A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares

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O presente artigo promove análise acerca da eficácia dos Direitos Fundamentais nas relações entre particulares, delimitando-se a atuação do Estado e os espaços de autonomia privada nas relações abrigadas pelo Direito de Família.

RESUMO: O presente artigo promove análise acerca da eficácia dos Direitos Fundamentais nas relações entre particulares, delimitando-se a atuação do Estado e os espaços de autonomia privada nas relações abrigadas pelo Direito de Família. Dessarte, pretende-se, por meio deste ensaio, demonstrar a necessidade de que  o Direito de Família seja repensado de acordo com os valores e princípios  insculpidos na Constituição Federal a fim de que, à luz dos deveres de proteção do Estado Constitucional, a defesa da dignidade da pessoa humana sirva de suporte para o reconhecimento das diversas disposições familiares compatíveis com a proteção  constitucional e seus respectivos efeitos jurídicos.

Sumário:

1. Considerações Iniciais. 2. Os Direitos Fundamentais e as relações entre particulares: proteção constitucional versus autonomia do direito privado 3. Teses acerca da eficácia dos Direitos Fundamentais nas relações entre particulares. 4. Considerações Finais. 4.Referências Bibliográficas.

1.           Considerações Iniciais

Como ponto de partida para este estudo, tem-se a evolução do Estado Liberal[1] para o Estado Social[2]. Sabe-se, assim, que a Constituição Federal de 1988 foi desenhada  após um longo período de ditadura militar, estágio que marcou o contexto sociopolítico brasileiro, já que, à época, os Direitos Fundamentais eram frontalmente violados.

Dessarte, pode-se dizer que foi em razão dessa conjuntura que a nova Carta Magna do Estado trouxe em sua proposta mandamentos protecionistas dos indivíduos, condizentes com um Estado Democrático e Social de Direito.

Tal concepção torna-se explícita logo no primeiro dispositivo da Constituição Cidadã, haja vista a declaração constante de seu artigo 1º, inciso III, que proclama um dos princípios regentes do Estado – chamado pela doutrina de superprincípio –, a saber, o consagrado princípio da dignidade da pessoa humana. Não há dúvidas de que esse  mandamento  constitucional  é  informador  de,  absolutamente,  todo  o sistema  jurídico  brasileiro  e,  consequentemente,  deve  nortear  a  hermenêutica, inclusive quando se tratar de questões pertinentes ao Direito Privado. Nesse sentido, afirma Luiz Roberto Barroso:

O ponto de partida do intérprete há que ser sempre os princípios constitucionais, que são o conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição, seus postulados básicos e seus fins. Dito de forma sumária, os princípios constitucionais são as normas eleitas pelo constituinte com fundamentos ou qualificações essenciais da ordem jurídica que institui (BARROSO, 1993, p.141).

Ao enfatizar essa posição, o doutrinador constitucionalista acabou por destacar a imprescindibilidade da observância aos princípios constitucionais no sistema jurídico brasileiro, ou melhor, a necessária observância à própria Constituição Federal. Ora, a Carta Magna de 1988 é a Lei Maior do Estado e, por isso, todas as relações estabelecidas no âmbito nacional devem estar em conformidade com      ela. Sendo assim, torna-se lícito afirmar que as leis infraconstitucionais são criadas para proporcionar maior efetividade à proposta constitucional, aos mandamentos nucleares regentes do ordenamento pátrio; eis que um sistema organizado por normas e regras, por uma Constituição, é a forma essencial de limitar o Estado e, assim, preservar a dignidade da pessoa humana e os direitos e as garantias individuais.

Com isso, ao referir a importância do sistema constitucional, o constitucionalista português Canotilho assevera que “o constitucionalismo é a teoria que ergue o princípio do governo limitado, indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante a organização    político-social     de uma comunidade” (CANOTILHO, 1997, p. 46).

