INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por objeto o estudo da estrutura e do funcionamento do Sistema Regional Africano de Proteção dos Direitos Humanos e dos Povos, este que emergiu na década de 80 e é o mais novo dos sistemas regionais de proteção dos direitos humanos.
Nesse sentido, será analisada a Carta Africana sobre Direitos Humanos e dos Povos ou Carta de Banjul, principal intrumento normativo desse sistema, esta que traz em seu bojo peculiaridades do continente africano. Em seguida, serão abordadas as Instituições de Garantia e Controle da Carta de Banjul, mais especificamente a Comissão e a Corte Africanas. A primeira, prevista pela própria Carta Africana e instituída com o objetivo de proteção e promoção dos Direitos Humanos no continente; a segunda, por sua vez, só foi instituída posteriormente pelo Protocolo adicional à Carta Africana que estabeleceu a Corte Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, com a função de reforçar a atuação da Comissão.
I- Aspectos Gerais
O incipiente Sistema Africano de Proteção dos Direitos Humanos e dos Povos emergiu na década de 80 e é o mais recente dentre os Sistemas Regionais de proteção dos direitos humanos, encontrando-se ainda em processo de implantação e consolidação.
Esse sistema detém características próprias, as quais refletem a história do continente africano, sua singularidade e complexidade, e revelam, conforme menciona Flávia Piovesan, a luta da África pela descolonização, pela autodeterminação dos povos, pelo respeito às diversidades culturais e às tradições africanas e pela sobrevivência em meio a tamanhas violações aos direitos humanos.[1]
Nesse contexto, ensina Fabiana Gondinho:
A África sempre enfrentou um especial obstáculo para a promoção e o estabelecimento de um sistema regional efetivo de proteção aos direitos humanos: a falta de homogeneidade política. Não se pode negar que, na Europa e nas Américas, a existência de democracias fortes e consolidadas tem oferecido solo fértil para a concretização de ideais mais universais de proteção humana. A histórica escassez de recursos financeiros na África é o outro grande fator que dificulta enormemente o estabelecimento de um nível mínimo e real de proteção e de dignidade para as pessoas, ainda que se desenvolva a consciência em torno desses direitos. Essa dura realidade constitui o cenário em vista do qual os direitos e os deveres estabelecidos pela Carta Africana devem ser analisados.[2]
Com efeito, para compreender o Sistema Africano é preciso considerar as suas especificidades e dificuldades, tais quais a falta de homogeneidade política, a escassez de recursos em meio a um cenário de grave conflituosidade interna, o respeito às diversidades culturais e às tradições africanas.
II- A Carta Africana Sobre Direitos Humanos e dos Povos
A Carta Africana sobre Direitos Humanos e dos Povos ou Carta de Banjul é o principal instrumento normativo do Sistema Regional Africano, e foi adotada em 1981 pela Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da Organização da Unidade Africana (atual União Africana), entrando em vigor apenas em 1986. Atualmente, a referida Carta detém a ratificação de 53 Estados da União Africana e o único a não assiná-la nem ratificá-la é o Sudão do Sul.[3]
De forma não surpreendente, dada a história de exploração da África, a Carta de Banjul reflete de diversas formas, inclusive no próprio significado atribuído aos direitos humanos nesse continente, as lutas dos povos africanos em face da escravidão e do colonialismo; ao reconhecer, por exemplo, o direito à autodeterminação dos povos.[4]
Ocorre que as lutas do continente africano em prol dos direitos humanos estão longe de terminarem. São inúmeras as violações ainda ocorridas na África, e frequentemente em escalas massivas. De forma que o próprio processo para estabilizar efetivas estruturas institucionais que garantam a consolidação e proteção das conquistas alcançadas nas lutas por liberdade do passado se tornou uma luta em si mesmo.[5]
Por tais razões, a Carta de Banjul não só reconhece direitos humanos já previstos por outros instrumentos de proteção, mas também inova ao trazer em seu bojo algumas particularidades do direito regional africano.
