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Argüição de descumprimento de preceito fundamental:

um estudo crítico

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01/11/2002 às 00:00
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3. O CONCEITO DE PRECEITO FUNDAMENTAL E O USO DA EXPRESSÃO "DECORRENTE" NA LEI REGULAMENTADORA

Não é uma tarefa simples delimitar-se a esfera de abrangência do termo "preceito fundamental", tanto que se constata, na doutrina, como será demonstrado neste estudo, uma total ausência de uniformidade quanto ao entendimento do que seja preceito fundamental e, especialmente, quanto à delimitação de quais preceitos têm suficiente relevância a ponto de justificar a interposição da argüição.

Para o professor Luiz Henrique Cavancanti Mélega, os preceitos fundamentais compreendem, "tanto os princípios fundamentais, como as regras de direito fundamentais inseridas na Carta Magna." [12]

Para Daniel Sarmento, " inexiste hierarquia entre as normas da Constituição, é certo que algumas são mais relevantes do que outras, desfrutando de primazia, na ordem de valores em que se esteia o direito positivo. Assim, conforme averberam Celso Bastos e Aléxis Galiás de Souza Vargas a propósito da ADPF, ‘...não se trata de fiscalizar a lesão a qualquer dispositivo da que é, sem dúvida, a maior Constituição do mundo, mas tão-somente aos grandes princípios e regras basilares deste diploma’." [13]

Inclusive, ao tecer comentários acerca dos preceitos fundamentais, este mesmo autor elogia o fato de ter restado em aberto a delimitação de quais são estes preceitos, asseverando que "ao valer-se de um conceito jurídico indeterminado, a lei conferiu uma maleabilidade maior à jurisprudência, que poderá acomodar com mais facilidade mudanças no mundo dos fatos, bem como a interpretação evolutiva da Constituição". [14]

Já Thomas da Rosa de Bustamante, sustentava que a argüição de descumprimento de preceito fundamental não poderia ter como finalidade o controle de qualquer norma insculpida na Constituição, mas apenas as normas de hierarquia axiológica superior, tais como os princípios estruturais do Estado Democrático de Direito, mas, contudo, posteriormente, veio a modificar seu posicionamento, vejamos suas palavras:

"Analisando melhor o tema, volto atrás em algumas das minhas afirmações, para admitir a fiscalização de qualquer norma constitucional, seja expressa ou implícita, através da argüição de descumprimento de preceito fundamental, tal como prevê em linhas gerais a Lei n.º 9.882/99. Com efeito, a norma constitucional regulamentada permite tal interpretação, pois, no jogo de palavras que veicula, de certo modo define como "preceito fundamental" aquele "decorrente da Constituição". Veja-se que a redação do dispositivo constitucional se refere a "preceito fundamental, decorrente desta Constituição", de modo que abre a possibilidade de interpretação no sentido defendido pelos autores da Lei 9.882/99. É perfeitamente sustentável, portanto, a utilização da argüição de descumprimento de preceito fundamental para curar a violação de qualquer norma jurídica expressa ou implicitamente consagrada no texto da Constituição da República, ainda mais porque a ação destina-se à correção de atos inconstitucionais, justificando assim uma interpretação ampliativa quanto aos pressupostos." [15]

Para o Professor JOSÉ AFONSO DA SILVA, ao analisar o dispositivo constitucional em questão, " O §1º do art. 102 contém uma disposição não muito bem redigida, tal como dizer ‘preceito fundamental decorrente da Constituição’, quando deveria apenas falar em ‘preceito fundamental da Constituição’, mas isso não infirma nem mesmo prejudica a relevância da norma, assim enunciada: a argüição de descumprimento de preceito fundamental decorrente da Constituição será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei. ‘Preceitos fundamentais’ não é expressão sinônima de ‘princípios fundamentais’. É mais ampla, abrange a estes e todas as prescrições que dão sentido básico ao regime constitucional, como são, por exemplo, as que apontam para a autonomia dos Estados, do Distrito Federal e especialmente as designativas de direitos e garantias fundamentais." [16]

Não poderíamos deixar de mencionar o posicionamento de, pelo menos, um daqueles que contribuíram na elaboração da Lei ora estudada, ou seja, Gilmar Ferreira Mendes.

Para ele, "ninguém poderá negar a qualidade de preceitos fundamentais da ordem constitucional aos direitos e garantias individuais (art. 5º, entre outros). Da mesma forma, não se poderá deixar de atribuir essa qualificação aos demais princípios protegidos pela cláusula pétrea do art. 60, § 4º, da Constituição: princípio federativo, a separação dos poderes, o voto direto, universal e secreto.

Por outro lado, a própria Constituição explicita os chamados princípios sensíveis, cuja violação pode dar ensejo à decretação de intervenção federal nos Estados-membros (Constituição Federal, art. 34).

