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Drogas ilícitas, direito penal e sociedade

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26/09/2015 às 13:38
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2  A justiça do direito

O direito é como é. O direito brasileiro é influenciado pelo restante do mundo e é também uma opção tanto do governo através de suas polícias, quanto do Judiciário, através de seus julgamentos. Um observador poderia chamar isto de justo ou injusto. Outro observador poderia dizer que isto segue a tendência mundial ou não segue a tendência mundial no trato com as drogas, um terceiro observador poderia dizer que se os usuários e traficantes pobres colaboram para o incremento da violência, independente da outra camada da população – os ricos – não serem presos, o certo e punir os primeiros e buscar a punições dos últimos. Uma observação final também pode dizer que o trato político e jurídico do Brasil ao invés de diminuir o uso e o tráfico de drogas, aumenta-os. Por isso é preciso fazer alguma coisa, decidir. E decidir é arriscar, já que não se pode prever o futuro.

O sistema jurídico brasileiro não pode ser julgado como justo ou injusto porque está prendendo traficantes já marginalizados pela classe social e pelo uso de drogas, porque certamente estes colaboram para o incremento da violência. Neste aspecto é normal que quem pratique o crime vá preso. O sistema é injusto quando não disponibiliza os mesmos meios de prova e a mesmas possibilidades de tratamento e ressocialização a  pobres e ricos. Aos primeiros a cadeia; aos últimos a reinserção social sem o direito penal. É óbvio que a solução não é simplista: soltar pequenos traficantes pobres e prender os ricos. A pergunta é: o que fazer com os pequenos traficantes e viciados, já que com os ricos se sabe o que fazer. De outro modo, é possível deixar a inclusão social dos viciados e pequenos traficantes a outros sistemas e aumentar a exigência de investigação e provas quanto ao tráfico de drogas? Uma alternativa seria proteger essa camada da população com a prisão dos traficantes que abastecem os pequenos e suas bocas de fumo. Só que para isto a investigação tem que melhorar e, pelo menos no varejo, ela não vai melhorar em curto prazo, porque se trata de formar uma polícia investigativa, que hoje não existe.

Embora se escreva muito que o número de prisões por tráfico de drogas aumentou porque a Lei 11.343/2006 aumentou a pena mínima para o tráfico e também porque o regime inicial de cumprimento da pena é em regime fechado, parece que existem também outros motivos. Em primeiro lugar, o STF vem decidindo reiteradamente, e os Tribunais vem acompanhando, que o regime inicial de cumprimento da pena para os crimes hediondos como o tráfico deve ser ditado pelo Código Penal e não pela Lei dos Crimes Hediondos. Portanto, o traficante normalmente não inicia o cumprimento de sua pena no regime fechado, mas no semiaberto. Depois, não pode passar despercebido que a Polícia Militar vem investindo há alguns anos na formação de inteligência de seu pessoal e estendendo núcleos de inteligências aos batalhões que são responsáveis por determinadas regiões. O resultado do trabalho desse pessoal se nota principalmente na prisão de traficantes e ladrões, mas sem investigação, que é da responsabilidade da polícia civil e que não consegue desempenhar essa tarefa. E é por isso também que a maioria dos inquéritos policiais começa com prisão em flagrante de traficantes feitas por policiais militares após trabalho de inteligência dos Batalhões. Não há estatística disponível sobre esses dados, mas a prática demonstra que esta ação vem crescendo e o número de prisões também[20]. Como não há investigação, que é da competência da polícia civil, as condenações realmente são legitimadas em cima de testemunhos de policiais que fizeram a prisão e da apreensão de pequenas quantidades de drogas. E a força coercitiva do direito recai mais sobre uma parcela da população do que em outra, o que não tem nada a ver com justiça/igualdade de tratamento.

