Introdução
Testamento é instituição oriunda do direito romano que consiste no ato pelo qual alguém dispõe de seus bens ou manifesta sua vontade acerca de determinadas situações de ordem moral ou pessoal para depois de sua morte. Em regra, o testamento tem caráter patrimonial, porém pode conter disposição de ordem não-patrimonial como, por exemplo, reconhecimento de filho.
A instituição testamento pode ser dividida em dois gêneros, a saber, o ordinário e o especial. O primeiro gênero, por sua vez, se subdivide em testamento público, cerrado e particular. O segundo em militar, marítimo e aeronáutico.
Para a elaboração de um testamento existem requisitos comuns a todos eles e formalidades específicas de cada um. Iremos nos ater, logo mais, às especificidades do testamento público, bem como ao entendimento doutrinário e jurisprudencial quanto ao cumprimento destas.
Capacidade testamentária
O Código Civil trata de fixar quem tem capacidade testamentária passiva e ativa. A capacidade testamentária passiva é aquela que a pessoa natural ou jurídica precisa ter para estar apta a ser nomeada herdeira ou legatária em testamento, a regra geral está disposta no art. 1.798 do Código Civil[1].
Por sua vez, a capacidade testamentária ativa é aquela delineada no art. 1.857 do Código Civil, que assim preceitua:
Art. 1.857. Toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte.
Art. 1.860. (...)
Parágrafo único. Podem testar os maiores de dezesseis anos.
Dessa forma, toda pessoa natural maior de dezesseis anos e capaz, ou seja, que esteja em pleno gozo de suas faculdades mentais, terá capacidade testamentária ativa. A capacidade é aferida no ato de feitura do testamento, portanto são irrelevantes a capacidade ou incapacidade superveniente. A enfermidade ou idade avançada desde que não afetem o pleno discernimento para o ato e permitam condições de entendê-lo em todo o seu alcance, não extirpam a capacidade.
Quanto aos absolutamente incapazes, elencados no art. 3º do CC[2], sem delongas, não podem testar. Todavia, em relação aos relativamente incapazes, é preciso certa cautela. Isso porque, como já visto, o maior de dezesseis e menor de dezoito anos (art. 4º, I), em matéria testamentária tem total capacidade para dispor de seus bens por testamento.
No caso dos incisos II e III do art. 4º do CC[3], se a pessoa estiver interditada, não haverá maiores dúvidas, porquanto os limites da incapacidade estarão definidos pelo juiz, na sentença (artigo 1.772 do CC). Todavia, diante da inexistência de interdição, segundo Orlando Gomes[4], deverá haver análise que possa estabelecer os limites da incapacidade natural gerada, a fim de se estabelecer se há ou não capacidade para o ato específico, isto é, a fim de estabelecer se a pessoa tem ou não condições de entender o ato que está praticando. Tal análise vale no que toca a todos os atos da vida civil, e também ao testamento em relação ao momento de sua feitura.
No tocante ao pródigo, há controvérsia doutrinária e algumas omissões. Porém, se se entender que o ato de testar vai além dos atos de mera administração dos bens, previsto no art. 1782 do código civil, então permitir ao pródigo testar, seria permitir o que se lhe quer vedar: dilapidar o seu patrimônio, ainda que com eficácia posterior à sua morte.
O testamento público
Da classe dos testamentos ordinários, o testamento público é, seguramente, o mais utilizado. Em síntese, o testamento público é aquele testamento feito pelo Tabelião, em seu livro de notas, de acordo com a vontade manifestada pelo testador, e lido pelo mesmo tabelião ao testador e duas testemunhas, sendo por todos assinado.
Requisitos do testamento público
O testamento público, como espécie do gênero escritura pública, deve, no que couber, atender aos requisitos comuns aos testamentos em geral e às solenidades previstas para as escrituras públicas no art. 215 do Código Civil[5]. Além disso, existem os requisitos específicos do testamento público, expostos no art. 1.864 do código Civil, que passaremos a pormenorizar:
Art. 1.864. São requisitos essenciais do testamento público:
I - ser escrito por tabelião ou por seu substituto legal em seu livro de notas, de acordo com as declarações do testador, podendo este servir-se de minuta, notas ou apontamentos;
II - lavrado o instrumento, ser lido em voz alta pelo tabelião ao testador e a duas testemunhas, a um só tempo; ou pelo testador, se o quiser, na presença destas e do oficial;
III - ser o instrumento, em seguida à leitura, assinado pelo testador, pelas testemunhas e pelo tabelião.
