anos que tenham a orientação necessária para decidir livremente sobre o comportamento sexual adequado, parece ir de encontro à garantia fundamental da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal) – pilar de todos os outros princípios, desrespeitando os direitos de igualdade e liberdade. Nesse mesmo sentido, se mostra inócua a proibição disposta no parágrafo 1º, do artigo 217-A, do Código Penal, quando tratar- se de incapacidade mental ou física incompleta.