Como, então, enfrentar a injustiça do sistema do direito penal a respeito das drogas? Como tornar as decisões mais aceitáveis pela sociedade, ou como o direito poderia interagir com outros sistemas sociais para enfrentar o problema? A fórmula de contingência da justiça não pode criar um direito excepcional para pobres e traficantes, um direito da piedade, da assistência social, ou baseada em princípios humanísticos abstratos que exijam simplesmente a liberação de traficantes por serem pobres, primários, abandonados pela sociedade. Quando muito a fórmula da justiça poderia ajudar a buscar um tratamento igualitário entre ricos e pobres, reconhecendo que o processo favorece muito mais a ressocialização dos ricos, principalmente quando são viciados.

A análise da justiça do sistema jurídico poderia recair então sobre o tratamento processual dos casos e sua implicação do direito penal das drogas. Poderia utilizar da função do direito para demonstrar que não compete ao direito investir contra uma classe social com a ameaça da pena a pretexto de diminuir a criminalidade. Poderia, por fim, estabelecer que há alguma relação entre a parcela de pobres que trafica e o parcela de ricos que consomem drogas e que as semelhanças sugerem mudanças de tratamento com a finalidade de igualar essas pessoas.


3  Função do direito

O direito não tem uma solução para acabar ou diminuir o tráfico de drogas, nem para melhorar a distribuição de renda, nem para melhorar a educação, nem para melhorar a polícia ou o Judiciário. Esta não é sua função. Não se melhora a sociedade aplicando o direito. Aliás, se se aplicasse plenamente o direito a sociedade implodiria: como prender todos os comerciantes ilegais dos chamados “paraguaizinhos”; como prender todos os sonegadores fiscais, ou aqueles que destroem o meio ambiente, ou que não respeitam o consumidor? Como exigir igualdade de condições para todos?  O direito não se diferenciou na sociedade para isto. Ele se diferenciou somente para dizer que para todos os casos sociais em que o direito for acionado ele dirá: isto está de acordo com o direito ou está em desacordo com o direito.

Muito embora o sistema do direito seja operacionalmente fechado e por isso não possa construir nada no futuro, nem dar receitas para uma sociedade melhor, ele é cognitivamente aberto à sociedade. Ele é um lado da sociedade. Distingue-se por suas operações, mas não pode deixar de se irritar com o ambiente social porque ele atua na sociedade. É por isto que o direito é uma máquina histórica, ele se constrói através de suas operações e irritações. Isto quer dizer que o direito não é alheio aos estudos que se fazem sobre as drogas, nem sobre as mazelas dos sistemas carcerário, policial e judiciário. Não pode esquecer ou não levar em consideração que a atividade policial é dirigida segundo os interesses das organizações policiais e do poder político: se prende mais ou menos traficantes dependendo do número de policiais nas ruas, investigando, dependendo do que é necessário para as estatísticas do poder para corresponder ao anseio de segurança da população e não necessariamente porque aumentou ou diminuiu os números relativos ao tráfico (quantidade de drogas, bocas de fumo, rotas do tráfico, etc.). Legitimam-se as prisões com a decretação da prisão preventiva de presos em flagrante ou com condenações porque o Poder Judiciário está acostumado com um tipo de prova e de política de repressão, não porque com isto se construirá uma sociedade mais justa, ou porque esta é a melhor decisão judicial para combater o uso e o tráfico, mas porque hoje o que se tem como melhor interpretação é esta. Se a teoria da sociedade estiver certa nesta análise, então tudo pode ser diferente e certamente que pode: podem vir leis que liberem o uso de certas drogas, determinadas condutas podem ser descriminalizadas ou despenalizadas, dependendo do momento político, das forças contra e a favor do uso de drogas que influenciam os políticos e do interesse de quem está no poder, ou então, virem leis mais repressivas, serem construídos mais presídios, e assim por diante. O direito é dinâmico.

No que diz respeito a este trabalho é interessante notar como no Poder Judiciário há um embate: de um lado aqueles que optam pela continuidade da política de drogas, mais repressiva. De outro, aqueles que, brandindo os direitos humanos e a constituição, optam por uma interpretação diferente, mais próxima daqueles que defendem a liberação do uso de drogas e a soltura dos pequenos traficantes, principalmente os viciados. Um problema destas interpretações é que a primeira é obsoleta e a segunda, baseada em princípios, não é confiável. A história demonstra à saciedade que os chamados direitos humanos funcionam como um pêndulo: ora servem para justificar determinadas condutas, ora para criticá-las. Outro problema é que ambas entendem que o direito tem como função forjar uma sociedade melhor. Não percebem que o direito é como é, ou seja, só decide casos que são levados até ele[21]e com as interpretações legais construídas em seu interior pelo próprio direito, que normalmente são as da moda em vigor.

