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Dispensa de licitação em razão de emergência fabricada

19/12/2014 às 16:48
Leia nesta página:

Trata-se de uma análise sobre os requisitos desta extensão jurisprudencial à hipótese legal de dispensa de licitação por emergência e calamidade pública. Logo, é necessário adequá-la a fim de proteger a sociedade de abusos e arbitrariedades

Iniciemos o trabalho com o ensinamento de Marçal Justen Filho:

“No caso específico de contratações diretas, emergência significa necessidade de atendimento imediato a certos interesses. Demora em realizar a prestação produziria risco de sacrifício de valores tutelados pelo ordenamento jurídico. Como a licitação pressupõe certa demora para seu trâmite, submeter a contratação ao processo licitatório propiciaria a concretização do sacrifício a esses valores.”

(Comentários À Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 11ª ed., São Paulo: Dialética, 2005, p. 238).


DA “EMERGÊNCIA FABRICADA”

Quando nos deparamos com a idéia de contratação direta em caso de emergência, logo associamos o conceito à emergência/calamidade pública decorrente de desastres naturais.

No entanto, no outro extremo do conceito, encontramos hoje o que a doutrina denomina “emergência ou urgência fabricada”.

Trata a “emergência fabricada” da situação na qual a Administração, por desídia ou intenção deliberada do agente público, não adota providências cabíveis para a realização de procedimento licitatório com a devida antecedência, gerando a extrema necessidade para a contratação, o que autorizaria, com fulcro no art. 24, IV, da Lei nº 8.666/93, a dispensa de licitação.

Ou seja, a Administração deixa de tomar tempestivamente as providências necessárias à realização da licitação previsível, mas é autorizada a contratar diretamente.

Assim, por exemplo, se chega a termo um contrato sem nova licitação para nova contratação por desídia do administrador, desde que preenchidos os requisitos abaixo mencionados, poderia o administrador contratar diretamente, nos mesmos termos da dispensa concedida em razão de situação de calamidade pública, mas não sem a devida apuração de responsabilidades.

Qual seria então o ponto comum entre duas situações tão díspares que permitem a dispensa da licitação nos termos do mesmo artigo 24, inciso IV, da lei 8666/93? Qual a conseqüência desta inovação no universo limitado da contratação direta?

O Tribunal de Contas da União vem admitindo a possibilidade de contratação direta nos casos de “emergência fabricada”, tendo em vista o interesse público. No entanto, uma vez detectada a negligência, desídia ou má-fé do agente público, ele deverá ser responsabilizado.

Nestes termos, o Acórdão n.º 3521/2010-2ª Câmara, TC-029.596/2008-2, do Tribunal de Contas da União, da lavra do relator Ministro Benjamin Zymler, (06.07.2010), demonstrou seu novo posicionamento.

“(...) em antiga jurisprudência deste Tribunal, Decisão n.º 347/94 – Plenário, segundo a qual a dispensa de licitação é cabível desde que a situação adversa, dada como de emergência ou de calamidade pública, não se tenha originado, total ou parcialmente, da falta de planejamento, da desídia administrativa ou da má gestão dos recursos disponíveis”. No entanto, o relator chamou a atenção para o fato de que “a jurisprudência desta Corte de Contas evoluiu, mediante Acórdão n.º 46/2002 – Plenário”, no sentido de que também é possível a contratação direta quando a situação de emergência decorre da falta de planejamento, da desídia administrativa ou da má gestão dos recursos públicos, devendo-se analisar, para fim de responsabilização, a conduta do agente público que não adotou tempestivamente as providências cabíveis”. (gn)

A doutrina, por sua vez, tende a ser um pouco mais restritiva, estabelecendo limitações à contratação direta nos casos de “emergência fabricada”. Em suma, entende a doutrina que caso o administrador decida contratar diretamente, deve verificar se é de fato caso de emergência e se a contratação direta é a melhor possível nas circunstâncias. E só a partir daí, deve-se fazer a contratação pelo menor prazo e com objeto mais limitado possível, visando afastar o risco de dano irreparável. Simultaneamente, deve desencadear a licitação indispensável.


