Introdução
Quando se pensa em recusa de tratamento médico ainda que em iminente perigo de vida ligamos tal assunto à recusa de membros da religião Testemunhas de Jeová a ter sangue transfundido em suas veias. Em vez de confrontarmos os argumentos meramente pessoais contrários a esta posição, muitos deles eivados de ignorância ou má-fé, iremos nos ater a aspectos éticos e jurídicos.
Será realmente que o direito à vida é tão absoluto ao ponto do Estado ter como função preservá-la a todo custo? Faz realmente parte da função estatal influir nas escolhas individuais de cada ser humano na sociedade? Podemos falar de conflito de princípios fundamentais quando estes dizem respeito a um único sujeito ativo?
Analisaremos à seguir cada um destes pontos, culminando com a análise da referencia que o Código Penal faz a respeito da excludente de tipicidade do constrangimento ilegal, conforme previsto no artigo 146, § 3º, inciso I.
Análise Constitucional
A nossa Carta Magna já em seu Preâmbulo contém declaração dos constituintes onde afirmam promulgá-la sob a proteção de Deus. No artigo 5º os incisos VI e VIII falam, respectivamente, da liberdade de consciência e da não privação de direitos por motivo de crença religiosa.
Segundo a liberdade de consciência, cada qual segue a diretriz de vida conveniente desde que não seja ilícita. Sem liberdade de consciência não há sentido em exercer as demais liberdades de pensamento, pois ela vai muito além de ter o direito em acreditar em algo, mas também o de expressar e exercer os preceitos da convicção professada em qualquer lugar ou condição em que se encontre. Quando se impõe uma atitude que vai de encontro a essa liberdade de exercer a convicção religiosa estaremos diante de uma violação de um ou dois princípios fundamentais.
Quando se rejeita um tratamento médico por convicções religiosas, mesmo que em iminente perigo de vida, a pessoa estará apenas querendo viver de acordo com suas crenças e isso deve ser respeitado, especialmente por não causar lesões a direito de terceiros. Uma vez que inexiste em nosso país lei que obrigue determinados tratamentos médicos, mesmo em perigo iminente de vida, essa recusa será válida, conforme reza o principio da legalidade e, portanto, deve ser respeitada.
Segundo o professor de direito constitucional brasileiro UADI LAMMÊGO BULOS, escusa de consciência, imperativo de consciência ou objeção de consciência são sinônimos que indicam um direito, constitucionalmente protegido, que um indivíduo tem de negar-se a se submeter a uma imposição contrária às suas posições religiosas, políticas e filosóficas. Esse direito pode ser exercido quando há um conflito entre uma imposição coletiva e as crenças pessoais do indivíduo. Para compensar essa escusa compete à lei instituir prestação alternativa. Isso ocorre com o alistamento eleitoral e dever de voto, o comparecimento ao júri e o serviço militar obrigatório.
Conforme visto, a objeção de consciência por motivos religiosos tem amparo em várias circunstancias. O mesmo poderia ser aplicado à recusa do paciente em um determinado tratamento médico, por imperativo de consciência, obrigando o Estado a dispor de uma alternativa a esse tratamento, conforme os avanços médicos-científicos atuais.
Alguns dirão que instituir esta prestação alternativa seria ferir o principio da isonomia, o que não está correto, pois este principio está dentro de um quadro amplo de direito, ou seja, é uma norma geral. Já a escusa de consciência é uma norma especial que, por sua vez, prevalece sobre a norma geral. Nesse entendimento também, a reserva de vagas para deficientes físicos em concursos públicos, como norma especial, não fere o principio da isonomia, pois deve-se tratar desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam.
O cerceamento desse direito ocorre quando o Estado, fazendo uso do seu direito superior, tenta compelir um indivíduo a fazer algo contra sua consciência religiosamente treinada, causando-lhe repulsa, sem levar em conta, também, que vivemos numa sociedade cada vez mais plural. O que o Estado não pode fazer é viver a vida do indivíduo para poupá-lo de riscos que ele está disposto a assumir.