Para corroborar a ideia de um Estado de Direito, a Constituição Federal de 1988 vem repleta de Direitos Fundamentais cuja finalidade é proporcionar maior segurança jurídica aos indivíduos, valendo-se, para tanto, de recursos que limitam a atuação do Estado. Ademais, esses direitos buscam assegurar uma sociedade mais justa e solidária, uma vez que sem a previsão de Direitos Fundamentais muitas das “verdades fundantes” do Estado seriam insuficientes – verdades tais como os princípios da igualdade e da dignidade, que estariam ameaçados pela inegável diferença socioeconômica registrada no contexto brasileiro.

Assim, é sabido que se há uma Constituição logo há supremacia e, consequentemente, hierarquia de normas, sendo este o cenário regente do sistema jurídico brasileiro.

No entanto, quando se trata da influência dos Direitos Fundamentais constitucionais nas relações entre particulares, surge uma importante discussão; se de um lado encontram-se aqueles que defendem a relativização dessa realidade, do outro estão os que primam pela centralidade da Constituição Federal.

Repise-se, assim, que é sobre este ponto específico que descansa o presente capítulo, cujo objetivo é esclarecer a forma e os limites da influência dos Direitos Fundamentais nas relações de            Direito Privado muito embora a complexidade e a relevância do tema excedam os limites deste trabalho como um todo.

Nessa esteira, busca-se apresentar uma análise sintética das discussões acerca desse tema jurídico tão controverso, partindo-se da análise da defesa da dignidade da pessoa humana nas relações estabelecidas entre particulares.

2.         Os Direitos Fundamentais e as relações entre particulares: proteção constitucional versus autonomia do direito privado

Percebe-se que a discussão acerca do alcance dos Direitos Fundamentais às relações entre particulares é tema de bastante complexidade no mundo jurídico. Em linhas gerais, poder-se-ia dizer que o cerne da problemática consiste em um aparente conflito existente entre a função dos Direitos Fundamentais e a autonomia do Direito Privado.

Haveria, então, por assim dizer, um constante conflito entre a corrente Constitucionalista, defensora dos mandamentos de um Estado de Direito e de uma sociedade mais justa, e a vertente Privatista, que prima de forma absoluta pela autonomia do Direito Privado.

Deste modo, vê-se que a necessidade de um Direito sempre atual, compatível com as diversas situações de conflito existentes na sociedade, faz contraditórias as ideias  caracterizadoras de um Estado Liberal devido à extrema carga individualista que este modelo apresenta.

Isso ocorre porquanto o entendimento de que não caberia ao Estado intervir nas relações privatistas, e de que os Direitos Fundamentais só poderiam ser avocados contra o Estado, revela uma visão extremamente limitada que põe em risco a segurança jurídico-constitucional dos indivíduos.

Por essa perspectiva, a interferência dos Direitos Fundamentais nas relações entre particulares é um tema repudiado pelos privatistas, segundo os quais, os Direitos Fundamentais só poderiam ser avocados quando o Estado fosse parte em determinada relação jurídica, já que a          função destes direitos seria, exclusivamente, proteger os indivíduos da ilimitada ação da poderosa “máquina do governo”.

Nessa mesma linha de raciocínio, a corrente privatista argumenta ainda que a autonomia da vontade, princípio máximo do Direito Privado, estaria ameaçada diante da interferência desses direitos nas relações entre particulares. Entretanto, em que pese à força dos argumentos ora despendidos, a permissividade sustentada pela corrente privatista reputa-se um tanto leviana em face dos mandamentos de um Estado de Direito regido por uma Lei Maior, de modo que aceitar o entendimento privatista equivaleria consentir com a relativização da própria Constituição Federal.

Diante desse pano de fundo e com base nessas premissas é que os constitucionalistas mostram-se categoricamente favoráveis à ingerência dos Direitos Fundamentais no âmbito do Direito Privado. Como bem afirma Letícia Ferrarini, “o Estado Democrático de Direito é um Estado comprometido constitucionalmente com a realização efetiva dos Direitos Fundamentais” (2010, p. 41).

