Sucessão na união estável

Ponderações a respeito do Art. 1790, do Código Civil

26/11/2014 às 16:17
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O presente artigo tem por escopo analisar a sucessão na união estável, a luz do art. 1790, do Código Civil.

I           INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objetivo discorrer sobre o art. 1790, do Código Civil, que trata da sucessão na união estável, bem como traçar as principais questões que o envolvem.

II          UNIÃO ESTÁVEL: EVOLUÇÃO HISTÓRICA E CONCEITO

Durante longo período histórico, a união entre o homem e a mulher, sem casamento, por longo de período de tempo, foi chamada concubinato. Porém, por ser considerada união “imoral”, apenas recentemente foi regulamentada.

O fato é que as também chamadas “uniões livres” existem há séculos, desde a Grécia antiga, passando pela Idade Média até os dias atuais.

O Código Civil de 1916 pouco tratava a respeito do concubinato e da união estável. Suas disposições a respeito do tema limitava ainda mais a união fora do casamento, em vez de regulamentá-la.

Foi a legislação previdenciária que começou a admitir alguns direitos das concubinas. Como a lei nada dispunha, a jurisprudência necessitou regulamentar o tema.

O Tribunal de Justiça de São Paulo iniciou o reconhecimento da união estável no âmbito dos tribunais. Consequentemente, os demais tribunais também trataram do tema, até que o Supremo Tribunal Federal, em 1964, editou a súmula 380, nos seguintes termos:

“Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum.”

A jurisprudência passou, então, a aplicar as restrições do Código Civil de 1916 apenas ao concubinato adulterino (também chamado de concubinato impuro), começando a diferenciar a concubina da companheira.

Apenas na Constituição Federal de 1988 que houve mudança no tratamento do concubinato, passando a denominar de união estável, nos casos em que não havia impedimentos para o casamento. A partir de então a união estável foi considerada entidade familiar pela lei.

Além da Constituição, duas leis regulamentaram a união estável, antes do Código Civil de 2002: a Lei n. 8.971, de 1994, que definiu a união estável, impondo requisitos para sua configuração e a Lei n. 9.278, de 1996, modificando o conceito da legislação anterior.

A Lei n. 8.971, de 29 de dezembro de 1994, dispunha:

“Art. 1º A companheira comprovada de um homem solteiro, separado judicialmente, divorciado ou viúvo, que com ele viva há mais de cinco anos, ou dele tenha prole, poderá valer-se do disposto na Lei nº 5.478, de 25 de julho de 1968, enquanto não constituir nova união e desde que prove a necessidade.

Assim, referida lei colocava o prazo mínimo de cinco anos para a união, incluindo como requisito, também, o homem e a mulher que mantinham união comprovada, na qualidade de solteiros, separados judicialmente, divorciados ou viúvos.

Já a Lei n. 9.278, de 10 de maio de 1996, alterou esse conceito, disciplinando:

“Art. 1º É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família.”

Esta lei regulamentou o art. 226, §3º, da Constituição Federal, dispondo sobre a união estável. A referida lei tratou, inclusive, da meação dos bens entre os companheiros, após o término da união.

O Código Civil de 2002, por sua vez, operou significativa mudança no campo da união estável. As questões patrimoniais e sucessórias referentes ao companheiro foram reguladas pelo novo diploma.

III         A DISCIPLINA DA UNIÃO ESTÁVEL NO CÓDIGO CIVIL DE 2002 E AS DIFERENÇAS EM RELAÇÃO AO CASAMENTO

O Código Civil de 2002 tratou da sucessão na união estável no Capítulo I, intitulado Disposições Gerais, e não no capítulo referente à vocação hereditária, em que dispôs sobre a sucessão do cônjuge.

Dispõe o art. 1790:

Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:

I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;

II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;

III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;

IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.

Assim, o artigo citado acima restringe a sucessão do companheiro aos bens que tenham sido adquiridos onerosamente na vigência da união estável. Difere, nesse ponto, da sucessão do cônjuge, porque nesta não se tem limitação aos bens adquiridos onerosamente.

Em verdade, na comparação dos dois institutos, sendo tanto a união estável quanto o casamento no regime de comunhão parcial de bens, e no tocante aos bens adquiridos onerosamente durante a vigência do casamento ou da união estável, o cônjuge não terá direito à concorrência com os filhos, enquanto o companheiro terá participação, conforme se infere do art. 1790, inciso I e do art. 1829, inciso I, ambos do Código Civil.

Ademais, o inciso I garante ao companheiro quota equivalente à do filho comum; já o inciso II garante a metade do que couber a cada herdeiro, quando o companheiro concorrer com filhos somente do autor da herança.

Outra diferença no tratamento do companheiro e do cônjuge ocorre nos incisos III e IV do art. 1790. No inciso III, o companheiro concorre com os demais parentes sucessíveis, ou seja, ascendentes e colaterais. No que diz respeito ao casamento, o cônjuge concorre com os ascendentes, mas precede aos colaterais. Somente se não houver outros parentes sucessíveis é que o companheiro terá direito à totalidade da herança.