Outro direito constitucional contrariado na imposição de tratamento médico contra a vontade do paciente é o direito fundamental à privacidade, consagrado na Constituição Federal, no inciso X do artigo 5º, nos seguintes termos: "São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação’.Não se pode falar em respeito à privacidade quando uma intervenção médica forçada tira do indivíduo o sossego, a tranqüilidade, torna sua vida intima e privada devassada por terceiros e sufocada pelas excessivas ingerências do Estado
Em parecer, o jurista CELSO RIBEIRO BASTOS expôs:
"Quando o Estado determina a realização de transfusão de sangue – ocorrência fenomênica que não pode ser revertida – fica claro que violenta a vida privada e a intimidade das pessoas no plano da liberdade individual. Mascara-se, contudo, a intervenção indevida, com o manto da atividade terapêutica benéfica ao cidadão atingido pela decisão. Paradoxalmente, há também o recurso argumentativo aos ‘motivos humanitários’ da prática, quando na realidade mutila-se a liberdade individual de cada ser, sob múltiplos aspectos."
Trataremos agora do principio da dignidade da pessoa humana, que engloba a necessidade de respeito à integridade física, psíquica e intelectual do indivíduo. Embora considerados por alguns, o direito fundamental à vida não é absoluto, conforme mostraremos também mais adiante, pois encontra limites na dignidade.
ANA CAROLINA DODE LOPEZ discorreu sobre isso com muita propriedade:
"Não há dignidade quando os valores morais e religiosos mais arraigados do espírito da pessoa lhe são desrespeitados, desprezados. A pergunta que se faz é a seguinte: adianta viver sem dignidade ou com a dignidade profundamente ultrajada? Se a própria pessoa prefere a morte é porque o desrespeito às suas convicções espirituais configura uma morte pior: a morte de seu espírito, de sua moral.
"O Direito quer proteger a vida humana à custa da dignidade da pessoa? Quer proteger a vida de um indivíduo mesmo que isto represente ferir profundamente a sua dignidade? A resposta certamente é negativa para o Direito Brasileiro, do que se infere do art. 1º, III, da CF, caso contrário este artigo teria proclamado como fundamento do Estado Democrático de Direito a vida humana, e não a dignidade da pessoa humana, como fez."
Tratando ainda do direito à vida, consagrado no caput do artigo 5º da nossa Constituiçao, o desembargador MARCOS ANTÔNIO IBRAHIM da 18ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro afirma que:
O direito à vida não se resume ao viver... O Direito à vida diz respeito ao modo de viver, a dignidade do viver. Só mesmo a prepotência dos médicos e a insensibilidade dos juristas pode desprezar a vontade de um ser humano dirigida a seu próprio corpo. Sem considerar os aspectos morais, religiosos, psicológicos e, especialmente, filosóficos que tão grave questão encerra. A liberdade de alguém admitir, ou não, receber sangue, um tecido vivo, de outra (e desconhecida) pessoa. (trecho do voto – vencido – do Desembargador Marcos Antônio Ibrahim no Agravo de Instrumento n.º 2004.002.13229, julgado em 05.10.2004 pela 18ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do RJ).
Que esse direito não é absoluto fica bem evidenciado em nosso próprio ordenamento jurídico, uma vez que existem hipóteses legais em que se admite a sua flexibilização, como a exclusão da ilicitude da conduta cujo resultado é a morte quando o ato é praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal, no exercício regular de direito, bem como na imputabilidade do aborto quando a gestante corre risco de morte ou quando resultante do estupro. Se o direito à vida fosse tão absoluto como alguns insistem em afirmar, a vida humana seria preservada a todo custo, independente de qualquer outra coisa. De fato, a vida deve ser preservada, mas não a qualquer custo. Custo esse que muitas vezes seria muito caro à própria vida.
Nesse sentido, v. STF, DJ 12 mai. 2000, MS 23.452/RJ, Rel. Min. Celso de Mello: “Os direitos e garantias individuais não têm caráter absoluto. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto”.
Sendo assim, embora o consentimento por si só não represente suficiência para o titular do direito à vida dispor dela, direito este que em prima facie pode ser considerado indisponível, possivelmente outros valores ou direitos fundamentais podem justificar essa decisão, pois não é absoluto.
Não há porque se falar de conflitos entre direitos personalíssimos de um mesmo titular, mas sim de concorrência. Neste sentido, CANOTILHO ensina que há conflito entre direitos fundamentais por parte de seu titular quando estes colidem com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular. Não estamos falando de acumulação de direitos, como na concorrência de direitos, mas de um verdadeiro choque.