De acordo com a lei 8935/94, tabelião ou notário é o profissional do direito, dotado de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial, após regular aprovação em concurso público de provas e títulos, e cuja atuação é fiscalizada pelo Poder Judiciário. O ato deve ser elaborado pelo titular do cartório. O escrevente só pode fazê-lo quando exerce função de chefia da serventia. Nada impede que o tabelião apenas presida os trabalhos, não precisando escrever de mão própria o ato notarial. Indo mais além, eis o entendimento do STJ, em julgado de 25/05/2010:
"Leve-se em conta que a realidade dos tabelionatos, nos dias atuais, é bastante diferente da longínqua época da promulgação do Código Civil, não podendo se exigir que o próprio titular, em todos os casos, com os inúmeros afazeres que tem, escreva, datilografe, ou melhor, na era da informática, digite as palavras ditadas ou declaradas pelo testador"[6].
Portanto, com o intuito de fazer prevalecer a última vontade do testador sobre a exigência de pessoalidade do tabelião, o Superior Tribunal de Justiça tem admitido que “substitutos eventuais, tais como o oficial maior ou o empregado juramentado, têm capacidade funcional cumulativa com a do tabelião para praticar os atos de competência deste”[7]. Este entendimento se coaduna com o de Zeno Veloso que entende que o código de 2002 revogou parte do § 4º, do art. 20, da lei 8.935 de 1994[8].
As autoridades consulares brasileiras também podem lavrar testamento público (art. 18 da lei 12.376 de 2010), naqueles casos em que brasileiro testa no exterior[9].
Em relação às testemunhas testamentárias, devem ser no mínimo duas, maiores de dezesseis anos, alfabetizadas, com capacidade para os atos da vida civil, que conheçam o testador (não precisam conhecê-lo de longa data. Por exemplo, uma enfermeira ou escrevente podem servir de testemunhas de testamento feito em hospital ou cartório), capazes de compreender a língua portuguesa.
Não pode ser testemunha testamentária: o surdo; o cego; o herdeiro ou legatário instituído no testamento, bem como seus descendentes, ascendentes, irmãos, cônjuges ou companheiros (art. 228 CC); Por fim, também não podem ser testemunhas os cônjuges, os descendentes, os ascendentes e os colaterais por consanguinidade, até o terceiro grau, das partes envolvidas. De acordo com jurisprudência do STJ, “As testemunhas impedidas de participarem do ato são as resultantes de parentesco por consanguinidade, não as por afinidade”.[10].
A leitura em voz alta pode ser feita pelo testador ou pelo oficial, sempre e inteiramente na presença das testemunhas. Entretanto, em acórdão do TJSP de 19/10/2009 temos:
"Embora tenham dito, aquelas duas testemunhas (já decorridos quase vinte anos), que não ouviram a leitura em voz alta do conteúdo do testamento, confirmaram que foi o próprio testador que solicitou a presença delas no tabelionato para assinar o livro.
Por outro lado, nenhum indício existe a apontar para interferência direta da beneficiária do testamento, ou de terceiro interessado, na elaboração das declarações em registro. Nem se cogitou, na inicial, de eventual incapacidade do autor da herança de manifestar, na ocasião, a sua última vontade.
Ora, diante desse quadro, entendo que a mera dúvida (e apenas a isso poderia levar a prova dos autos) acerca do cumprimento da formalidade a que alude o art. 1.632, III, do Código Civil de 1916 não tem o condão de invalidar o testamento, elaborado, no mais, com expressa observância das solenidades exigidas (art. 1.634)".
No caso de testador surdo alfabetizado, este também deverá ler o documento. Para o caso de surdo analfabeto, deverá designar pessoa que leia o testamento na presença de duas testemunhas, segundo assevera Flávio Augusto Monteiro de Barros, o testamento público do surdo analfabeto, “é o único que exige três testemunhas”. Com o advento do Código Civil de 2002, extinta a exigência de expressão oral da vontade, é perfeitamente possível aos surdos, alfabetizados ou não, disporem de seus bens por testamento público, desde que manifestem essa vontade de forma inequívoca.