SITUAÇÃO EMERGENCIAL E CALAMIDADE PÚBLICA

POSIÇÃO DO TCU

Antiga posição, mas na mesma linha de entendimento acerca dos pressupostos necessários à contratação direta por emergência, o Tribunal de Contas da União tinha o entendimento exarado conforme decisão do Plenário nº 347/94, de relatoria do Ministro Carlos Átila, abaixo transcrito: 

“Calamidade pública. Emergência. Dispensa de licitação. Lei nº 8.666/93, art. 24, IV. Pressupostos para aplicação.

1 – que a situação adversa, dada como de emergência ou de calamidade pública, não se tenha originado, total ou parcialmente, da falta de planejamento, da desídia administrativa ou da má gestão dos recursos disponíveis, ou seja, que ela não possa, em alguma medida, ser atribuída a culpa ou dolo do agente público que tinha o dever de agir para prevenir a ocorrência de tal situação;

2 – que exista urgência concreta e efetiva do atendimento a situação decorrente do estado emergencial ou calamitoso, visando afastar risco de danos a bens ou à saúde ou vida de pessoas;

3 – que o risco, além de concreto e efetivamente provável, se mostre iminente e especialmente gravoso;

4 – que a imediata efetivação, por meio de contratação com terceiro, de determinadas obras, serviços ou compras, segundo as especificações e quantitativos tecnicamente apurados, seja o meio adequado, efetivo e eficiente de afastar o risco iminente detectado.” (gn)

Decisão mais recente do TCU admitindo a denominada “emergência fabricada”:

“(...) Representação oferecida ao TCU apontou possíveis irregularidades na “contratação emergencial de empresa para prestação de serviços de gestão de sistemas de informação pelo Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM”. O Diretor-Geral e o Diretor de Administração foram chamados em audiência em razão da suposta “não adoção de providências cabíveis para que fosse promovido o procedimento licitatório com a devida antecedência, o que teria evitado duas contratações emergenciais consecutivas da empresa Montana Soluções Corporativas Ltda. e, posteriormente, da empresa CPM Braxis, para a prestação de serviços técnicos especializados em informática”. A unidade técnica propôs a rejeição das justificativas apresentadas pelos responsáveis, com a consequente aplicação de multa, por entender que a situação de emergência teria resultado, na verdade, da morosidade na condução do certame, o que acarretara as contratações emergenciais. Em seu voto, o relator frisou que a proposta da unidade instrutiva baseava-se “em antiga jurisprudência deste Tribunal, Decisão n.º 347/94 – Plenário, segundo a qual a dispensa de licitação é cabível desde que a situação adversa, dada como de emergência ou de calamidade pública, não se tenha originado, total ou parcialmente, da falta de planejamento, da desídia administrativa ou da má gestão dos recursos disponíveis”. No entanto, o relator chamou a atenção para o fato de que “a jurisprudência desta Corte de Contas evoluiu, mediante Acórdão n.º 46/2002 – Plenário”, no sentido de que também é possível a contratação direta quando a situação de emergência decorre da falta de planejamento, da desídia administrativa ou da má gestão dos recursos públicos, devendo-se analisar, para fim de responsabilização, a conduta do agente público que não adotou tempestivamente as providências cabíveis. No caso concreto, acerca da responsabilidade dos gestores, o relator entendeu que não se deveria atribuir-lhes culpa por eventual demora, uma vez que os processos de licitação abertos com vistas a contratar os referidos serviços não lograram êxito por motivos alheios às atribuições funcionais dos responsáveis. Na verdade, o DNPM se viu obrigado a anular tais certames em virtude de decisões proferidas ou pelo Poder Judiciário ou pelo TCU ou por decisão do próprio órgão, em razão de vícios insanáveis. Também com base nas informações prestadas pelos gestores e nos documentos constantes dos autos, o relator não vislumbrou qualquer intenção do DNPM, ao realizar os contratos emergenciais em comento, de privilegiar determinada empresa, haja vista a alternância das contratações. Ao final, divergindo do entendimento da unidade técnica no sentido de sancionar os gestores chamados em audiência, o relator propôs e a Segunda Câmara decidiu considerar improcedente a representação”.