Assim, quando há concorrência de direitos fundamentais o Principio da Proporcionalidade indicará qual deles, numa situação concreta, está ameaçado de sofrer lesão mais grave e, por isso, merece prevalecer, de acordo com a preponderância de interesses.
ANDERSON SCHREIBER considera como "intolerável que uma Testemunha de Jeová seja compelida, contra sua livre manifestação da vontade, a receber transfusão de sangue, com base na pretensa superioridade do direito à vida sobre a liberdade de crença. Note-se que a priorização da vida representa, ela própria uma 'crença', apenas que da parte do médico, guiado, em sua conduta, por um entendimento que não deriva das normas jurídicas, mas das sua próprias convicções científicas e filosóficas... A vontade do paciente deve ser respeitada, porque assim determina a tutela da dignidade humana, valor fundamental do ordenamento jurídico brasileiro" .
Portanto, o procedimento médico forçado, ainda que para proteger a vida do indivíduo, é uma afronta aos princípios constitucionais, sacrificaria sua consciência, agrediria sua dignidade, violaria sua honra e traria extrema infelicidade, tornando a própria vida um fardo demasiadamente pesado para se carregar.
Análise do Código Civil
A legitimidade da recusa a tratamentos médicos, como transfusões de sangue, encontra amparo no artigo 15 do Código Civil, qual prescreve que: ‘Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou à intervenção cirúrgica".
Novamente, não vamos nos aprofundar nos riscos existentes e difundidos na medicina mundial sobre transfusões de sangue, bastando dizer que grande parte das intervenções médicas-cirúrgicas traz algum risco de vida.
Se o tratamento médico ou intervenção cirúrgica objetiva salvar a vida de um paciente, ainda que um ou outro seja arriscado, porque ele não é imposto? Seguindo essa linha de raciocínio, seria mais prudente pecar pela ação que pela omissão.
Numa interpretação mais ampla a frase “com risco de vida”, contida no artigo citado, refere-se mais ao estado do paciente que a um atributo do tratamento ou intervenção. Seja qual for a interpretação dada, é importante aqui salientar a nobreza dada à autorização prévia do paciente, apesar de todo notável saber médico.
Associado a um fundamento consistente, não meramente uma vontade caprichosa, essa recusa é legítima
Para CARLOS ALBERTO GONÇALVES:
“A regra obriga os médicos, nos casos mais graves, a não atuarem sem prévia autorização do paciente, que tem a prerrogativa de se recusar a se submeter a um tratamento perigoso. A sua finalidade é proteger a inviolabilidade do corpo humano. (...) Na impossibilidade de o doente manifestar a sua vontade, deve-se obter a autorização escrita, para o tratamento médico ou a intervenção cirúrgica de risco, de qualquer parente maior, da linha reta ou colateral até o 2º grau, ou do cônjuge, por analogia com o disposto no art. 4º da Lei n. 9.434/97, que cuida da retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoa falecida.”
Ainda sobre esse assunto, FELIPE AUGUSTO BASÍLIO discorreu:
"...pela nova regra do Código Reale, o pressuposto para que o médico não atue sem o consentimento do paciente é a própria gravidade da situação em si, de maneira que não será o caso emergencial ou a situação gravosa que lhe permitirá agir sem o consentimento.
"As conseqüências jurídicas só surgirão no caso de atuação médica sem consentimento e o efeito danoso se dará por agir sem autorização, pelo que responderá por perdas e danos. Por este artigo, o risco de morte do paciente cria a obrigação do médico de colher o seu consentimento sobre o método terapêutico a ser aplicado, sob pena de responder civilmente pelos danos aos seus direitos de personalidade que o tratamento forçado pode causar."
GUSTAVO TEPEDINO afirma:
“Na esteira de tais considerações, há de ser interpretado o art. 15: não só o constrangimento que induz alguém a se submeter a tratamento com risco deve ser vedado, como também a intervenção médica imposta a paciente que, suficientemente informado, prefere a ela não se submeter, por motivos que não sejam fúteis e que se fundem na afirmação de sua própria dignidade. Nesta sede, a normativa deontológica há de se conformar aos princípios constitucionais”.