(...) É fácil ver que a amplitude conferida às cláusulas pétreas e a idéia de unidade de Constituição (Einheit der Verfassung) acabam por colocar parte significativa da Constituição sob a proteção dessas garantias." [17] Daí alegar, este doutrinador, que, em virtude de tal abrangência, far-se-á necessária uma interpretação restritiva dessas cláusulas, admitindo, inclusive, que ainda assim, tal consideração em vez de solucionar o problema poderá agravá-lo, já que há uma tendência no sentido de uma interpretação restritiva dos próprios princípios por elas protegidos.

Como anteriormente dito, na introdução deste estudo, há doutrinadores que, dentre tantas incertezas, entendem de forma ampla o significa de preceito fundamental, citamos como exemplo o professor Sylvio Motta, in verbis:

"Entendemos como preceito fundamental todo e qualquer dispositivo constitucional que tenha natureza principiológica servindo de alicerce para qualquer uma das cadeiras de Direito contempladas pelo texto constitucional. Optamos por ousar uma interpretação extensiva em virtude da própria natureza jurídica do dispositivo que tem, inequivocamente, uma índole democrática imensurável. Mais não fosse, o instituto além de tutelar a lesão tutela também a ameaça de lesão de ato emanado de qualquer um dos poderes da República, o que, por si só, nos afigura como elemento axiológico autorizador para uma percepção assaz ampliada do conceito de preceito fundamental.

Assim, correndo o risco de sermos desmentidos pela jurisprudência futura, como preceito fundamental entendemos não apenas os Princípios Fundamentais do Título I da Carta, mas, também, os princípios atinentes aos Direitos e Garantias Fundamentais (estejam ou não localizados topograficamente no Título II); os princípios constitucionais explícitos e sensíveis relativos ao pacto federativo e a repartição de competências entre os entes federados; os princípios constitucionais norteadores da Administração Pública; as cláusulas pétreas (artigo 60, § 4°), os princípios pertinentes ao Sistema Tributário Nacional e as regras básicas sobre Finanças Públicas (Título VI); e os princípios da Ordem Econômica e Financeira, mormente os que se relacionam diretamente com os limites do Estado na intervenção na propriedade e na atividade econômica (Título VII).

Temos que estes devem ser os parâmetros para a conceituação de preceito fundamental." [18]

Contra esse tipo de posicionamento, que entende de forma ampla a delimitação de quais seriam os preceitos fundamentais, ou, pelo menos, como uma forma de ponderação, André Ramos Tavares diz que é necessário que se afastem as considerações que vêem os preceitos fundamentais como toda e qualquer norma contida na Lei Maior, dizendo que se a própria Lei delimitou os preceitos dizendo que são apenas os fundamentais, incoerente seria considerar-se todos os preceitos constitucionais. E, diz ainda, que é a fundamentalidade que diferencia estes preceitos dos demais, considerando fundamental o quando se apresentar como "imprescindível, basilar e inafastável."

Sem desmerecer o ilustre doutrinador, ousamos ponderar que esta última consideração com o intuito de esclarecer o significado de "fundamentalidade" dos preceitos, acaba mais confundindo do que elucidando, tendo em vista que as expressões "imprescindível, basilar e inafastável" são dotados de um altíssimo teor de subjetivismo, já que uma norma constitucional, de acordo com os interesses envolvidos ou, melhor, de acordo com as pessoas que se vêem espelhadas nela poderá ser diferentemente valorada ou, ainda, pela dificuldade que há na própria significação dos termos, pois o que seria, por exemplo, imprescindível ? Certamente, a resposta a essa pergunta vai assumir feições díspares, de acordo com quem a enunciar.

Para não deixarmos de mencionar algum posicionamento com base em situação mais concreta, vejamos o que disse o Ministro Néri da Silveira, quando do julgamento da ADPF n° 1, quando este citou a lição do Ministro Oscar Dias Correa no sentido de que cabe exclusiva e soberanamente ao STF conceituar o que é descumprimento de preceito fundamental decorrente da Constituição, porque promulgado o texto constitucional é ele o único, soberano e definitivo intérprete, fixando quais são os preceitos fundamentais, obediente a um único parâmetro – a ordem jurídica nacional, no sentido mais amplo. Está na sua discrição indicá-los.

Isto posto, sem querer nos furtar de expressar a nossa opinião e cientes de que estamos diante de uma conceituação por demais debatida e controversa, tendo sido demonstrada a aridez que permeia o assunto, optamos por um posicionamento razoável e, após considerarmos o ensinamento de diversos estudiosos da matéria, vislumbramos os preceitos como sendo, as regras e princípios constitucionais fundamentais (vamos, portanto, de contra aqueles que não admitem uma comparação entre princípios e preceitos, já que na Constituição estes termos estão distintamente dispostos, o que, em nosso entendimento, não implica em dizer que os preceitos não possam englobar os princípios constitucionais fundamentais, pelo contrário, eles englobam e, inclusive, é pacífico, entre os doutrinadores mais renomados, que os princípios constitucionais fundamentais expressamente previstos na constituição ou "decorrentes" dela fazem parte dos preceitos protegidos pela ADPF) explicitamente delimitados pela Constituição ou dela decorrentes, que possam traduzir a essência de todo o conjunto normativo-constitucional, no sentido de que protegem bens maiores, seja pela individual e singular importância desses bens, seja pela gravidade dos efeitos que decorreriam de seu desrespeito.

