5. ATO VINCULADO E DISCRICIONÁRIO
Antes de adentrar ao assunto do tópico em relevo, necessário se faz lembrar o princípio da legalidade inerente à Administração, que traduz a idéia de inteira dependência desta para com a lei.
Sabe-se, pois, que, de acordo com o referido princípio, a Administração Pública só pode atuar mediante o permitido em lei, jamais lhe cabendo atuar sob o fundamento de que tal prática não é proibida, haja vista esta possibilidade apenas ser permitida no âmbito do direito privado, onde reina a autonomia da vontade e não o interesse público da Administração.
Deste modo, é certo afirmar que o atuar administrativo, seja no âmbito vinculado ou discricionário, há sempre que estar coincidente com o princípio da legalidade, bem como com os demais princípios administrativos, ou seja, a moralidade, impessoalidade, publicidade etc. (8)
Tendo em vista esta dependência dos atos administrativos para com a norma pública, é de suma relevância verificar as diferenças básicas entre o ato vinculado e discricionário, quando já se sabe que não se inclui em tais diferenças a obediência à lei.
Pode-se dizer que há ação vinculada quando a norma a ser cumprida determina com rigor e objetividade o comportamento da Administração diante de certa situação fática , ou melhor, diz qual é o único e possível comportamento que o administrador deverá tomar, não deixando qualquer espaço para uma apreciação subjetiva.
Vê-se, portanto, que no ato vinculado, o motivo legal é de uma objetividade absoluta, além do que o comportamento da Administração, além de ser exigido, é exatamente especificado.
Na ação discricionária, por sua vez, ocorre uma certa margem de liberdade de escolha ou decisão para que o administrador verifique, sob os critérios de conveniência e oportunidade, qual a melhor solução para a efetivação da finalidade pública.
Contudo, vale ressaltar que o juízo discricionário deve sempre ser expandido dentro dos limites legais, ou seja, tal margem de liberdade conferido ao administrador estará delineada pela norma jurídica, visto que não se trata de arbitrariedade, por esta entendendo uma agressão à ordem jurídica.
Daí poderia surgir um questionamento: Em que ocasiões a lei deixa margem de liberdade de apreciação para a Administração?
De acordo com o eminente jurista Celso Antônio Bandeira de Mello(9), a discricionariedade pode decorrer da imprecisão com que a lei haja descrito a situação fática, ou seja, o motivo do ato; da alternatividade contida na norma a respeito quando expedir o ato, expedir ou não o ato, ou qual a medida mais satisfatória no caso concreto; e ainda poderá advir da finalidade da norma, quando esta se reporta a um conceito de valor, como por exemplo, higiene pública, o que se apresenta como conceito vago e impreciso. Nestas hipóteses deverá o administrador escolher, diante das várias opções oferecidas pela lei, a que melhor atender ao interesse público, a fim de efetivar o seu dever de não só uma boa administração, mas da melhor possível. Para isso, terá que agir com razoabilidade e boa fé, não podendo optar por alternativa que satisfaça vontade própria.
Verifica-se, pois, que não se pode afirmar a existência de um ato discricionário na sua totalidade, visto que o administrador nunca desfruta de uma liberdade total, havendo sempre a inevitável vinculação quanto ao fim público e à competência.
Tendo em vista essa total dependência do administrador, em sua ação discricionária, à finalidade pública, não seria mais coerente se falar em "dever discricionário", do que atribuir à essa função uma idéia de "poder" ? tal questão será tratada no decorrer desse estudo.
Afinal, sabe-se que o fundamento do ato discricionário, ou seja, a razão pela qual esse tipo de ato é autorizado pela lei, é a intenção do legislador em atribuir àquele que irá se deparar com os casos concretos, o dever jurídico de buscar a solução que satisfaça da melhor maneira a finalidade da lei, já que esta não tem condições de prever todas as situações fáticas capazes de repercutir no mundo jurídico.
6. LIMITES DA DISCRICIONARIEDADE
E CONTROLE JURISDICIONAL
A discricionariedade conferida ao administrador, quando da ocorrência das hipóteses mencionadas em tópico anterior, para que o mesmo opte pela melhor maneira de satisfazer os interesses públicos, está confinada a vários limites, sem os quais se evidenciaria uma verdadeira arbitrariedade.
Em um Estado de direto não se concebe liberdades irrestritas, tendo em vista que todos os atos estatais devem estar correspondentes ao princípio da legalidade.
Deste modo, a ação discricionária está vinculada aos limites postos pela própria lei que a permitiu, além dos princípios de direito publico e administrativos que vêm reafirmar a legalidade dos atos praticados por seus agentes.
Os princípios ora referidos norteiam não só aqueles que produzem a norma legal, como também definem o comportamento dos aplicadores de tal norma, a fim de que estes não ultrapassem os limites impostos pela norma específica e por todo o direito positivado.