Essas particularidades são perceptíveis desde o preâmbulo da Carta e a distanciam dos outros instrumentos de proteção dos direitos humanos. A começar pela sua inspiração baseada nas tradições locais e nos valores da civilização africana, ao que se unem, explica Flávia Piovesan:
O processo de libertação da África, a luta por independência e dignidade dos povos africanos, o combate ao colonialismo e neocolonialismo, a erradicação do apartheid, do sionismo e de todas as formas de discriminação.[6]
Outra especificidade que caracteriza a Carta de Banjul e que pode ser observada já em seu preâmbulo é a menção ao fato de existirem direitos dos povos e de que estes devem ser respeitados, de maneira a necessariamente garantir os direitos humanos.
Diante disso, claramente se percebe que boa parte dessa motivação em reconhecer “direitos dos povos” está debruçada no fato de que povos inteiros foram colonizados e explorados de diversas formas, ao longo da história do continente africano.[7]
Com efeito, a Carta de Banjul de fato denota uma ótica coletivista ao atentar para os direitos dos povos e com isso refletir a realidade africana. O que a distancia das Convenções Europeia e Americana, por exemplo, cujas perspectivas são liberais individualistas, voltadas para os direitos civis e políticos nelas compreendidos.
Outra singularidade presente na Carta Africana e perceptível em seu preâmbulo é o fato de que esta abrange em seu âmbito de proteção não apenas direitos civis e políticos, mas também direitos econômicos, sociais e culturais; com a expressa previsão de que tais direitos são indissociáveis e de que a satisfação dos últimos garante o gozo dos primeiros.
No que tange aos direitos civis e políticos, a Carta de Banjul não se distancia dos demais instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos e prevê em seu corpo, entre os artigos 3º e 14, os direitos chamados de “primeira geração”, tais quais a igualdade; o direito à integridade física e moral; o direito à vida; a dignidade da pessoa humana e a proibição de tortura e tratamentos desumanos; a liberdade e a segurança; a proteção judicial; o direito à liberdade de consciência, religião e profissão; o direito à informação e à opinião; o direito de associação; o direito de reunião; a liberdade de locomoção; o direito à participação política; e o direito de propriedade.
Por outro lado, algumas lacunas podem ser observadas na Carta Africana com relação aos direitos civis e políticos. Nesse sentido, Christof HEYNS e Magnus KILLANDER apontam que, por exemplo, o direito à privacidade e a proibição ao trabalho forçado não são explicitamente mencionados na Carta; como também o direito a um julgamento justo e os direitos a participação política recebem escassa proteção em detrimento dos parâmetros internacionais. Todavia, complementam tais autores, a Comissão tem interpretado a Carta, através de suas resoluções, no sentido de abranger alguns direitos ou determinados aspectos de direitos não explicitamente por ela contemplados.[8]
Ainda no que diz respeito aos direitos civis e políticos, observa Fabiana Gondinho que:
O direito à livre participação nos governos dos países, por sua vez, aparece como um reflexo da fragilidade política do continente africano, e essa busca pelo efetivo exercício da cidadania pelos seus indivíduos é fortalecida pelas liberdades de reunião e associação, que também se encontram na Carta, assim como pelos direitos à educação e à participação na vida cultural das comunidades.[9]
Quanto aos direitos econômicos, sociais e culturais, como já mencionado, é uma inovação da Carta Africana trazê-los ao lado dos direitos ditos de “primeira geração”. Por outro lado, apenas alguns direitos chamados de “segunda geração” são expressamente reconhecidos pela Carta. Senão veja-se.
Os direitos econômicos, sociais e culturais são contemplados apenas nos artigos 15, 16 e 17 da Carta de Banjul, garantindo, respectivamente, o direito ao trabalho em condições equitativas, o direito à saúde e o direito à educação.