Assim, uma simples reflexão pautada em prudente juízo de ponderação de valores recomenda a fiel observância os Direitos Fundamentais, sob pena de atentar-se contra a Ordem Constitucional.

Deste modo, sob a ótica constitucional brasileira, essa seria a posição doutrinária mais compatível com a proposta política da Lei Maior do Estado. Aliás, este é, de fato, o entendimento predominante no ordenamento jurídico pátrio. Pode- se dizer, outrossim, que tal contexto encontra justificativa noutras ideias fundamentais, quais sejam, a unidade, a complexidade e a supremacia da Constituição Federal, bem como o princípio da máxima efetividade da proposta trazida pela Carta Magna.

Nesse sentido, Gustavo Tepedino explicita que:

[...] o ordenamento não se resume ao direito positivo e que, “para que possa ser designado como tal, o ordenamento há de ser sistemático, orgânico, lógico, axiológico, prescritivo, uno, monolítico, centralizado”. [...] sendo o ordenamento jurídico composto por uma pluralidade de fontes normativas, se apresenta necessariamente como um sistema heterogêneo e aberto, e daí que, devido a sua complexidade, só alcançará a unidade caso seja assegurada a centralidade da Constituição, que, segundo o autor, contém a tabua de valores que caracterizam a identidade cultural da sociedade (TEPEDINO apud FERRARINI, 2010, p. 39-40).

Assim, defendem os constitucionalistas a ideia de que a supremacia da Carta Magna deve prevalecer em todas as situações e em todos os ramos do Direito, uma vez que essa traz consigo mandamentos protecionistas do homem e de sua dignidade. Logo, sendo os Direitos Fundamentais mandamentos constitucionais, podem e devem ser avocados em relações de Direito Privado.

Acerca dessa corrente, Ingo Sarlet assevera que:

[...] comunga-se da tendência majoritária no sentido de reconhecer que todos os direitos e garantias lá positivados são fundamentais e que em favor da opção expressa do Constituinte milita uma presunção em prol da fundamentalidade [...]. (SARLET, 2010, p. 16).

No mesmo sentido, o princípio da máxima efetividade da Constituição surge como argumento bastante razoável apresentado por essa corrente. Extrai-se desse mandamento nuclear que o ordenamento jurídico é no sentido de proporcionar maior efetividade aos preceitos  constitucionais. Obviamente, o Direito Privado também deve obedecer a essa premissa, já que faz parte do sistema.

Ademais, os defensores da eficácia dos Direitos Fundamentais nas relações entre particulares alegam ainda que tal deva ser a realidade de qualquer Estado de Direito. De modo que, se um dos objetivos da Constituição Cidadã é a construção de uma sociedade justa e solidária,  como determina explicitamente em seu artigo 3º, inc. I, os Direitos Fundamentais devem interferir nas relações particulares, uma vez que esses direitos são capazes de proteger a parte hipossuficiente de determinada relação jurídica.

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Além disso, em razão das diferenças socioeconômicas existentes entre os indivíduos, a defesa dos Direitos Fundamentais representa a maneira mais eficaz de buscar uma igualdade material entre os homens, porquanto tais direitos se opõem à “arbitrariedade civil”. Nesse sentido, afirma Ferrarini:

Advogam seus defensores pela intervenção do Estado na correção das desigualdades sociais e na limitação dos poderes privados. Considerando que  um  dos  papéis  dos  direitos  fundamentais  é a  proteção da  pessoa humana contra o poder, a constatação de que na sociedade contemporânea existem inúmeros outros polos de poder além do Estado, que podem igualmente oprimir o individuo, apresenta-se como um dos principais fundamentos para a extensão destes direitos às relações entre particulares (FERRARINI, 2010, p. 32).