Primeiramente vale considerar o princípio da finalidade, o qual afirma que o administrador deve sempre buscar o fim específico da norma, que, certamente, será coincidente com a finalidade maior da Administração, ou seja, o bem comum. Em não agindo dessa forma, incidirá o agente na hipótese do desvio de poder ou de finalidade, o que torna o ato passível de invalidação.
A teoria do desvio de poder foi elaborada exatamente para retalhar o âmbito da discricionariedade e detectar os abusos administrativos cometidos no exercício de tal liberdade. Trata-se, pois, de uma maneira de se verificar, através do controle pelo Judiciário, se determinado ato é ou não válido
O desvio de poder, na concepção de Celso Antônio(10), representa um dos mais graves vícios do ato administrativo, pois o agente se evade do fim legal, extraviando-se da finalidade cabível em face da lei, o que poderá ocorrer mediante duas modalidades.
Na primeira delas, o agente, servindo-se de uma competência abstrata própria, pratica atos com o propósito totalmente estranho à finalidade pública, havendo um desvirtuamento completo com relação ao interesse público. Neste caso, atua para alcançar um fim pessoal, avultando a percepção de que o controle do ato, nesta hipótese, é mero controle de legalidade.
Ocorre a segunda modalidade quando o agente, apesar de buscar atender a uma finalidade pública, esta não é aquela específica da competência utilizada. Também aqui, embora o vício seja irrelevante, pois a má fé pode não ser evidenciada, haverá, do mesmo modo, desvio de poder, sendo o ato considerado nulo.
Vê-se, dessa forma, que em ambas as hipóteses a finalidade da norma é tomada como referência com o objetivo de verificar se o ato foi praticado em desconformidade com a lei, isto porque a manifestação de vontade do agente público terá, necessariamente, que se dirigir à finalidade específica relacionada com a natureza da atividade exercida, caso contrário, sua atuação será invalidada através do controle interno ou externo dos atos administrativos.
Há de e observar, pois, que o controle jurisdicional do desvio de poder não agride, de modo algum, a margem de liberdade administrativa que a lei haja conferido ao agente, visto que a finalidade é parte integrante da norma legal, ou seja, um comportamento que não atinge ao fim da norma é, em suma, uma transgressão à lei.
Anteriormente entendia-se que ao judiciário somente seria possível, quanto aos atos discricionários, verificar a obediência aos seus aspectos formalísticos, não podendo o referido Poder, de maneira alguma, adentra o seu mérito, entendido este como a avaliação a respeito da oportunidade e conveniência.
Ocorre que o entendimento do que seja mérito do ato está cada vez mais limitado, de modo a se entender atualmente que a análise meritória somente se inicia quando o administrador tem diante de si várias alternativas igualmente satisfatórias, isto é, lícitas, razoáveis e proporcionais.
Quando se pode averiguar, sem maiores dificuldades, qual a melhor alternativa para a efetivação do bem público, não haverá discricionariedade, não havendo, portanto, que se falar em mérito da discrição.
Nestes termos, é de suma importância e perfeitamente aceitável a análise, pelo judiciário, da razoabilidade e proporcionalidade dos atos administrativos, a fim de se averiguar se a medida efetivamente tomada está dentro dos limites legais e correspondente à finalidade pública.
Contudo, quando o administrador, após realizar o juízo de razoabilidade, proporcionalidade e licitude dos atos, verificar mais de uma possibilidade igualmente satisfatórias, poderá decidir, através dos critérios de conveniência e oportunidade, qual a melhor opção. Daí falar-se em mérito do ato, intocável pelo Poder Judiciário.
A razoabilidade e a proporcionalidade são, portanto, limites à ação discricionária, de modo que qualquer ato administrativo que não se mostre razoável ou proporcional, também não estará em conformidade com a norma jurídica e, deste modo, será invalidado pelo Judiciário.
Ressalta-se ainda o princípio da motivação como limite da discricionariedade, apesar da existência de algumas concepções doutrinárias no sentido de que, sendo o ato discricionário, o administrador estará livre de justificá-lo.
Inobstante tal concepção de parte da doutrina, é certi afirmar que o administrado tem o direito de conhecer o porquê da prática de todo e qualquer ato administrativo, sobretudo quando este for discricionário, onde há certa liberdade já mencionada.
Ao justificar seus atos, a Administração Pública indicará os motivos, de fato e de direito, que a levaram a adotar determinada decisão, o que irá permitir um maior controle pelo Poder Judiciário, pois, através da motivação será possível verificar a existência e veracidade dos motivos e a adequação do objeto aos fins de interesse público impostos legalmente.
Considera-se ainda a moralidade um limite dos atos discricionários, bem como de todos os atos da Administração. Tal princípio está consagrado na Constituição Federal, artigo 37 caput, sujeitando o administrador à interferência do Judiciário quando da infração do mesmo.