Ao contrário do que acontece com o cônjuge, o companheiro terá direito a mesma quota que o tio-avô, por exemplo, do de cujus. Contrariando ainda a sucessão dos cônjuges, somente terá direito à totalidade da herança se não houver qualquer parente sucessível, incluindo aqui colaterais até quarto grau.

IV        CRÍTICAS À DISCIPLINA DA SUCESSÃO NA UNIÃO ESTÁVEL

A disciplina da sucessão na união estável tem sido alvo de críticas, inclusive sendo questionada a inconstitucionalidade do art. 1790, pelas razões que serão expostas a seguir.

Num primeiro momento, analisando o caput do art. 1790, se discute a inconstitucionalidade do dispositivo tendo em vista a possibilidade do companheiro ter mais direitos do que o cônjuge.

A respeito desse tema, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:

(E) UNIÃO ESTÁVEL - APLICAÇÃO DO REGIME DE COMUNHÃO PARCIAL DE BENS - DIREITO DAS SUCESSÕES - RECURSO ESPECIAL - INVENTÁRIO - DE CUJUS QUE, APÓS O FALECIMENTO DE SUA ESPOSA, COM QUEM TIVERA UMA FILHA, VIVIA EM UNIÃO ESTÁVEL HÁ MAIS DE 30 ANOS COM SUA COMPANHEIRA, SEM CONTRAIR MATRIMÔNIO - INCIDÊNCIA, QUANTO À VOCAÇÃO HEREDITÁRIA, DA REGRA DO ART. 1.790 DO CC/2002 - ALEGAÇÃO, PELA FILHA, DE QUE A REGRA É MAIS FAVORÁVEL PARA A CONVIVENTE QUE A NORMA DO ART. 1.829, INCISO I, DO CC/2002, QUE INCIDIRIA CASO O FALECIDO E SUA COMPANHEIRA TIVESSEM SE CASADO PELO REGIME DE COMUNHÃO PARCIAL -AFIRMAÇÃO DE QUE A LEI NÃO PODE PRIVILEGIAR A UNIÃO ESTÁVEL, EM DETRIMENTO DO CASAMENTO.

- O art. 1.790 do CC/2002, que regula a sucessão do de cujus que vivia em Comunhão Parcial com sua companheira, estabelece que esta concorre com os filhos daquele na herança, calculada sobre todo o patrimônio adquirido pelo falecido durante a convivência. A regra do art. 1.829, inciso I, do CC/2002, que seria aplicável caso a companheira tivesse se casado com o de cujus pelo Regime da Comunhão Parcial de Bens, tem interpretação muito controvertida na doutrina, identificando-se 3 correntes de pensamento sobre a matéria: 1 - a primeira, baseada no Enunciado nº 270 das Jornadas de Direito Civil, estabelece que a sucessão do cônjuge, pela Comunhão Parcial, somente se dá na hipótese em que o falecido tenha deixado bens particulares, incidindo apenas sobre esses bens; 2 - a segunda, capitaneada por parte da doutrina, defende que a sucessão na Comunhão Parcial também ocorre apenas se o de cujus tiver deixado bens particulares, mas incide sobre todo o patrimônio, sem distinção; 3 - a terceira defende que a sucessão do cônjuge, na Comunhão Parcial, só ocorre se o falecido não tiver deixado bens particulares. Não é possível dizer, aprioristicamente e com as vistas voltadas apenas para as regras de sucessão, que a União Estável possa ser mais vantajosa em algumas hipóteses, porquanto o casamento comporta inúmeros outros benefícios cuja mensuração é difícil. É possível encontrar, paralelamente às 3 linhas de interpretação do art. 1.829, inciso I, do CC/2002 defendidas pela doutrina, uma quarta linha de interpretação que toma em consideração a vontade manifestada no momento da celebração do casamento como norte para a interpretação das regras sucessórias. Impositiva a análise do art. 1.829, inciso I, do CC/2002, dentro do contexto do sistema jurídico, interpretando o dispositivo em harmonia com os demais que enfeixam a temática, em atenta observância dos princípios e diretrizes teóricas que lhe dão forma, marcadamente a dignidade da pessoa humana, que se espraia, no plano da livre manifestação da vontade humana, por meio da autonomia privada e da consequente autorresponsabilidade, bem como da confiança legítima, da qual brota a boa-fé; a eticidade, por fim, vem complementar o sustentáculo principiológico que deve delinear os contornos da norma jurídica.