(Acórdão n.º 3521/2010-2ª Câmara, TC-029.596/2008-2, rel. Min. Benjamin Zymler, 06.07.2010, Informativo de Jurisprudência sobre Licitações e Contratos do TCU, edição nº 24).

Posto isso, os argumentos e teses ora esposados conduzem a conclusão de que a contratação direta com base na dispensa de licitação por emergência, ainda que em caso de “emergência fabricada”, terá assegurada sua legalidade e licitude, uma vez cabalmente demonstrados a potencialidade do dano o qual pretende combater, bem como a comprovação técnica de que o objeto a ser adquirido por meio da dispensa é essencial para a diminuição ou inocorrência do prejuízo. 

Concluimos com o doutrinador Antônio Carlos Cintra do Amaral (em “Licitações nas empresas estatais” – São Paulo, McGraw Hill, 1979, pg. 54):

“a emergência é caracterizada pela inadequação do procedimento formal licitatório ao caso concreto. Em outras palavras, um caso é emergência quando reclama solução imediata, de tal modo que a realização de licitação, com os prazos e formalidades que exige, pode causar prejuízo relevante ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços ou bens, ou ainda provocar a paralisação ou prejudicar a regularidade de suas atividades específicas”.


EMERGÊNCIA E CALAMIDADE PÚBLICA: O SURGIMENTO DE UM NOVO CRITÉRIO DE DEFINIÇÃO

Como sabido, o conceito de emergência e calamidade pública é subjetivo. Necessário se faz, portanto, cautela em sua determinação.

O juízo do administrador, neste caso, mostra-se temerário. A solução: adoção de um critério objetivo de análise.

Para estabelecer este critério objetivo e seguro propomos estabelecer dois patamares extremos da conceituação. De um lado, a definição de emergência e calamidade pública para fins de transferência de recursos e de outro, a chamada “emergência fabricada”, hoje admitida pelo Tribunal de Contas da União, como visto.

O Decreto nº 7257/2010 define emergência e calamidade pública para fins de transferência de recursos da União para outros entes federativos.

Diz o artigo 2º, incisos III e IV,  do referido decreto:

III - situação de emergência: situação anormal, provocada por desastres, causando danos e prejuízos que impliquem o comprometimento parcial da capacidade de resposta do poder público do ente atingido;

IV - estado de calamidade pública: situação anormal, provocada por desastres, causando danos e prejuízos que impliquem o comprometimento substancial da capacidade de resposta do poder público do ente atingido;

Ainda, o decreto 5376/05, revogado pelo decreto 7257/10, esclarecia ainda que:

  Situação de emergência: o reconhecimento pelo poder público de situação anormal, provocada por desastres, causando danos superáveis pela comunidade afetada.

Estado de calamidade pública: o reconhecimento pelo poder público de situação anormal, provocada por desastres, causando sérios danos à comunidade afetada, inclusive à incolumidade ou à vida de seus integrantes.” 

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Ou seja, emergência é caracterizada pela necessidade imediata ou urgente de atendimento a um evento já acontecido ou por acontecer de modo que se possa evitar ou reduzir as consequências dessa ocorrência. Ao contrário da calamidade, que devido às suas proporções afeta considerável extensão territorial e número de pessoas, a emergência é particularizada.

Reportemo-nos à “emergência fabricada” já analisada.

Agora podemos estabelecer um “teto” (“emergência fabricada”) e um “piso” (emergência e calamidade pública para fins de repasse de verbas da União) para as chamadas situações de emergência e calamidade pública.

E, uma vez estabelecido um patamar máximo e mínimo podemos verificar que, na verdade, emergência, para fins de dispensa, significa necessidade de contratação que não pode aguardar os trâmites habituais da licitação pública, sob pena de comprometimento do interesse público aliado ao desatendimento de alguma demanda social ou pela continuidade de atividade administrativa.

