Problemática
O presente ensaio vem discorrer sobre um dos motores para o “crescente encolhimento” do Poder Legislativo vivenciado, nos dias atuais, por nossa jovem República.
Os catalisadores de tal fenômeno são vários, mas o objeto desse trabalho será restrito à usurpação pelo Poder Judiciário, através das súmulas do Superior Tribunal de Justiça, em relação às competências do Poder Legislativo e sua pretensão de “eternidade”, que serão tratadas de maneira rápida apenas com o expresso fim de se iniciar discussões sobre a matéria.
Não pretendemos discorrer sobre a usurpação realizada pelo Poder Executivo na utilização sem razoabilidade de incontáveis medidas provisórias que passam longe de serem matérias de suas competências, nem mesmo sobre a extrema submissão do Legislativo às imposições desse mesmo Executivo nem sobre os acordos entre estes dois Poderes que lesam a hoje aparentemente desconhecida Separação dos Poderes.
Tal escrito foi impulsionado pelas reiteradas decisões do Superior Tribunal de Justiça em Agravos interpostos, na forma do art. 544, do Código de Processo Civil, pela não admissibilidade de Recursos Especiais pelos Tribunais de Justiça dos estados-membros ou pelos Tribunais Regionais Federais. Tais decisões do Superior Tribunal de Justiça vêm inadmitindo o processamento dos agravos sob o fundamento de que a Corte “pacificou o entendimento, no julgado da Questão de Ordem no Ag 1.154.599/SP, de que não cabe Agravo em Recurso Especial contra decisão que nega seguimento ao apelo nobre com base no art. 543, §7º, inciso I, do CPC” (AREsp nº. 109.008, Relator Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJ 01/03/12).
Não se faz necessário realizar um estudo detido para observar os efeitos danosos de tais decisões. De maneira fria e direta, as referidas decisões gerarão uma irrecorribilidade dos recursos especiais por fundamentos que não podem ser minimamente comprovados ou levados ao próprio Superior Tribunal de Justiça, uma vez que restará impossibilitada a análise do não cabimento pela corte destinatária do recurso, dando ensejo à manutenção de decisões, que, mesmo que em nada se relacione com a pretensa súmula ou julgado do STJ, perpetuar-se-ão sem a correta possibilidade de manifestação do seu cabimento pela instância superior, haja vista que o recurso cabível será para a própria Corte julgadora através de agravo interno da decisão do presidente do Tribunal.
E o mais grave de tudo, acreditamos ser a pretensa "eternidade" das referidas súmulas e julgados da Corte Superior de Justiça, uma vez que inexistem meios para reanálise dos mesmos.
Súmulas e julgados do STJ com pretensão de serem vinculantes e eternos: ausência de respaldo legal, lógico e histórico
Primeiramente, importa destacar que inexistem quaisquer dispositivos legais que regulamentem a impossibilidade de realização do recurso especial ou posterior agravo quando o julgado, segundo entendimento do Tribunal recorrido, esteja em conformidade com súmulas ou julgados na sistemática de recursos repetitivos do Superior Tribunal de Justiça.
O Art. 543-C, do Código de Processo Civil, ao dispor de tal matéria, expôs nos seus parágrafos 7º e 8º o seguinte:
§ 7º Publicado o acórdão do Superior Tribunal de Justiça, os recursos especiais sobrestados na origem:
I - terão seguimento denegado na hipótese de o acórdão recorrido coincidir com a orientação do Superior Tribunal de Justiça; ou
II - serão novamente examinados pelo tribunal de origem na hipótese de o acórdão recorrido divergir da orientação do Superior Tribunal de Justiça.
§ 8º Na hipótese prevista no inciso II do § 7º deste artigo, mantida a decisão divergente pelo tribunal de origem, far-se-á o exame de admissibilidade do recurso especial.
Ora, pela análise desses dispositivos e pela análise sistemática do Código de Processo Civil, resta claro que, em sendo denegado seguimento ao Recurso Especial pelo disposto no inciso I do parágrafo 7º, do Art. 543-C, do CPC, caberá o agravo do art. 544, do CPC, restringindo sua argumentação exclusivamente em torno de tal matéria.