Percebe-se, assim, que o reconhecimento dessa doutrina é fundamental quando se trata da proteção da família, intimamente relacionada ao Direito Privado – muito embora seu regramento comporte normas de ordem pública.Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 é determinante em seu artigo 226, caput, ao estabelecer que cabe ao Estado a preservação da entidade familiar, base da sociedade.

3 Teses acerca da eficácia dos Direitos Fundamentais nas relações entre particulares

Inicialmente, percebe-se que a discussão jurídica acerca da melhor forma de interferência dos Direitos Fundamentais nas relações entre particulares é um tema tão polêmico que impede o estabelecimento de um consenso por parte da doutrina. Nesse passo, observa-se a existência de quatro grandes teses que buscam explicitar o modo pelo qual os direitos  fundamentais deveriam nortear as relações entre particulares. São elas: a tese da recusa da eficácia (stateaction); a tese da eficácia mediata ou indireta; a tese dos deveres de proteção do Estado; e a tese da eficácia direta ou imediata (FERRARINI, 2010).

A tese da recusa da eficácia, desenvolvida pela jurisprudência norte-americana, defende a corrente de que os Direitos Fundamentais Constitucionais só deveriam interferir nas relações particulares quando houvesse envolvimento do Estado ou de típica função estatal promovida por particular. Percebe-se que é uma ideia caracterizadora do Estado Liberal que prima, sobretudo, pela liberdade individual ampla. Pode-se dizer, assim, que a teoria aqui abordada coloca a autonomia privada em primeiro plano nas relações entre particulares, sendo possível afirmar que, por essa corrente, os direitos constitucionais são suprimidos no Direito privado  norte-americano  –  motivo  pelo  qual  essa  corrente  individualista  não  foi estendida a outros países.  Note-se, por fim, que sob a ótica constitucional brasileira essa tese viola frontalmente os preceitos da Lei Maior e, até mesmo, os preceitos de um Estado de Direito.

Por outro lado, a segunda tese, desenvolvida na Alemanha, defende a eficácia mediata ou indireta dos direitos fundamentais nas relações entre particulares. Apesar de mostrar-se menos radical do que a primeira teoria abordada, essa corrente ainda busca resguardar o autonomia privada; a finalidade aqui seria a de evitar a estatização do Direito Privado, circunstância que seria observada caso houvesse uma interferência direta dos  direitos constitucionais nas relações entre particulares.

Basicamente, a segunda tese traz um raciocínio jurídico lógico, já que, nos termos em  que é proposta, o legislador ordinário deveria obedecer aos preceitos constitucionais previstos e integrá-los à Lei criada, fato que acabaria por cessar os efeitos diretos dos Direitos Fundamentais no Direito Privado. Nesse sentido, cite-se, a  guisa  de  exemplo,  o  entendimento  consolidado  no  Caso  Luth,  em  1958  na Alemanha, ocasião em que a Corte Constitucional Alemã declarou que os Direitos Fundamentais não são apenas direitos subjetivos contra o Estado, mas também a “expressão de valores objetivos”. Nesse sentido, afirma Ferrarini:

[...] essa teoria não reconhece que a Constituição investe os particulares em direitos subjetivos privados. Isto significa que os direitos fundamentais seriam  protegidos  no  campo  privado  por  mecanismos  próprios,  e  não através de instrumentos constitucionais, cabendo ao legislador privado a tarefa   de   mediar   a   aplicação   dos   direitos   fundamentais   sobre   os particulares. O principal papel nessa intervenção seria o desempenhado pelo legislador ordinário, incumbindo a ele o dever de viabilizar o alcance das normas constitucionais nas relações privadas (FERRARINI, 2010, p.28).