Se toda decisão é arriscada e o sistema jurídico é constrangido a decidir sempre, o problema é de atribuição: a atribuição do atuar permite a observação da reprodução de um sistema. Ora se o sistema do direito atua marginalizando e escolhendo pessoas da periferia para punir e se esse método falhou, ele tem a possibilidade de mudar, porque pode rever suas interpretações e fundamentos e qualquer hora, sem nenhuma responsabilidade pelos resultados futuros. Já a atribuição da vivência permite a observação da reprodução de sentido, já que cada observação é experiência de algo, que dá sentido a algo. Neste ponto, a melhor interpretação pode ser outra. O problema é dar sentido e reproduzir o sentido de outra interpretação dado o conservadorismo arraigado na polícia e nos tribunais. Para que se forme um sistema social devem criar-se regras de atribuição e possibilidades de coordenar o atuar e a vivência: só assim podem estabilizar-se as expectativas de algum tipo[22], ou seja, pode o direito cumprir sua função.

Voltemos novamente à sociologia. Ela não pode ajudar, nem criticar o direito. Deve se concentrar nos seus problemas, que não são poucos. O sociólogo não é policial, nem juiz. Deve se manter no seu lugar de observador do sistema do direito e reconhecer que também suas observações podem ser outras observações e que suas pretensões de verdade são somente teorias. A sociologia usa o direito como objeto de seus estudos e não como um sistema sobre o qual tenha alguma interferência ou ascensão.


4  Direito e ciência

Estas são observações que a Sociologia pode fazer sobre o atuar do direito no que diz respeito às drogas. A ciência social não tem autoridade para julgar se há um direito melhor ou pior e muito menos é sua função dar uma receita de trabalho para o direito. Todas as vezes que a sociologia pretendeu ser crítica com relação ao direito ela falhou. E isto é simples de explicar: como o direito é fechado em si mesmo, ele não pode ser também sociologia. Sociologia é ciência e produz teorias, que não tem nada a ver com a aplicação de um bom ou mal direito. Aliás, as teorias não resolvem o problema do direito, complicam, trazem complexidade maior aos seus problemas. E é neste sentido, de incrementar o direito de complexidade que a teoria da sociedade pode ser útil. O direito pode se irritar com os fatos construídos pela sociologia na medida em que suas teorias sejam convincentes para um observador do direito. Se estas irritações forem introduzidas pelo direito no direito – e não pela sociologia no direito - gerando mais complexidade no sistema, o direito pode tomar um rumo diferente ou permanecer fiel à sua memória, mas com a introdução de novos fatos. Com relação às drogas, as observações sociológicas servem para reforçar o direito existente e também para propiciar novas interpretações, não no sentido reproduzido pela sociologia com relação ao direito, mas no da própria reprodução do direito: é o direito que escolhe o seu rumo.

Se de tudo o que se disse for aceito que em certos casos o direito está penalizando viciados como traficantes e pequenos traficantes como grandes traficantes, é o caso de se rever como se dá a criminalização através da teoria do delito (e não de princípios e da sociologia) e dos requisitos específicos de criminalização do art. 28, § 2º da Lei 11.343/2006.

É muito difícil ao Poder Judiciário sustentar que não é crime de tráfico manter em casa, por exemplo, 10 gramas de maconha, quando a polícia, alertada por delação de alguém, por escutas telefônicas, etc., logra prender um usuário depois de ele ter comprado uma porção dessa droga do dono da casa. É muito difícil para qualquer operador do direito que esteja do lado da polícia, do Ministério Público ou do Poder Judiciário não caracterizar esta conduta como de tráfico, principalmente se junto com o depoimento do policial vier a apreensão de outros petrechos relacionados a este crime: celulares, balança, tesoura, papéis cortados para a feitura de cigarros, etc. O que se fazer então? Apelar para o pragmatismo americano seria impensável em nossa cultura policial e judiciária, assim como não haveria vontade política nem dinheiro para implantar um sistema mais parecido com o Europeu[23].