Ainda acerca de tais direitos, Christof Heyns e Magnus Killander ressaltam a importante decisão da Comunicação nº 155/96 (Social and Economic Rights Action Center (SERAC) e Center for Economic and Social Rights (CESR) v. Nigéria, em que a Comissão Africana sustentou a presença implícita do direito à habitação ou à moradia, que deveriam ser depreendido dos direitos à saúde, à propriedade e à vida em família, explicitamente previstos na Carta. Da mesma forma, o direito à alimentação deveria ser interpretado a partir do direito à dignidade e outros direitos.[10]
Nesse sentido, complementam os supracitados autores, essa decisão da Comissão pode ser vista como um grande e corajoso passo no processo de preenchimento das lacunas da Carta Africana, mas também, a partir dela pode se dar margem à discussão de que uma vasta divergência entre a interpretação dada pela Comissão e a própria letra da Carta certamente comprometeria a legalidade desta.[11]
Por fim, a Carta de Banjul inova ao estabelecer deveres dos indivíduos perante a sociedade, a família, o Estado e outras coletividades, e a comunidade internacional, os quais estão dispostos entre os artigos 27 e 29. Nesse sentido, explica Fabiana Gondinho:
A Carta Africana foi o primeiro instrumento de direitos humanos a incluir em seu texto os deveres dos indivíduos perante o Estado, a sociedade, a família e a comunidade internacional. Esses deveres são delimitados de forma sistemática, mas também genérica, e visam ao bom desenvolvimento social, cultural, e à manutenção da ordem nas comunidades africanas, guardando muitos deles estreita relação com os valores africanos que a Carta se propõe a refletir.[12]
De acordo com a Carta Africana, o respeito aos direitos de outrem, à segurança coletiva, à moral e ao interesse comum é o meio pelo qual cada indivíduo pode exercer seus próprios direitos e liberdades. Trata-se de um limite aos direitos humanos previstos na Carta. Logo, os deveres ali contemplados devem ser entendidos como limites aos direitos humanos, estes inerentes ao homem pelo simples fato de ser humano.
Ademais, a Carta prevê o dever dos indivíduos de respeitar o semelhante, de manter relações harmoniosas que promovam a tolerância e a não discriminação. Da mesma forma, devem zelar pela família, por sua coesão e respeito, como também devem sempre respeitar os pais e sustentá-los caso necessário.
Perante o Estado, a Carta Africana estabelece expressamente determinadas condutas a serem praticadas pelos indivíduos, tais quais servir a comunidade nacional com suas capacidades físicas e intelectuais; não comprometer a segurança do Estado de sua nacionalidade ou residência; preservar a solidariedade social e nacional; preservar e reforçar a integridade e a independência nacionais, contribuindo para a defesa do seu país; trabalhar para salvaguardar os interesses fundamentais da sociedade; zelar pela preservação e reforço da cultura africana; e contribuir para a promoção e realização da Unidade Africana.
III- As Instituições de Garantia e de Controle da Carta Africana
Desde a elaboração da Carta de Banjul, o Sistema Regional Africano se estruturou principalmente na Comissão Africana dos direitos humanos e dos povos, a qual fora instituída com a própria Carta. De tal forma que a ausência de um órgão jurisdicional, como nos sistemas americano e europeu que à época eram constituídos pela Comissão e pela Corte, é apontada como uma das principais causas da fragilidade e das limitações na eficácia da proteção dos direitos humanos na África.[13]
A Corte Africana dos direitos humanos e dos povos foi instituída pelo Protocolo adicional à Carta de Banjul, o qual só entrou em vigor no ano de 2003, quando obteve o número mínimo de ratificações previstas em seu texto. Entretanto, a Corte só iniciou a sua atuação em 2006, possibilitando uma maior eficácia da proteção dos direitos humanos nesse continente.
a) Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos
A Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos povos foi instituída pela própria Carta de Banjul, nos termos do seu artigo 30, como medida de salvaguarda, com a finalidade de promover os direitos humanos e dos povos e de assegurar a sua eficácia no continente africano.