Por fim, as assinaturas, tabelião, testador e testemunhas devem assinar o documento. Se o testador, não souber assinar ou por algum motivo estiver impossibilitado de o fazer, o oficial declarará o fato e designará uma das testemunhas para assinar pelo testador. A assinatura a rogo só é deferida ao testador, não sendo estendida à testemunha analfabeta. Se o testador morre depois de assinar, mas antes das testemunhas, o testamento é válido[12].
É importante frisar que em decorrência do princípio da unidade do ato, juntos, o tabelião e as testemunhas devem assistir à manifestação da vontade do testador, ouvir a leitura do testamento, analisando sua conformidade com a vontade manifestada, e assinar o testamento, tudo em ato único, sem interrupções nem ausências.
Apesar de não ser princípio absoluto, sendo quebrada a unidade do ato de forma a colocar em risco a livre manifestação de vontade do testador, crivado de nulidade estará o testamento.
Todavia, neste ponto, de acordo com José da Silva Pacheco, parece desarrazoado
"falar em nulidade do ato simplesmente porque se registraram rápidas ausências, quando da feitura do material do testamento, ora de uma, ora de outra testemunha desde que todas elas ouviram as declarações do testador, certificando-se, depois, presentes também à leitura do auto de que fielmente respeitada foi a vontade manifestada"[13].
Pois segundo leciona Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka: “Muito mais importantes, hoje, é a unidade de contexto do testamento do que a unidade do ato propriamente dita[14]”.
Gize-se também que o testamento público, como as demais escrituras públicas, deve ser redigido na Língua Portuguesa. Caso o Testador não consiga se expressar de forma inteligível no vernáculo deve optar por outra forma de testamento que não o público. Quanto ao horário e local de sua feitura, o testamento público poderá ser lavrado em qualquer lugar e hora onde se encontre o testador, as testemunhas e o tabelião, respeitado o inscrito no art. 9º da lei 8.935 de 1994[15].
Em relação à declaração de cumprimento das formalidades, o Notário está desobrigado de firmar o cumprimento das formalidades prescritas em lei, bastando observá-las. Isso porque, diferentemente do Código Civil de 1916 (art. 1634), o Código Civil hoje vigente é silente quanto à obrigação de certificar o cumprimento das formalidades. Ademais o tabelião é dotado de fé pública e a subscrição do ato, por este, deixa implícito que as formalidades foram cumpridas[16].
Conclusão
Assim, sem dúvida, o testamento público é um dos negócios jurídicos mais solenes encontrados no direito, cujas formalidades devem ser cumpridas tal qual determina a Lei, sob pena de nulidade do ato. Já que, no dizer de Sílvio de Salvo Venosa “Sob o manto da solenidade, o legislador protege a manifestação de vontade do testador, sua autonomia, diminuindo as possibilidades de pressões físicas ou psíquicas”[17].
Entretanto, é necessário ter atenção ao fato de que, conforme leciona José da Silva Pacheco, “da observância das formalidades do testamento não se deve ir ao ponto de, sob pretexto de cumprir rigorosamente a lei, destruir a vontade do testador[18]”.
Nesse mesmo sentido, dentre outros, Pontes de Miranda alerta que
"O fim dos preceitos do Código Civil não é restringir o direito individual, mas determinar que sigam certos caminhos, observem certas normas, para que melhor se garantam. No interpretá-los, não se pode esquecer que é este o fim que eles têm"[19].
Outrossim, é desnecessário dizer que, hodiernamente, na sociedade dita moderna, cresce a demanda por dinamismo e celeridade, transformando o exagerado apego à formalidades em empecilho e anacronismo.
Por fim, é salutar que a conclusão deste singelo trabalho se dê com um trecho de acórdão exarado pelo Superior Tribunal de Justiça em 2010, com o seguinte teor em relação às formalidades do testamento público:
"Inclina-se a jurisprudência do STJ pelo aproveitamento do testamento quando, não obstante a existência de certos vícios formais, a essência do ato se mantém íntegra, reconhecida pelo Tribunal estadual, soberano no exame da prova, a fidelidade da manifestação de vontade da testadora, sua capacidade mental e livre expressão"[20].
