6. O aperfeiçoamento do acesso a justiça: uma proposta de procedimentos para a mediação de conflitos coletivos urbanos
Erroneamente vinha-se entendendo o acesso a justiça como exclusivamente o ingresso de ações nos tribunais, dada a inafastabilidade do controle jurisdicional no Brasil, que implica na ideia da garantia universal de que o Poder Judiciário está disponível para a defesa de todos os direitos, inclusive contra o poder público e independente da capacidade econômica de quem precisa acessar o sistema.
A proclamação constitucional do princípio do acesso a justiça não pode se resumir a possibilidade dos cidadãos e cidadãs de ingressarem com uma ação judicial, pois a superação das inúmeras barreiras para atingir o final do processo e a lentidão dos processos com duração muito acima da razoabilidade implica no redimensionamento desta lógica.
Neste sentido, a Defensoria Pública se apresenta como uma Instituição que representa pessoas carentes cujos direitos se encontram violados ou na iminência de serem desrespeitados, e cujos interesses são prioritários no que diz respeito às políticas públicas, dentre elas a universalização do direito à moradia e do direito a cidade.
Inicialmente, a Defensoria Pública deverá prestar atendimento da demanda coletiva trazida pela comunidade afetada e proceder ao registro do atendimento com o maior número possível de informações, tais como a causa do conflito, as características, consequências e possíveis relações com outras políticas públicas, sempre procedendo a escuta qualificada dos líderes da comunidade envolvida no conflito.
Nesta primeira sessão privada será possível identificar a outra parte envolvida no conflito e proceder ao convite desta para iniciar o processo de mediação, e, após a segunda sessão privada com o “adversário” da comunidade ou grupo de pessoas que procurou a Defensoria Pública, os primeiros sinais de divergência e/ou convergência irão surgir, possibilitando a delimitação da controvérsia.
A próxima etapa é a realização de visita técnica a comunidade com avaliação da área afetada e diálogo com os cidadãos e cidadãs carentes que serão atingidos em seus direitos a moradia e a cidade, e que residam no local, também procedendo a escuta dos mesmos a fim de subsidiar as próximas etapas do processo de mediação.
Devem-se identificar instituições parceiras na Administração Pública direta e indireta, especialmente com atribuição fiscalizatória, ou fora da esfera pública, inclusive parceiros na sociedade civil organizada, a fim de subsidiar a ação da Defensoria Pública e convidá-las a participar da mediação com a contribuição que cada ente poderá fornecer dentro das suas competências.
Por sua vez, outra estratégia recomendada é convidar os Conselhos de Direitos que tenham dentre suas funções a discussão de soluções para o caso concreto apresentado pela Defensoria Pública, além de que poderão surgir encaminhamentos e recomendações que visem aprimorar a política pública de habitação tendo como parâmetro o caso concreto.
Nota-se que a Defensoria Pública não pode ser o único participante deste processo de mediação, além das partes diretamente envolvidas, logo, necessária a identificação de outros atores que possam contribuir na construção do acordo, ou seja, pessoas que sejam afetados pelo objeto do acordo, que tenham competência legal para a matéria, conhecimento técnico ou recursos financeiros para executar a política pública em questão.
Para exemplificar, o elenco de participantes pode ser preenchido com a presença do Ministério Público, os agentes públicos com responsabilidade de atuar na matéria, organismos da sociedade civil organizada que atuam na defesa da política pública do direito à moradia e as instituições acadêmicas que possuam conhecimento sobre a matéria.
Com a presença destes atores, será possível construir um acordo que adeque a política pública do direito à moradia com as reais necessidades de seus destinatários, na maioria das vezes, os cidadãos e cidadãs carentes do Brasil.
Depois destas etapas, a Defensoria Pública deverá agendar sessões públicas com as lideranças da comunidade, a outra parte da demanda e os demais atores envolvidos, a fim de iniciar o processo de interlocução entre as partes, já com elementos colhidos nas primeiras etapas, especialmente subsídios técnicos sobre a demanda.