Percebe-se, portanto, que a tese da eficácia mediata busca traçar um equilíbrio entre a intervenção estatal nas relações do Direito Privado e a autonomia de liberdade dos particulares. No entanto, essa teoria é considerada insuficiente por muitos  autores,  como  Daniel  Sarmento,  por  exemplo,  já  que  não  proporciona solução no caso de omissão do legislador  ordinário, momento em que o direito fundamental constitucional torna-se vulnerável a violações.

Por seu turno, a tese da eficácia direta ou imediata dos Direitos Fundamentais, terceira tese analisada, revela maior conformidade com um Estado Constitucional de Direito. Segundo essa corrente, os Direitos Fundamentais têm uma ampla função na sociedade, uma vez que, além de proteger os indivíduos de eventuais arbitrariedades do Estado, também objetiva protegê-los das “arbitrariedades civis”. Nesse sentido, a lição contida nas esclarecedoras palavras de Ferrarini:

De acordo com a teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações privadas [...] o sistema de garantias deve operar frente ao poder, sem adjetivos público ou privado, o que reclama o prolongamento da lógica própria do Estado de Direito [...] ao âmbito das relações entre indivíduos e poderes privados e, logo, direitos fundamentais como direitos subjetivos oponíveis a particulares (FERRARINI, 2010, p. 32).

Deste modo, parece razoável defender a avocação dos Direitos Fundamentais nas relações entre particulares, sobretudo em sede de uma sociedade na  qual as desigualdades socioeconômicas e culturais mostram-se tão patentes. Nesse contexto, os defensores dessa corrente opõem-se à tese da eficácia mediata, segunda tese apontada, sob a legação de que as regulações legislativas concretizadoras mostram-se  insuficientes na tutela  dos  Direitos Fundamentais no âmbito Direito Privado; situação que acabaria por tornar os Direitos Fundamentais vulneráveis às violações de particulares. Outro argumento apresentando por essa teoria consiste na observação de que, não raro, a propalada igualdade material depende interferência dos direitos constitucionais no âmbito do Direito Civil.

Com efeito, conduzindo a análise dessa corrente interpretativa da eficácia dos Direitos Fundamentais à luz da Constituição Federal 1988, vê-se claramente sua conformidade com a opção feita pelo constituinte, que afirmou o respeito aos Direitos Fundamentais da pessoa humana como novos e únicos valores seguros a efetivar os princípios democráticos, igualitários e humanistas do ordenamento jurídico instaurado.

Nesse sentido, a lição de Guilherme Calmon Nogueira da Gama:

A eficácia imediata e a aplicação Direta das normas constitucionais nas relações intersubjetivas de Direito Privado representam o cumprimento do próprio texto constitucional – artigo 5º, § 2º –, segundo o qual as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Há evidente preocupação constitucional com os valores existenciais, em grau maior comparativamente aos valores patrimoniais, daí a colocação da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil, sendo que mesmo no campo econômico, o contrato, a propriedade e a empresa, como situações patrimoniais, são funcionalizados à efetivação dos valores e dos princípios existenciais (GAMA, 2008, p. 163).

Finalmente, dá-se início ao estudo da tese dos Deveres de Proteção do Estado, doutrina cuja inteligência propõe um raciocínio mais complexo do que aquele sugerido pelas demais teorias. Nessa esteira, ao discorrer sobre a influência dos Direitos Fundamentais nas relações entre particulares, Ferrarini, em uma breve explanação, afirma que:

A teoria dos deveres de proteção [...] reconhece que os direitos fundamentais projetam efeitos jurídicos, não enquanto direitos subjetivos oponíveis a outros particulares, como sustenta a teoria da eficácia imediata, mas a partir do reconhecimento da dimensão objetiva dos direitos fundamentais  de  onde  decorrem,  para  todos  os  poderes  do  Estado, especiais deveres de proteção, “que permitem excepcionalmente ao juiz, sempre que a proteção dos direitos fundamentais o exija e o legislador (ainda) não tenha cumprido adequadamente esse deveres, o recurso direto à norma constitucional na resolução dos conflitos entre particulares (FERRARINI, 2010, p. 34)