Como disposto no texto da Carta, a Comissão é composta por 11 membros, nacionais de diferentes Estados africanos, escolhidos a partir de uma lista de nomes elaborada pelos Estados-partes, dentre pessoas reconhecidas por sua elevada moralidade e consideração, além da sua integridade, imparcialidade e de seu notado conhecimento acerca dos direitos humanos e dos povos. Os membros da Comissão são eleitos pela Conferência dos Chefes de Estado e de Governo, em escrutínio secreto, para um mandato de seis anos, renovável.
A Carta ressalta ainda que as funções dos membros da Comissão devem ser desempenhadas a título pessoal, não podendo estar vinculados a Estado algum. Entretanto, conforme dispõe Rachel Murray:
A Comissão para atuar de forma efetiva, tem de ser independente dos Estados. Contudo, ao longo de sua história, vários dos seus 11 membros têm tido conhecidas conexões com governos, alguns sendo inclusive embaixadores.[14]
No que tange às competências da Comissão, dispõe Flávia Piovesan:
Quanto às suas competências, cabe à Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos promover os direitos humanos e dos povos; elaborar estudos e pesquisas; formular princípios e regras; assegurar a proteção dos direitos humanos e dos povos; recorrer a métodos de investigação; criar relatorias temáticas específicas; adotar resoluções no campo dos direitos humanos; e interpretar os dispositivos da Carta. Compete-lhe ainda apreciar comunicações interestatais (nos termos dos artigos 47 e 49 da Carta), bem como petições encaminhadas por indivíduos ou ONGs que denunciem violação aos direitos humanos e dos povos enunciados na Carta (nos termos dos artigos 55 a 59 da Carta). Em ambos os procedimentos, buscará a Comissão o alcance de uma solução amistosa. [15]
Além disso, complementa a supracitada autora, a Comissão Africana é responsável por “apreciar relatórios a serem enviados pelos Estados Partes, a cada 2 anos, a respeito das medias legislativas e outras adotadas cm vistas a efetivar os direitos e liberdades garantidos pela Carta”.[16]
Ademais, é válido ressaltar que apesar de ser considerado um órgão político, a Carta Africana atribuiu à Comissão a competência interpretativa, função esta típica dos órgãos jurisdicionais nos sistemas americano e europeu, através da qual cabe à Comissão interpretar todos os dispositivos da Carta, quando requisitada por um Estado-parte, por uma instituição da União Africana ou por uma Organização Africana reconhecida pela UA.[17]
As violações à Carta Africana podem ser encaminhadas à Comissão através de comunicações elaboradas pelos Estados-partes ou pelos próprios indivíduos, estas últimas que serão objeto do próximo capítulo. As comunicações individuais não estão expressamente previstas na Carta, entretanto, a Comissão tem recebido tais comunicações sob o argumento do artigo 55, o qual dispõe acerca das comunicações não emanadas por Estados Partes. A interpretação dada ao mencionado artigo é ampla, no sentido de que tem-se admitido também reclamações advindas de organizações não governamentais e outras associações ou grupos de pessoas, representando as vítimas da violação de direitos humanos. Assunto este que será mais detalhado no capítulo seguinte.[18]
Assim como nos demais sistemas regionais, no sistema africano alguns requisitos de admissibilidade são traçados pela Carta de Banjul para que a Comissão conheça as comunicações. Um deles é o prévio esgotamento dos recursos internos, o qual pressupõe que o caso tenha chegado a mais alta Corte nacional e não tenha obtido sucesso ou ao menos uma perspectiva de sucesso, salvo se comprovado o prolongamento injustificado do processo.
A Carta prevê outros critérios de admissibilidade, os quais serão detalhados no capítulo que segue, tais quais a indicação da identidade do autor; a ausência de insultos para com o Estado impugnado; não se utilizar exclusivamente de notícias difundidas pelos meios de comunicação em massa; apresentar a reclamação em prazo razoável, este que não está expressamente previsto na Carta de Banjul, mas como será visto adiante, tem analisado caso a caso pela Comissão; não haver litispendência internacional.