Na primeira sessão pública, serão demarcadas as regras que orientarão todo o processo de mediação, precisando-se a oportunidade de cada parte expor suas opiniões e interesses, qual o momento que os estudos técnicos serão apresentados, e de que forma pessoas presentes a sessão e que não sejam os líderes comunitários poderão participar do grupo.
É altamente recomendável que seja fixado um cronograma das próximas reuniões, se possível no mínimo da reunião subsequente, e caso haja possibilidade o estabelecimento de um prazo para a mediação.
A experiência tem demonstrado que, no caso dos conflitos fundiários urbanos, é extremamente difícil a fixação de um prazo para o final da mediação, entretanto, deve-se utilizar da razoabilidade, pois nem sempre as partes podem mediar indefinidamente, quando a judicialização irá se tornar inevitável.
Daí, surge uma primeira proposta de resolução extrajudicial para o conflito fundiário urbano coletivo e, na remota hipótese de não ter sucesso, após esgotadas todas as tentativas de mediação das partes, em número de reuniões necessárias para este desiderato, ajuíza-se a medida judicial cabível.
Mesmo que a mediação não obtenha êxito na fixação de um acordo, apesar do esforço das partes para tal desiderato, não se pode considerar que a mediação seja um fracasso, pois já se terá estabelecido um canal de comunicação entre as partes e a consciência do poder público sobre a necessidade de cumprimento do direito à moradia, o que facilitará uma nova tentativa de mediação ou de conciliação ao longo do processo judicial.
7. Conclusão
Dentre as inúmeras funções institucionais da Defensoria Pública, a Lei Complementar Federal nº 80, com as modificações introduzidas pela Lei Complementar Federal nº 132, prevê o papel da Instituição na solução extrajudicial dos conflitos coletivos, sempre priorizando os mecanismos de resolução de conflitos que não demandem uma prestação jurisdicional do Poder Judiciário.
Visando facilitar o cumprimento desta missão, a Defensoria Pública deverá convidar profissionais de outras áreas do conhecimento para contribuir na resolução de conflitos coletivos, pois resumir o debate do antagonismo de interesses exclusivamente ao discurso jurídico poderá acarretar na não solução do caso, ante a complexidade de tais demandas.
Daí surge um novo perfil de Defensor Público: mediador e com sua atuação direcionada a solução de conflitos coletivos, o que exige a reconstrução do papel deste profissional, bem como dos seus concursos de ingresso, geralmente voltados para uma visão formalista do direito e desconectadas dos direitos humanos.
A Constituição Federal estabelece uma série de direitos sociais a serem observados pelo legislador, na construção das políticas públicas, e pelo aplicador da lei na resolução dos conflitos. Dentre estes direitos sociais, destaca-se o direito à moradia que não se cristaliza somente numa habitação, porém, num espaço digno e que no qual se possam concretizar os demais direitos humanos, a exemplo do lazer, segurança, saúde e educação.
Sem estes valores serem agregados à moradia e sem seu cumprimento, ainda persistirá a violação ao direito à moradia que precisa do adjetivo “digna” para ter seu sentido completo.
Para tanto, em respeito à Constituição Federal e à Lei Complementar Federal nº 80, a Defensoria Pública do Estado da Bahia criou o Núcleo de Prevenção, Mediação e Regularização Fundiária, após deliberação do seu Conselho Superior, com a incumbência de promover o direito à moradia e mediar conflitos fundiários urbanos, em atenção a necessidade de participação de outras áreas do conhecimento.
Por derradeiro, restou formulada uma proposição de roteiro de atividades para a Defensoria Pública cumprir seu mister em consonância com os dispositivos legais e constitucionais, de modo a exercer sua atribuição de prestar assistência jurídica integral e gratuita, que não se resume ao ingresso de ações junto ao Poder Judiciário, consagrando o princípio do acesso à justiça.
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Notas
[1] CAFRUNE, Marcelo Eibs. Mediação de Conflitos Fundiários Urbanos: do debate teórico à construção política. Revista da Faculdade de Direito UniRitter, Porto Alegre, n. 11, p. 197-217, 2010.
[2] WARAT, Luís Alberto. O ofício do mediador. Florianópolis: Habitus, 2001. v. 1.