Fundamentalmente, a tese dos Deveres de Proteção sustenta a ideia de que os Direitos Fundamentais têm como função essencial o dever de proteção do homem, da dignidade desses indivíduos e não do bem-estar social, cabendo a todos os poderes do Estado assegurar essa função. Nesse mesmo sentido, argumentam os defensores dessa teoria que, apesar de caber ao poder legislativo “a função precípua de atender os deveres de proteção”, o Executivo e o Judiciário não podem se omitir diante de Leis insuficientes ou, manifestamente, inconstitucionais, já que o ordenamento jurídico é um sistema. (FERRARINI, 2010). Pode-se dizer, assim, que essa teoria reconhece os Direitos Fundamentais como deveres atribuídos ao Estado na defesa e proteção dos indivíduos. Ao assumir esse entendimento, essa corrente acabou por enfrentar os argumentos trazidos pelas teorias da eficácia imediata e da eficácia mediata.

Pela perspectiva dos Deveres de Proteção, vê-se que supracitada teoria da eficácia mediata não haveria de se sustentar, porquanto o sistema constitucional não pode admitir a recusa de normas constitucionais, nem mesmo em face de relações entre particulares. De modo que o princípio da autonomia privada, por si só, não seria suficiente para dirimir eventuais conflitos entre sujeitos do Direito Privado, uma vez que, além de afrontar todo um sistema constitucional, essa  ideia limitaria a atuação do judiciário diante de omissão legislativa.

Do mesmo modo, a teoria dos Deveres de Proteção revela que a teoria da eficácia imediata não proporcionaria o melhor alcance aos Direitos Fundamentais nas relações entre particulares, tendo em vista que a pretensa aplicabilidade imediata de Direitos Fundamentais conflitantes atua, ao revés, limitando o alcance desses direitos em face da neutralização de um direito subjetivo por outro de mesma categoria (FERRARINI, 2010).

Entretanto, em que pese à coerência lógica contida na teoria dos Deveres de Proteção e a indiscutível compatibilidade de seus argumentos com os mandamentos de um Estado de Direito, vê-se que o sistema jurídico pátrio, tal como mencionado anteriormente, optou por assumir a teoria da eficácia direta prima facie dos Direitos Fundamentais na esfera das relações privadas; essa seria, a priori, a corrente mais condizente com a realidade político-jurídica brasileira:

Afirma-se, nesse contexto, que os direitos fundamentais como princípios e valores constitucionais não podem deixar de aplicar-se em toda a ordem jurídica e, por conseguinte, também nas áreas do Direito Privado. [...]sendo os direitos fundamentais princípios de valor objetivos, tem de valer nas relações privadas, tanto mais intensamente quanto mais intima for a sua ligação ao valor mãe da dignidade da pessoa humana (FERRARINI, 2010).

4.         Considerações finais

             Pelo exposto, sem a pretensão de haver aqui esgotado a abordagem destas teorias tão densas quanto controvertidas acerca da eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particualres, a conclusão a que se pode chegar é no sentido de que, para além do antagonismo retratado pelo debate doutrinário, a realidade é singular e revela que a aplicação dos Direitos Fundamentais nas relações entre particulares consiste em pressuposto  lógico para a realização da dignidade da pessoa humana e condição essencial à consecução da proposta política do Estado Social de Direito.

Portanto, mais do que a reprodução de teorias antagônicas complexas, é necessário o aprofundamento do estudo e o desenvolvimento das técnicas de sopesamento, a fim de que, no  caso concreto, o operador do direito saiba primar pela ponderação de valores na busca da solução mais justa e equilibrada.