Logo, o que se conclui é que, para fins de dispensa de licitação por emergência, basta que haja um motivo independente da vontade da Administração que esteja entre o primeiro e o segundo conceito.

Isso porque o fator determinante é a necessidade e a urgência da contratação em vista das consequências da espera do procedimento licitatório.

Diante disso, podemos vislumbrar um critério objetivo e seguro para a contratação direta, ou seja, toda situação englobada entre o primeiro e o segundo conceito será certamente um caso de dispensa do artigo 24, inciso IV, da lei 8666/93.

Vejamos.

Entre o primeiro e o segundo conceito encontramos o chamado obstáculo judicial à licitação, exemplo claro de dispensa de licitação em caso de emergência.

Licitação tempestiva + decisão judicial vedando contratação ou exigindo providências impeditivas de conclusão do certame = motivo independente da vontade da Administração que pode ser considerada situação emergencial a depender da urgência da contratação.

Observe-se que a Lei não distingue a fonte causadora da situação emergencial. Por exemplo, não condiciona a contratação à comprovação de que a emergência foi produzida por causas naturais. Como visto, basta o risco de dano para autorizar-se a contratação direta. Outra é a questão de apurar se o dano foi produzido voluntariamente ou não, por evento reprovável ou não. Daí por que pode se aplicar também o  inciso IV, do artigo 24, à hipótese de impossibilidade de contratar por motivo independente da vontade da Administração.

Com se vê, uma situação peculiar instaura-se nas hipóteses de impossibilidade de contratar por obstáculo judicial. Isso se passa especialmente nos casos de provimentos jurisdicionais impeditivos da conclusão de licitação. A Administração instaurara a licitação tempestivamente, mas, no curso do certame, recorreu-se ao Poder Judiciário e se obteve decisão vedando a contratação ou impondo observância de certas providências impeditivas da conclusão do certame. Logo, surge necessidade imperiosa a ser atendida e não há licitação respaldando a contratação.

Estando este caso entre o “teto” e o “piso” estabelecidos, podemos afirmar que é o caso de contratação direta, fundada no inciso IV, do artigo 24, lei 8666/93, presumindo-se, de início, a boa fé do administrador.


CONCLUSÃO

Diante de novas realidades, um novo desafio: o Estado passa a ter que harmonizar dois fatores: a necessidade de regras moralizadoras e a satisfação do interesse público.

Esta é a exata situação que se apresenta: de um lado a necessidade da contratação e de outro a aparente legitimação de conduta violadora da lei.

A solução: razoabilidade e proporcionalidade.

Mas uma nova perspectiva de análise do conceito amplo de emergência/calamidade pública surge como solução de questões anteriormente obscurecidas pelo subjetivismo.

De um lado o critério dos dois patamares da emergência, de outro a forma de análise da conduta do administrador desidioso, ímprobo para fins de responsabilização.

De tudo, ganha a sociedade que mantém suas necessidades providas com uma Administração que presta contas de suas atividades.


Leia também: <https://jus.com.br/artigos/34257/emergencia-fabricada-requisitos-para-dispensa-de-licitacao>


BIBLIOGRAFIA

Jorge Ulisses Jacoby Fernandes: Contratação direta sem licitação, 8ª edição, Editora EF 2009, BH

Carlos Ary Sundfeld: Fundamentos do Direito Público, 2010, 4ª edição, Editora Malheiros

Marçal Justen Filho: Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, 9ª edição, 2002, SP, Editora Dialética

Antônio Carlos Cintra do Amaral: Estudos, pareceres e comentários, 2006 (2010 – 3ª edição revista e ampliada), Editora Fórum.

AMARAL, Antônio Carlos Cintra do, em Licitações nas Empresas Estatais, São Paulo, 1979,

AMARAL, Antônio Carlos Cintra do. Dispensa de Licitação por emergência. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, v. I, n° 6, setembro, 2001. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>.

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Sobre a autora
Marisa Midori Ishii

Procuradora do Estado de São Paulo desde 2004, Pós Graduação Escola Paulista da Magistratura em Processo Penal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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