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Ora, poder-se-ia dizer que tal conceituação englobaria toda a Carta Magna já que esta, como sendo o maior instrumento de proteção dos direitos (considerados da forma mais abrangente) e por não haver hierarquia entre os seus dispositivos (pelo menos para aqueles que, assim como nós, defendem essa tese, seguindo os ensinamentos de J. J Gomes Canotilho) resguarda bens de igual importância ou, como queiram, fundamentalidade. Contudo, é ainda mais claro que quando o legislador se referiu a preceitos fundamentais, quis proteger esses bens maiores e, ainda assim, adjetivando esses preceitos, notadamente delimitou sua abrangência, restando claro que não englobariam toda a Constituição, sendo pois, restritiva a sua interpretação. Mas, saliente-se, não restritiva no sentido de minorar a elasticidade em si desses preceitos mas, a nosso ver, no sentido de tornar específico e claro qual ou quais são os preceitos a serem considerados.

Certamente a nomeação desses preceitos far-se-á ao longo dos anos, através da constante interpretação e criação do direito (como queria Hans Kelsen ao criticar o uso da terminologia "fontes do direito"), na medida em que os instrumentos de proteção da Carta Magna forem sendo utilizados, colocando em discussão, perante a nossa Corte Constitucional, a consideração dos preceitos constitucionais fundamentais.

Dito isto, passamos a tecer alguns comentários acerca da palavra "decorrente" que consta no § 1º do art. 102 da CF/88, como forma de trazer a baila outras interpretações do universo de abrangência do preceito constitucional fundamental protegido pela argüição de seu descumprimento.

Para a professora Maria Garcia, "o termo decorrente (decursivo, derivado, conseqüente, segundo o Dicionário Aurélio) faz concluir, primeiramente, pela possibilidade de localização do preceito externamente à Constituição. Porquanto, se é decorrente da Constituição não deverá estar, necessariamente, contido na Constituição. Não expressamente. E, neste particular, obrigatória se torna a lembrança do disposto no § 2º do art. 5º, o qual admite a existência de ‘outros direitos e garantias’, além daqueles expressos na Constituição, ‘decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados’ (ou dos tratados internacionais firmados)". [19]

Tal interpretação, inclusive, conta com outros apoios, como o do professor SÉRGIO RESENDE DE BARROS, quando este afirma "o que se tem em mente proteger – e isto está claro no texto constitucional – é preceito fundamental decorrente desta Constituição, o que é bem mais amplo – e, portanto, diferente – do que preceito fundamental ou preceito constitucional, mesmo se tomando esses dois últimos termos como sinônimos. Isso porque um preceito que decorre da Constituição não precisa, necessariamente, nela ser visto ou estar previsto, mas pode ser ou estar simplesmente implícito." [20]

Bustamante é outro doutrinador que acompanha este entendimento, diz ele, voltando atrás em relação a posicionamento anteriormente defendido, que admite a "fiscalização de qualquer norma constitucional, seja expressa ou implícita, através da argüição de descumprimento de preceito fundamental, tal como prevê, em linhas gerais, a Lei n.º 9.882/99. Com efeito, a norma constitucional regulamentada permite tal interpretação, pois, no jogo de palavras que veicula, de certo modo define como "preceito fundamental" aquele "decorrente da Constituição". Veja-se que a redação do dispositivo constitucional se refere a "preceito fundamental, decorrente desta Constituição", de modo que abre a possibilidade de interpretação no sentido defendido pelos autores da Lei 9.882/99.

É perfeitamente sustentável, portanto, a utilização da argüição de descumprimento de preceito fundamental para curar a violação de qualquer norma jurídica expressa ou implicitamente consagrada no texto da Constituição da República, ainda mais porque a ação destina-se à correção de atos inconstitucionais, justificando assim uma interpretação ampliativa quanto aos pressupostos." [21]

A maioria dos autores, é importante que se diga, não enfoca a questão sob esse prisma, defendem que os preceitos fundamentais, mesmo considerando a expressão "decorrentes da Constituição", não estão situados no exterior da Carta, mas dentro de seu próprio texto.

Somos do entendimento de que a expressão "decorrente" deve ser visualizada da maneira mais abrangente possível, de modo que poderão ser considerados os preceitos internos e externos a Carta, desde que, de fato, fundamentais.

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Sobre a autora
Érika da Rocha von Sohsten

acadêmica de Direito na UNIPÊ, João Pessoa (PB)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VON SOHSTEN, Érika Rocha. Argüição de descumprimento de preceito fundamental:: um estudo crítico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 60, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3370. Acesso em: 16 abr. 2024.

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