O fugaz argumento de que a Lei n.º 11.672/2008 não previu o cabimento do agravo nas providências posteriores ao julgamento do recurso repetitivo, fato este que demonstraria, “de forma inequívoca”, a inadmissão de recurso especial contra a decisão repetitiva de tese já decidida pelo STJ não encontra um mínimo de guarita legal, pois ao legislar o Poder Legislativo tinha plena ciência da possibilidade do manejo do agravo existente no art. 544 (artigo seguinte do Código de Processo Civil) e, caso entendesse sua desnecessidade, proporia sua revogação. Entretanto, em vez disso – acrescente-se –, houve posterior modificação desse recurso através da Lei nº. 12.322/2010 e nada foi alterado no que diz respeito ao seu cabimento!
O que se vê, claramente, é uma usurpação de competência do Poder Legislativo.
Importa lembrar que inexiste possibilidade atribuída pelo texto constitucional que restrinja a subida do recurso especial ou respectivo agravo ao Superior Tribunal de Justiça, não podendo nem devendo se assemelhar o caso com o da repercussão geral e das Súmulas Vinculantes que possuem guarita constitucional. E, mesmo neste caso da Súmula Vinculante, os limites são muito mais razoáveis que este trazido pela Eg. Corte Superior de Justiça, passando longe de ser uma tentativa de julgar de uma forma um determinado assunto para sua eternidade, ou seja, de forma imutável. [1]
Não bastassem os inúmeros requisitos de admissibilidade forjados diariamente através da jurisprudência, em interpretação ao texto legal, para impossibilitar o conhecimento do recurso especial e o respectivo agravo, agora vem um requisito novo tecido com base no mérito da questão para impossibilitar até a mínima subida do recurso no âmbito do STJ, questão esta que gera uma problemática que vai muito mais além, uma problemática de cunho constitucional.
Tal atitude se aproxima muito de atos não democráticos, pois estão a formular e dispor matérias que ultrapassam suas competências e passam a abraçar as competências do Poder Legislativo, os verdadeiros representantes do povo (não estamos discorrendo sobre capacidade, mas sobre legitimidade).
Importa destacar ainda que o argumento desenvolvido para impossibilitar o conhecimento da matéria pelo STJ também não encontra o mínimo de guarita lógica e histórica, pois se petrificará a jurisprudência em equivalente medida ao que ocorreu com a fracassada escola de Exegese no tocante às leis, ou seja, estará impossibilitada de evoluir com a sociedade.
A aplicação desse entendimento pode trazer inúmeros prejuízos, pois matérias que claramente não se encaixam nas súmulas “meio-vinculantes” deste Superior Tribunal de Justiça podem ser capituladas dessa forma pelos Tribunais de Justiça ou Tribunais Regionais Federais com intuito de por fim aos inúmeros processos acumulados por deficiência administrativa dos seus gestores judiciários.
Finalmente, a maior questão de todas é a seguinte: Como se demonstrará a não identidade entre as matérias se não estará sendo o recurso submetido ao crivo do próprio Superior Tribunal de Justiça? A primeira resposta que vem à mente desencadeia na clara tentativa de atribuir uma irrecorribilidade de fato ao STJ das decisões que supostamente se adéquam aos termos julgado ou sumulados por este Tribunal Superior.
Nesse sentido, vejamos o excelente e corajoso pronunciamento em voto-vista do Ministro Teori Albino Zavascki, no próprio julgado da Questão de Ordem no Ag 1.154.599/SP:
Por outro lado, negando-se acesso ao STJ, em casos tais, o que se faz, na prática, é conferir aos precedentes julgados pelo regime do art. 543-C não apenas um efeito vinculante ultra partes, mas também um caráter de absoluta imutabilidade, eis que não subsistiria, no sistema processual, outro meio adequado para provocar eventual revisão do julgado. Essa deficiência não seria compatível com nosso sistema, nem com qualquer outro sistema de direito. Mesmo os sistemas que cultuam rigorosamente a força vinculante dos precedentes judiciais admitem iniciativas dos jurisdicionados tendentes a modificar a orientação anterior, especialmente em face de novos fundamentos jurídicos ou de novas circunstâncias de fato. É que a eficácia das decisões judiciais está necessariamente subordinada à cláusula rebus sic stantibus , comportando revisão sempre que houver modificação no estado de fato ou de direito. Até mesmo para as súmulas vinculantes editadas pelo STF há mecanismos de acesso à Corte Suprema para fins de revisão (CF, art. 103-A, § 2º e Lei 11.417/06, arts. 3º a 6º). O mesmo ocorre com as decisões do STF que negam existência de repercussão geral, que também estão sujeitas a revisão (CPC, art. 543-A, § 5º). São igualmente passíveis de revisão – e não são raros os casos em que isso ocorre na prática – as súmulas editadas pelo STJ (Regimento Interno, art. 125).