Portanto, social, doutrinária e jurisprudencialmente falando, parece haver convergência quanto à tendência de abandonar os excessos de formalidade naqueles atos outrora sagrados[21]. Dessa forma, o desafio que se apresenta, atualmente, aos operadores do direito é o de harmonizar a forma prescrita em lei à vontade do testador, buscando atender à finalidade social do testamento com eficiência e segurança jurídica.
Notas
[1] Art. 1.798. Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão.
[2] Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I - os menores de dezesseis anos; II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.
[3] Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer: (...) II - os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; III - os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo;
[4] Orlando gomes, Introdução ao direito civil, p. 171.
[5] Art. 215. A escritura pública, lavrada em notas de tabelião, é documento dotado de fé pública, fazendo prova plena.
§ 1º Salvo quando exigidos por lei outros requisitos, a escritura pública deve conter:
I - data e local de sua realização;
II - reconhecimento da identidade e capacidade das partes e de quantos hajam comparecido ao ato, por si, como representantes, intervenientes ou testemunhas;
III - nome, nacionalidade, estado civil, profissão, domicílio e residência das partes e demais comparecentes, com a indicação, quando necessário, do regime de bens do casamento, nome do outro cônjuge e filiação;
IV - manifestação clara da vontade das partes e dos intervenientes;
V - referência ao cumprimento das exigências legais e fiscais inerentes à legitimidade do ato;
VI - declaração de ter sido lida na presença das partes e demais comparecentes, ou de que todos a leram;
VII - assinatura das partes e dos demais comparecentes, bem como a do tabelião ou seu substituto legal, encerrando o ato.
§ 2º Se algum comparecente não puder ou não souber escrever, outra pessoa capaz assinará por ele, a seu rogo.
§ 3º A escritura será redigida na língua nacional.
§ 4º Se qualquer dos comparecentes não souber a língua nacional e o tabelião não entender o idioma em que se expressa, deverá comparecer tradutor público para servir de intérprete, ou, não o havendo na localidade, outra pessoa capaz que, a juízo do tabelião, tenha idoneidade e conhecimento bastantes.
§ 5º Se algum dos comparecentes não for conhecido do tabelião, nem puder identificar-se por documento, deverão participar do ato pelo menos duas testemunhas que o conheçam e atestem sua identidade.
[6] REsp. Nº 600.746 - PR (2003/0188859-4) Relator: Ministro Aldir Passarinho Junior. Julgado em 20 de maio de 2010.
[7] Ibdem.
[8] Art. 20. - § 4º Os substitutos poderão, simultaneamente com o notário ou o oficial de registro, praticar todos os atos que lhe sejam próprios exceto, nos tabelionatos de notas, lavrar testamentos.
[9] Caio Mário da Silva Pereira p. 213.
[10] Resp. 7.197-0 Relator: Ministro Bueno de Souza. Julgado em 07 de junho de 1995.
[11] TJSP – Apelação Cível com Revisão nº 0117319-14.2008.8.26.0000 – Santo André – 1ª Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Elliot Akel – DJ 19.10.2009.
[12] Carlos Maximiliano (1950, v. 1: 462) apud Sílvio de Salvo Venosa p. 230.
[13] José da Silva Pacheco, Op. cit., p. 371-3. Apud Leonardo Brandelli, Alguns apontamentos acerca do testamento público no novo Código Civil. Disponível em: http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/8994-8993-1-PB.pdf
[14] In Francisco José Cahali e Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Curso avançado de direito civil: direito das sucessões, p.277.
“Art. 9º O tabelião de notas não poderá praticar atos de seu ofício fora do Município para o qual recebeu delegação”.
[16] Veja-se nesse sentido José da Silva Pacheco, op. cit., p. 371.
[17] Sílvio de Salvo Venosa, Direito das Sucessões. 14 ed. São Paulo: Atlas – 2014. V. 7, p. 224.
[18] Op. cit., p. 373. Apud Leonardo Brandelli, Alguns apontamentos acerca do testamento público no novo Código Civil. Disponível em: http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/8994-8993-1-PB.pdf
[19] Tratado dos testamentos, v. I, p. 239-40.
[20]REsp. Nº 600.746 - PR (2003/0188859-4) Relator: Ministro Aldir Passarinho Junior. Julgado em 20 de maio de 2010.
[21] “A ordem jurídica torna-o soleníssimo rodeando-o de exigências que na Antiguidade eram sacramentais, e no direito moderno assumem a qualificação de requisitos ad substantiam,”