No mesmo sentido, Diaulas Costa Ribeiro, para quem: “[a] leitura desse artigo ‘conforme a Constituição’ deve ser: ninguém, nem com risco de vida, será constrangido a tratamento ou a intervenção cirúrgica, em respeito à sua autonomia, um destacado direito desta Era dos Direitos”.
O artigo 15 do Código Civil é uma inovação legislativa que avança em contraste com normas ultrapassadas de hierarquia igual ou inferior que autorizavam a intervenção médica contra a vontade do paciente (especialmente os artigos 46 e 56 do Código de Ética Médica, uma mera resolução do Conselho Federal de Medicina, e o art. 146, § 3º, inciso I, do Código Penal), mesmo naqueles casos de iminente risco de vida.
Falando ainda de inovações legislativas a Lei n.º 10.741/2003 (Estatuto do Idoso) em seu artigo 17 traz a seguinte redação:
"Artigo 17. Ao idoso que esteja no domínio de suas faculdades mentais é assegurado o direito de optar pelo tratamento de saúde que lhe for reputado mais favorável.
Parágrafo único. Não estando o idoso em condições de proceder à opção, esta será feita:
I – pelo curador, quando o idoso for interditado;
II – pelos familiares, quando o idoso não tiver curador ou este não puder ser contatado em tempo hábil;
III – pelo médico, quando ocorrer iminente risco de vida e não houver tempo hábil para consulta a curador ou familiar;
IV - pelo próprio médico, quando não houver curador ou familiar conhecido, caso em que deverá comunicar o fato ao Ministério Público.
Analisando detalhadamente o inciso III do artigo supracitado podemos notar que a iminente situação de risco de vida não é suficiente para que o médico possa optar pelo tratamento, mas isso deverá ocorrer concomitantemente com a impossibilidade de manifestação do paciente, familiares ou de seu representante legal. A intervenção médica, ainda que nos casos de iminente risco de vida, só poderá ser possível quando não houver possibilidade de conhecer, por qualquer meio, a vontade do paciente ou representante legal. Assim, inexiste lógica ética ou jurídica para que essa prerrogativa não seja expandida aos pacientes civilmente capazes de idade inferior a 60 anos.
CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, aprofundando-se no tema da recusa do paciente em receber sangue alheio por convicções filosóficas e religiosas pondera:
“(...) a matéria, pela disparidade de posições, permanece ainda no campo opinativo, aguardando novos elementos, científicos ou jurídicos, como um problema do Direito no segundo milênio.”
Em meio a esta controvérsia pode-se afirmar que a questão não é simplesmente o individuo querer dispor da sua própria vida, de preferir a morte a receber a transfusão de sangue ou outro tratamento objetado. É uma questão de ter o melhor tratamento possível disponível na comunidade médica ou que ao menos seus direitos fundamentais, dentre eles o da vida humana digna, sejam respeitados, ainda que haja o risco de morrer.
Análise do Código Penal
Deixamos a análise do código penal em ultimo lugar pelo fato de que este deve ser o ultimo ramo do direito a ser invocado, caso os outros não abranjam a demanda em concreto.
De acordo com os princípios fundamentais do direito penal o Estado só deveria intervir nos casos de maior gravidade. Além disso, quando há uma ofensividade mínima da conduta, inexistência de periculosidade social do ato, grau reduzido de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão provocada, não se justifica a intervenção estatal, quer estabelecendo restrições à uma conduta quer ressalvando-a.
O Código Penal, em seu artigo 146 ressalva a conduta do médico quando realiza o procedimento sem obter o consentimento do paciente em caso de iminente risco de vida. O referido artigo apenas extingue uma responsabilidade penal do médico em caso de imposição de tratamento.
Desnecessário se fez o legislador ao consagrar o inciso que trata diretamente dessa ressalva, tendo em vista que a manifestação de vontade deve ser respeitada, baseada em princípios constitucionais e por uma interpretação mais ampla do artigo onde é perfeitamente possível aplicá-lo aos casos onde há iminente risco de vida e não é possível extrair o consentimento do paciente.