Por essa perspectiva, não se concebe que o sistema jurídico negue proteção aos influxos sociais em sede de direito de família ou valha-se de ficções jurídicas para se furtar da análise do caso concreto, cabendo ao Direito, antes, compatibilizá-las entre si com base na atual textura principiológica. Nesse sentido, ensinam Teixeira e Rodrigues:

O que não pode ser admissível em um ordenamento que tutela a dignidade humana é a supressão de instrumentos de proteção desta em nome de ficções jurídicas ou de situações que o Direito simplesmente escolheu não proteger, mesmo que esta gere efeitos direitos na esfera jurídica do indivíduo. A essência é mais importante do que a forma, razão pela qual deve ser tutelada como família todo e qualquer núcleo que preencha os requisitos para tal. Afinal, a ratio justificadora da ampla tutela familiar é que este núcleo de pessoas, unidas pela afetividade e reciprocidade proporcione a seus membros a estruturação familiar necessária para a sua formação biopsiquica enquanto sujeitos (TEIXEIRA E RODRIGUES, 2010, p. 119).

Nessa linha, importa referir que a festejada doutrina dos deveres de proteção do Estado – a qual, conforme ilustrado, defende a expressão dos valores objetivos dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, implica na proteção adequada dos direitos fundamentais de cada individuo em face de quem quer que seja, por  meio  de sua imposição enquanto imperativo de tutela que obriga o Estado Constitucional (FERRARINI, 2010, p. 118).

Nesse passo, oportuno encerrar a presente reflexão rememorando as palavras do clérigo Henri Lacordaire – iluminista da Revolução Francesa – que há muito alertava para o fato de que “nas relações entre o forte e o fraco, a liberdade escraviza e só a lei liberta”.

Portanto, é preciso que o Estado-legislador promova o equilíbrio entre as alterações sociais e o ordenamento jurídico, mobilizando-se o sistema para uma interpretação voltada eminentemente em defesa do ser humano e de seu desenvolvimento.

REFERÊNCIAS

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CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Livraria Almedina, 1997.

CASTRO, Carlos Roberto da Siqueira. O princípio da isonomia e a igualdade da mulher no direito constitucional. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1983.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

FACHIN, Luiz Edson, Elementos críticos do direito de família: curso de direito civil, Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

FERRARINI, Letícia. Família Simultânea e seus efeitos jurídicos: pedaços da realidade em busca da dignidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Princípios constitucionais de direito de família: guarda compartilhada à luz da lei nº 11;698/08: família, criança, adolescente e idoso. São Paulo: Atlas, 2008.

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HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre a facticidade e a veracidade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

LÔBO, Paulo Luiz  Netto. A Repersonalização das Relações de Família. In Carlos Alberto Bittar (coord.). O Direito de Família e a Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva 1989.

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[1] O Estado Liberal resulta, fundamentalmente, da Constituição dos Estados Unidos da América, de1787, e da Revolução Francesa, 1789, responsáveis pela promoção do ideal burguês de liberdade como fundamento central da organização do Estado; o modelo Liberal sustenta-se na separação dos poderes e objetiva garantir aos indivíduos o direito à vida, à liberdade e à propriedade em face do Estado, valendo-se, para tanto, de imposições negativas ao poder público, isto é, demandando do Estado uma postura de abstenção, no sentido de não interveniência no livre exercício destes direitos por parte de seus destinatários.

[2] O Estado Social, por outro lado, adveio da Revolução Russa, de 1917, da Carta Mexicana  do mesmo  ano,  e  da  Lei  Fundamental  de Weimer,  de  1919,  despontando  como resultado  de  um movimento  que  buscava  não  apenas  a  liberdade,  mas,  sobretudo,  o  bem  estar  do  cidadão; superando, assim, a contradição entre a igualdade formal e a desigualdade social características do modelo Liberal. Portanto, o modelo social amplia as funções ao Estado, impondo-lhe a promoção de direitos sociais prestacionais, tais como trabalho, educação e previdência.

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Sobre as autoras
Lizarb Cilindro Cardoso

Advogada. Especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário pela Univiçosa. Bacharel em Direito pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande - FURG.<br>

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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