Impõe destacar que tudo isso exposto está flagrantemente ofendendo uma das facetas do princípio do juiz natural, a qual expõe que todos têm o direito de submeter-se a julgamento por juiz competente, pré-constituído na forma da lei e isso não ocorre no caso em tela, pois está se impossibilitando o acesso à Corte Superior por atos não dispostos em lei, ferindo disposição constitucional que não traz exceção sobre tal matéria.
Sobre o significado do princípio do Juiz Natural, vejamos o entendimento de Nelson Nery Júnior in princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 8ª Ed. ver., ampl. e atual. com as novas súmulas do STF e com análise sobre a relativização da coisa julgada. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p.104. (coleção estudos de direito do processo Enrico Tullio Liebman, v. 21):
Costuma-se salientar que o princípio do juiz natural se traduz no seguinte conteúdo: a) exigência de determinabilidade, consistente na prévia individualização dos juízes por meio de leis gerais, isto é, a pré-constituição do direito italiano (art. 25, CF italiana); b) garantia de justiça material (independência e imparcialidade dos juízes); c) fixação da competência, vale dizer, o estabelecimento de critérios objetivos para a determinação da competência dos juízes; d) observância das determinações de procedimentos referentes à divisão funcional interna, tal como ocorre com o Geschäfstverteilungsplan do direito alemão. [2]
Assim, aplicando tal entendimento ao grau recursal, observamos que o Juízo Natural também traz a garantia de que os litigantes devem ver seus dissídios julgados pelo Juízo legalmente competente (no caso, constitucionalmente competente); pois, seguindo o critério objetivo adotado por Chiovenda, Rosenberg, Goldschmidt e Betti, aplicada na esfera recursal, vemos que a Constituição Federal previamente já havia definido o juízo competente para conhecer do recurso, não podendo o pretor através de atos próprios e relacionados ao mérito da causa, furtar-se do dever constitucional de conhecer a matéria.
Portanto, não se desconhece, de forma alguma, a necessidade de modificação do sistema processual brasileiro, uma vez que nos encontramos em “sociedades de massa” e em uma sociedade capitalista que presa pela celeridade das decisões. E esse é o motivo para o atual estreitamento dos efeitos das relações processuais do nosso atual sistema com os efeitos produzidos no Common Law quando da atribuição de efeitos extensivos aos precedentes jurisprudenciais. Entretanto, tal necessidade precisa ser realizada de uma forma minimamente razoável que possibilite a revisão dos julgados e, principalmente, necessita ser amparada pelo povo, ou seja, precisa ser reconhecida pelos legítimos representantes do povo, que, em que pese toda divergência sobre a forma de atuação e da capacidade, é o Poder Legislativo. Por isso, necessário que tais modificações sejam realizadas após um intenso estudo e que sejam dirigidas pelo Poder Legislativo (como está acontecendo), devendo o Judiciário se pautar nos limites legais e constitucionais.
[1] As decisões do Supremo Tribunal Federal, em sentido similar ao aqui trazido – que tratavam da impossibilidade de Agravo de Instrumento contra decisões denegatórias de Recurso Extraordinário quando discorressem sobre dessemelhanças entre o caso concreto e o processo escolhido e decidido como representativo da controvérsia –, foram questionadas recentemente pelos Ministros, como se pode observar nos julgados dos Agravos Regimentais nas Reclamações nº 11408 e nº 11427. Em especial, chamamos a atenção para a manifestação da Min. Ellen Gracie, Min. Marco Aurélio e Min. Cezar Peluso. Assim, acreditamos que, com o inevitável amadurecimento das ideias por aquela Corte Suprema, ocorra uma modificação do seu posicionamento em algum tempo.
[2] O Geschäsftsverteilungsplan significa Plano de divisão de funções e, segundo a doutrina alemã, trata-se exatamente de uma forma de concretização do princípio do juiz natural.