Recebida a reclamação pela Comissão, o Estado impugnado é chamado para responder às alegações; e caso não se manifeste, a Comissão decidirá com base nos fatos apresentados na reclamação.
Assim, se a decisão for no sentido de que de fato houve violação ou violações aos direitos previstos na Carta africana, a Comissão enviará recomendações ao Estado culpado para que sejam cessadas as violações, ou para que realizem mudanças em leis específicas. Alguns Estados cumprem as recomendações e tomam as providências cabíveis, outros, no entanto, as desprezam, uma vez que as decisões da Comissão não são jurídico-vinculativas.
Por fim, a Carta Africana não previu em seu texto original a instituição de um órgão jurisdicional que complementasse a atuação da Comissão. Tal fato diferencia o sistema africano dos sistemas regionais americano e europeu, e apresenta-se como um dos principais fatores que contribuíram para a debilidade desse sistema, quando comparado aos demais.
b) Corte Africana dos Direitos Humanos e dos Povos
Muitas especulações são feitas acerca dos motivos pelos quais a Carta Africana, em seu texto original, previu apenas uma Comissão, e não uma Corte, como órgão responsável pelo monitoramento da observância dos Estados-partes em relação à Carta. De um lado, a explicação idealista de que a forma tradicional de resolução de conflitos na África é através da mediação e da arbitragem, e não por meio do sistema competidor e rival de uma Corte. Do outro lado, o ponto de vista dos Estados membros que haviam recentemente entendido e experimentado o que é soberania e a ameaça que a implementação de uma Corte seria.[19]
Com efeito, o Protocolo à Carta de Banjul que objetivava a criação da Corte Africana dos Direitos Humanos e dos Povos foi adotado em 1998, na Etiópia, entrando em vigor em janeiro de 2004, quando obteve o depósito da 15ª ratificação, conforme previsto em seu texto.
Entretanto, o reconhecimento da jurisdição da Corte Africana persiste como um grave problema, visto que até a presente data apenas 26[20] Estados da União Africana ratificaram o Protocolo.
No que tange à sua composição, de acordo com o artigo 11 do Protocolo, a Corte será composta por 11 magistrados e estes devem ser nacionais de Estados membros da União Africana, não podendo haver dois juízes nacionais de um mesmo Estado. Ademais, a indicação será feita a partir de uma lista de nomes elaborada pelos Estados partes do Protocolo, tomando como base pessoas de alta moral e notadas competência e prática na área dos direitos humanos e direitos dos povos.
A escolha será feita pela Assembleia de Chefes de Estado e de Governo da União Africana, por meio de votação secreta, e o mandato será de seis anos, renovável. Os juízes eleitos devem atuar com independência e imparcialidade, observando sempre os limites do Direito Internacional, conforme disposto no artigo 17 do Protocolo. Para tanto, no exercício de suas funções, a eles são atribuídas as imunidades relativas aos agentes diplomáticos, de acordo com as normas do Direito Internacional.
A Corte Africana foi instituída no sentido de complementar e fortalecer a atuação da Comissão na proteção dos direitos humanos e dos povos contemplados pela Carta de Banjul, garantindo maior formalidade e legalidade ao sistema, conforme disposto no próprio preâmbulo do Protocolo. Como explica Flávia Piovesan:
Daí a criação da Corte Africana, como órgão jurisdicional supranacional a aprimorar e fortalecer os mecanismos de proteção dos direitos previstos na Carta, uma vez que a Comissão tem sido vista mais como órgão de promoção, mediação e reconciliação e, no máximo, como órgão “quase judicial”.[21]
Diante disso, a Corte Africana cumula as competências consultiva e contenciosa. Quanto à competência consultiva, cabe à Corte emitir opiniões motivadas acerca da interpretação da Carta de Banjul ou de qualquer outro documento internacional de direitos humanos que tenha caráter relevante, como disposto no artigo 4º do Protocolo. Ademais, a legitimidade para o mencionado procedimento de consulta é atribuída aos Estados-membros da União Africana, à própria União Africana e a quaisquer de seus órgãos, e às organizações africanas reconhecidas pela UA.