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O Poder Judiciário, no que se refere às drogas, sempre teve uma atitude ativista: suas decisões realizam a política dominante. Assim, sedimentou uma interpretação que favorece a repressão: o resultado foi o aumento de prisões provisórias de traficantes e o aumento de condenações e, consequentemente, da população carcerária. Não seria viável agora um ativismo contrário, ou seja, soltar traficantes com base numa visão da “esquerda” que domina a interpretação sobre princípios e direitos humanos hoje no Brasil: um erro não justifica o outro.

Um encaminhamento tradicional do direito, inegável do ponto de vista das pesquisas sociais, é que o Poder Judiciário legitima prisões de traficantes baseado exclusivamente em informações policiais e nas apreensões que indicam indício de tráfico. Também é inegável que essas informações não se demonstraram confiáveis até aqui, seja por falta de investigação, seja pelas mazelas policiais já analisadas. O resultado foi a prisão de pessoas na sua maioria primárias, com endereço certo, com pouca droga, sem relação com crimes violentos e com organizações criminosas. Se estes são os fatos, a atitude dos juízes poderia se voltar um pouco mais para a ciência e para o direito processual, ou seja, conhecer melhor o problema e exigir melhores provas de que o preso portando droga é realmente um traficante e que tipo de traficante ele é. Uma ação assim estaria plenamente legitimada pela ciência, pelo direito penal, pelo direito processual e pelas exigências específicas da legislação sobre drogas.

Como se sabe, para que exista um delito é necessária a prova da existência de uma ação livre e que esta seja típica, antijurídica e culpável. O desenvolvimento da ciência penal introduziu um conteúdo material nestas categorias, de tal modo que, além de não bastar só a análise formal, como se fazia tradicionalmente, de cada categoria separadamente, hoje se exige, além de um conteúdo material, uma interpretação integrada das categorias, de modo que se entrelaçam elementos da tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade com influências recíprocas. Assim, por exemplo, se a insignificância da lesão do bem jurídico não for suficiente para afastar a tipicidade, pode ajudar na interpretação da afetação da ordem social e também na necessidade de pena. Também deste modo, se entrelaçam o direito penal e o direito processual, ou seja, exigem-se mais provas para a caracterização de um delito no seu conteúdo material. Não basta mais o testemunho policial para comprovar o tráfico, por mais sério que seja este policial. O conteúdo material das categorias do crime exige mais, exige que se analisem as circunstâncias reais de cada caso para que o tipo tenha uma significância, para que a antijuridicidade se conforme com uma afetação importante da ordem social e para que culpabilidade só seja exigível de quem tem plena consciência de seus atos. Por fim e como já se frisou, a própria lei diz que, para determinar se a droga destina-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente. A ciência social e o direito processual passam a ter uma importância maior do que tinha neste contexto. Se houver uma interpretação pelo menos próxima disto, parece que os desafios do direito aproximam-se dos desafios da sociedade no que se refere às drogas: para o direito o desafio é separar grandes traficantes de viciados e pequenos traficantes, deixando a prisão somente para os grandes traficantes. Para a sociedade os desafios são: manter vigilância sobre a evolução do problema com as drogas, testando sempre novas respostas para novas ameaças e novos desafios, investindo em atividades bem definidas e de eficácia comprovada[24].

O receio que uma interpretação mais conservadora tem em relação ao processo é que deste modo não se resolva o conflito de interesses entre a sociedade e o réu, ou que se aplique de modo errado o direito material gerando mais insegurança social. Em suma, há um conflito também no que diz respeito ao entendimento sobre a função do processo.

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Sobre o autor
Luís Alberto Safraider

Procurador de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SAFRAIDER, Luís Alberto. Drogas ilícitas, direito penal e sociedade . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4469, 26 set. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/33388. Acesso em: 23 abr. 2024.

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