Até o advento da Lei nº 6.515/1977 (Lei do Divórcio), vigeu no Direito brasileiro, como regime legal de bens, o da Comunhão Universal, no qual o cônjuge sobrevivente não concorre à herança por já lhe ser conferida a meação sobre a totalidade do patrimônio do casal; a partir da vigência da Lei do Divórcio, contudo, o regime legal de bens no casamento passou a ser o da Comunhão Parcial,

o que foi referendado pelo art. 1.640 do CC/2002. Preserva-se o Regime da Comunhão Parcial de Bens, de acordo com o postulado da autodeterminação, ao contemplar o cônjuge sobrevivente com o direito à meação, além da concorrência hereditária sobre os bens comuns, mesmo que haja bens particulares, os quais, em qualquer hipótese, são partilhados apenas entre os descendentes. Recurso Especial improvido. (STJ - 3ª T.; REsp nº 1.117.563-SP; Rel. Min. Nancy Andrighi; j. 17/12/2009; v.u.) BAASP, 2690/625-m, de 26.7.2010 (grifo nosso)

Quanto à constitucionalidade do caput do art. 1790, decidiu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 1.790 CAPUT DO CÓDIGO CIVIL. TRATAMENTO DISTINTO PARA DIREITOS SUCESSÓRIOS DE COMPANHEIRO. O art. 226, §3º da Constituição Federal estabelece que para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão, numa eloqüente demonstração que o casamento e a união estável não são iguais para todos os efeitos, ou mesmo para os efeitos patrimoniais e sucessórios; senão era desnecessário converter a união em casamento. Não possível converter uma coisa em outra, a menos que sejam desiguais. O propósito foi proteger e não igualar as duas modalidades. Assim, se é constitucional essa diferenciação no casamento, não se poderia supor inconstitucional a opção legislativa de criar regime próprio, como fez o Código Civil. Inexistência de vício de inconstitucionalidade no disposto no art. 1.790 do CC. Incidente de inconstitucionalidade julgado improcedente, por maioria. (Incidente de Inconstitucionalidade Nº 70055441331, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marco Aurélio Heinz, Julgado em 24/02/2014)

Ademais, há momentos em que o cônjuge possui mais direitos do que o companheiro, conforme se verifica, por exemplo, nos incisos III e IV do art 1790, se comparado ao art. 1829, ambos do Código Civil. Não há que se falar, portanto, em vantagem do companheiro em relação ao cônjuge.

Outra discussão a respeito do art. 1790 é sobre o inciso III e IV. Alguns autores defendem a inconstitucionalidade do artigo, alegando que fere o princípio da igualdade proclamado no art. 226, §3º, da Constituição Federal.

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A grande crítica se dá diante da posição inferior que foi dada ao companheiro no tocante à participação na herança quando em concorrência com demais parentes sucessíveis.

Considerando os ascendentes, a disciplina da união estável se aproxima do cônjuge. Mas, em relação aos colaterais, o art. 1790 coloca o companheiro em flagrante situação de inferioridade, tendo em vista que só permite a totalidade da herança se não houver qualquer parente sucessível, incluindo os colaterais até quarto grau; no caso do cônjuge, este aparece em terceiro na vocação hereditária, após os ascendentes, e precedendo aos colaterais.

Não há justificativa para colocar o companheiro após os colaterais. A partir desse dispositivo, o companheiro, que muitas vezes viveu todo o tempo ao lado do de cujus, como se casado fosse, passa a ter seus direitos equiparados a um tio-avô, por exemplo.

Nessa linha, pondera Silvio Rodrigues  (2003; p. 119), em seu livro Direito Civil: Direito das Sucessões:

Nada justifica colocar-se o companheiro sobrevivente numa posição tão acanhada e bisonha na sucessão da pessoa com quem viveu pública, contínua e duradouramente, constituindo uma família, que merece tanto reconhecimento e apreço, e que é tão digna quanto a família fundada no casamento.

Atualmente, o Superior Tribunal de Justiça começou a julgar o incidente de inconstitucionalidade dos incisos III e IV do art. 1790, bem como o Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral do tema, em Recurso Extraordinário.

V         CONCLUSÃO

Há muita discussão a respeito do art. 1790 do Código Civil, inclusive quanto a sua constitucionalidade. Como o tema será tratado pelos Tribunais Superiores, resta esperar a solução que será encontrada para o tema.

VI         REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Direito de Família. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. 5 v.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Direito de Família. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Direito das Sucessões. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Direito das Sucessões. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

CAMPOS, Patrícia Eleutério. A união estável e o novo Código Civil: uma análise evolutiva. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 89, 30 set. 2003. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/4342>. Acesso em: 10 nov. 2014.

QUARANTA, Roberta Madeira; CIRÍACO, Patrícia Karinne de Deus. O tratamento do companheiro no Direito das Sucessões: inconstitucionalidade ou opção legislativa?. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3177, 13 mar. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/21277>. Acesso em: 10 nov. 2014.             

REIS, Raphael Silva. A sucessão na união estável: a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 16,n. 3011, 29 set. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/20100>. Acesso em: 10 nov. 2014.

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Sobre a autora
Laís Farinelli Menusi

Estudante de Direito na Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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