Nesse sentido, dispõe Fabiana Gondinho:
A forma de harmonização dessa competência da Corte com a similar competência até então exercida pela Comissão foi indicada pelo próprio protocolo, que determina que a opinião da Corte se dará sobre as questões especificadas em seu artigo 4, I, desde que tais questões não estejam relacionadas com outras já em exame pela Comissão. Pelo que se pode compreender, a ideia predominante deve ser a de respeito entre os dois órgãos, lembrando-se sempre que a atuação da Corte deve ser complementar, e não substituir, o mandato da Comissão.[22]
No que tange à competência contenciosa da Corte Africana, esta deverá julgar os litígios buscando sempre uma solução amistosa. Quanto aos peticionários, o artigo 5º do Protocolo estabelece que poderão enviar demandas a serem apreciadas pela Corte: a Comissão, o Estado Parte que tenha apresentado reclamação para a Comissão, o Estado Parte em face de quem a reclamação foi apresentada, o Estado-parte cujo cidadão tenha sido vítima de violação de direitos humanos, e as organizações intergovernamentais africanas.
Entretanto, o Protocolo faz a ressalva de que demandas elaboradas diretamente por indivíduos e por ONGs poderão ser aceitas pela Corte Africana, desde que o Estado-parte contra quem a petição foi elaborada, tenha aceitado a jurisdição da Corte para tal fim, através da declaração facultativa prevista nos artigos 5º (3) e 34 (6).
Muitos são os desafios a serem enfrentados pela Corte Africana, nesse sentido bem resume Flávia Piovesan:
Com efeito, a credibilidade da nova Corte estará condicionada ao enfrentamento desses desafios, que compreendem a maior aceitação de sua jurisdição pelos Estados, com a ampla ratificação do Protocolo; a independência e a integridade de sua atuação; a sua relação com a Comissão, de forma a conferir maior eficácia ao sistema de proteção dos direitos humanos e dos povos consagrado na Carta; a insuficiência e precariedade dos recursos financeiros disponíveis; e o devido cumprimento de suas decisões pelos Estados-partes, que ainda experimentam os dilemas de consolidação do regime democrático e do Estado de Direito no âmbito interno. [23]
A criação da Corte Africana, no sentido de complementar a atuação da Comissão, foi um grande passo para a legalidade e para o fortalecimento do Sistema Regional Africano e, consequentemente, para a proteção dos direito humanos nesse continente; mas para que de fato a Corte cumpra o seu papel, um mínimo é necessário, qual seja o reconhecimento da sua jurisdição pelos Estados Partes da União Africana.
c) Corte Africana de Justiça e Direitos Humanos
Em julho de 2000, foi aprovado o Ato Constitutivo da União Africana (UA), visando fortalecer a Comunidade Econômica Africana e substituir a antiga Organização da Unidade Africana (OUA); além de trazer em seu bojo a previsão de uma Corte de Justiça da União Africana, a qual só fora efetivamente instituída em julho de 2003, através do Protocolo da Corte de Justiça da União Africana.
Em julho de 2008, entretanto, foi adotado o Protocolo referente ao Estatuto da Corte Africana de Justiça e Direitos Humanos, a qual resulta da fusão da Corte Africana de Justiça da União Africana com a Corte Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.[24]
Ocorre que, o supracitado Protocolo só entrará em vigor trinta dias após o depósito da 15ª ratificação de um Estado-membro, e até a presente data esse número não foi atingido. Assim, a Corte Africana dos Direitos Humanos e dos Povos continua atuando nesse período transitório até que seja efetivamente instituída a nova Corte Africana de Justiça e Direitos Humanos.