É perfeitamente admissível a existência de um ato formalmente perfeito, mas atentório à moralidade pública. Neste caso, o que estará sendo violado é a ideologia da lei e não esta propriamente dita, do que se concebe haver um efetivo desvio de poder ou de finalidade quando se torna evidente a imoralidade administrativa.
Certo é que, mormente na ação discricionária, a violação ao princípio da moralidade se vê freqüente, pois, como se sabe, o administrador nesse tipo de ato tem uma determinada liberdade que, apesar de estar delineada pela lei, assim não é entendida pela maioria daqueles que a detém, o que facilita a prática de atos desacobertados dos padrões correntes de ética, lealdade e boa fé.
Além dos mencionados limites à ação discricionária, existe uma tendência, muito bem tratada por Celso Antônio Bandeira de Melo11 e também referida pela administrativista Maria Sylvia Zanella di Pietro12 , em limitar-se ainda mais determinada ação, de modo a ampliar-se o controle jurisdicional.
Sabe-se que o administrador trabalha rotineiramente com conceitos legais indeterminados e, muitas vezes, se vale de tal indeterminação para auferir vantagens pessoais, sob o fundamento de que se trata de ato discricionário, portanto, sujeito ao juízo de oportunidade e conveniência.
A moderna doutrina alemã, conforme refere Eduardo Garcia de Enterria, citado por Eros Roberto Grau13 , afirma que a indeterminação dos conceitos só persiste quando os mesmos são considerados em abstrato, ou seja, na medida que tais conceitos são aplicados aos casos concretos ganham consistência, de modo a se poder determinar sua finalidade.
Seria, todavia, excessivo considerar que todas as expressões legais, à priori, indeterminadas, ganhariam densidade quando confrontadas com o caso concreto. Entende-se, pois, que em algumas situações sim, mas em outras não.
Quando se verificar, no momento da aplicação do conceito vago à situação fática, que a satisfação de finalidade normativa reclamaria, sem qualquer dúvida, apenas o ato "x", e não outro, não haverá que se falar em discrição, pois esta requer várias alternativas igualmente satisfatórias ao interesse público, ficando a escolha a rigor do administrador no exercício de sua função.
Contudo, quando do momento da referida confrontação for possível mais de uma opinião razoável sobre o cabimento ou descabimento de certo ato, haverá, então, discricionariedade e, neste ponto, descaberá a análise do Judiciário.
Vê-se, deste modo, que no âmbito dos conceitos imprecisos poderá ou não haver discricionariedade, afirmação que contraria a tese de alguns doutrinadores defensores da idéia de que o tema dos conceitos fluidos é estranho ao da discricionariedade, tese esta defendida por Enterría14
Em suma, afirma o ilustre professor Bandeira de Mello15 que a aplicabilidade dos conceitos vagos só proporcionará discricionariedade nas situações marginais, fato que aumenta a possibilidade de controle jurisdicional dos atos administrativos, haja vista que reduz o âmbito da discricionariedade.
São estas, pois as limitações a que está sujeita a Administração Pública quando da realização de atos discricionários, embora tal ação discricionária seja muitas vezes mal compreendida e utilizada para o cometimento de abusos administrativos.
7. DISCRICIONARIEDADE. PODER OU DEVER ?
À margem de liberdade conferida pelo legislador ao administrador para que satisfaça de forma ótima o interesse público, costuma-se dar a idéia de "poder".
Sabe-se que o relaxamento da vinculação dos atos administrativos só se justifica quando há a certeza de que o administrador está mais capacitado que o legislador para escolher o melhor caminho de alcançar a finalidade pública, ou seja, é necessário que os resultados obtidos, em vista da discrição conferida, sejam não menos que excelentes.
Tendo em vista que será o administrador aquele que irá se deparar com a concretude dos fatos, outorga-se ao mesmo, certas vezes, uma parcela de discricionariedade que tem como fundamento a não possibilidade de se fixar na lei qual seria o comportamento administrativo capaz de assegurar, em todas as situações fáticas, a verdadeira solução capaz de atender ao fim público da Administração.
Em se fazendo uma análise a fundo, verificar-se-á que a extrema vinculação do administrador à finalidade pública decorre do caráter funcional da atividade administrativa que pressupõe a idéia de um poder-dever ou dever-poder, como afirmam alguns doutrinadores.
Constata-se, nesse ponto, que o possível "poder" conferido à Administração significa nada mais que o "dever de alcançar a finalidade legal"16, daí concluir-se que tal poder é um mero instrumento para se atingir essa finalidade, ou seja, obter o cumprimento do dever de bem administrar, este sim, fundamentador do Direito Público.
Deste modo, o agente administrativo deverá atuar sempre, seja totalmente vinculado à lei ou mediante certa discrição, no intuito de dar cumprimento ao dever-poder de gerir a res pública, ou seja, alcançar a finalidade pública específica da norma.
Pelo exposto, entende-se ser mais apropriada a expressão "dever discricionário", do que auferir ao caráter funcional da Administração Pública uma errônea idéia de "poder ".