Ainda assim, não se pode falar de omissão do médico que respeita a autonomia da vontade do paciente, mas sim de recusa do ultimo a um tratamento médico e a proibição ao médico de se valer de coação. Cabe relembrar que a possibilidade de recusa é extraída diretamente da Constituição e uma eventual incompatibilidade com outras normas não afasta as conclusões obtidas.
Omissão de socorro é, literalmente, deixar de prestar auxílio quando possível fazê-lo sem risco pessoal. Todavia, um médico aparado com os meios técnicos disponíveis pelo Estado não está deixando de prestar auxílio a um paciente que se recusa a tratamento médico ou intervenção cirúrgica. Não se pode interpretar esse texto por analogia, pois ela não é permitida na interpretação de texto penal, uma vez que o texto do artigo 135 não se aplica a esses casos onde o paciente, na verdade, exerce apenas a sua autonomia.
No caso do artigo 146 do texto penal, inexiste obrigação de submeter o paciente a intervenção médica ou a tratamento compulsório, pois a vedação à violabilidade da vida é dirigida à terceiros, a saber, contra a sociedade e contra o Estado.
Viver é um direito, contudo inexiste obrigação de viver com sofrimento psíquico, moral. No caso de aborto em gestante vítima de estupro temos uma vida trocada por outra vida com dignidade. Neste mesmo sentido, não se pune a tentativa de suicídio, nem a autolesão, quando não estiver envolvida com alguma tentativa de fraude.
De fato, com respeito a este tema bastante controverso o Código Penal não é o melhor instituto para dirimir a conduta acerca do consentimento da vontade de recusa ou mesmo a imposição do tratamento médico ou intervenção cirúrgica. Se assim o fosse, deveria impor sanção ao estupro moral e psicológico que se configura no desrespeito à vontade do paciente.
Considerações Finais
O trabalho apresentado deve provocar diversas reflexões. A ofensividade da conduta de quem não deseja intervenção cirúrgica ou procedimento médico, ainda que isso acarrete risco de morrer, é tão grave ao ponto de impor sanção a quem decidir respeitar essa vontade? Existe perigo social advindo desta conduta? Quão reprovável é este comportamento? Qual a gravidade da lesão supostamente provocada? Vale a pena o Estado, por meio da coerção, condenar um indivíduo, segundo suas convicções, à uma vida suja, impura, indigna?
Em linhas gerais, é um direito constitucional a recusa a tratamento médico, diante da inviolabilidade à liberdade de consciência e de crença e da dignidade da pessoa humana. É bem verdade que não se pode dispor do direito à vida, mas ainda assim, este direito continua sendo inviolável, aspectos que não devem ser confundidos e isto implica na inviolabilidade do direito a uma vida digna.
Embora o direito à vida não contemple o direito de morrer, a vida vai além do aspecto físico, pois envolve elementos morais e emocionais. Contudo, não existe obrigação jurídica consigo mesmo de viver mediante imposição de tratamento médico ou procedimento cirúrgico.
Não é atribuição do Estado destituir a liberdade básica do individuo, compreendida como expressão de sua dignidade. A obrigação estatal é proteger essa dignidade, obedecendo os princípios constitucionais, ainda que essa proteção culmine na morte do indivíduo.
O inciso I do § 3º do artigo 146 do Código Penal fere os princípios da legalidade e da dignidade da pessoa humana. Fere também o direito à privacidade e à intimidade e aplica erroneamente a insignificância aos resultados da imposição estatal, personificada pela conduta médica.
É inoportuno responsabilizar criminalmente o médico que atende a vontade devidamente motivada e fundamentada do paciente, ao rejeitar tratamento médico, mesmo que tal respeito acarrete a morte do paciente. É dissonante com os recentes entendimentos envolvidos na autonomia do paciente abarcados pelo biodireito e bioética.
Toda conduta que afeta a relação do individuo para com o seu meio é socialmente relevante e assim sendo, toda conduta socialmente danosa deve ser tipificada e coibida. É verdadeiramente danosa a afronta ao direito de se ter uma vida digna ou mesmo de morrer dignamente. Uma vez desrespeitado o direito a uma vida digna, fere-se não apenas o individuo, mas também os princípios individuais garantidos em nossa Constituição Federal.
Referencias
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BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
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DIAULAS Costa Ribeiro, Autonomia: viver a própria vida e morrer a própria morte, Cadernos Saúde Pública 22:1750, 2006