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Impenhorabilidade do bem de família de titularidade da pessoa jurídica e a teoria da desconsideração da personalidade positiva.

Uma análise civil-constitucional

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03/12/2014 às 13:54
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6. TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA POSITIVA

Ao se falar em pessoa jurídica verifica-se que ela tem personalidade, isto importa dizer que tem existência além da figura do seu sócio. Disso decorre a titularidade obrigacional, processual e patrimonial.

Uma vez dotada de personalidade surge o princípio da autonomia patrimonial. De acordo com tal princípio os bens das pessoas jurídicas são responsáveis por satisfazer as obrigações contraídas por ela. A doutrina e jurisprudência entendem que em determinadas situações tal princípio pode ser mitigado em prol de outros valores. Portanto havendo personalidade jurídica a única maneira de afastar o princípio é por meio da desconsideração da personalidade10.

Ao se tratar o bem de família em titularidade da pessoa jurídica utilizou-se os seguintes julgados: REsp nº 264.431/SE e REsp nº 621.399/RS. Resta analisar se ao considerar o patrimônio empresarial como bem de família estariam utilizando-se da desconsideração da personalidade jurídica positiva.

No primeiro caso fica claro que ao considerar bem de família um imóvel de propriedade da pessoa jurídica ocorre a mitigação do princípio da autonomia patrimonial. Neste sentido é a decisão:

Perlustrando os autos, consta-se que o registro imobiliário, apresentado às fls. 65, indica que a propriedade do imóvel, em debate, pertence à empresa TECIDOS BARETO LTDA.

Entretanto, fato de a proprietária ser pessoa jurídica não tem o condão de afastar a impenhorabilidade de bem de família, principalmente pelo fato da empresa possuir caráter familiar, com também em razão de o seus sócios residirem no referido local com comprovado anteriormente (REsp nº 264.431/SE).

Ou seja, tratando-se de empresa familiar e o imóvel destinado à moradia, a titularidade patrimonial é afastada em prol da proteção da entidade familiar.

No segundo julgado trata-se de embargos que foram julgados procedentes, por reconhecer como bem de família, mesmo estando o imóvel formalmente em nome da pessoa jurídica, ou seja, foi desconsiderada a autonomia patrimonial.

Apenas a desconsideração da personalidade jurídica possibilita o afastamento do tríade efeito da personalização e a mitigação do princípio da autonomia patrimonial. Nos dois casos, em estudo, foi utilizada a teoria da desconsideração da personalidade jurídica positiva ao reconhecer a impenhorabilidade do imóvel, de titularidade da pessoa jurídica, que servia de moradia aos seus sócios.


CONCLUSÃO

Frutos de novas demandas e condicionantes surgem instrumentos que visam a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana, no intuito de assegurar o mínimo existencial às pessoas. Um destes, o bem de família, teve seu conceito ampliado no decorrer do tempo ao ponto de considerar impenhorável um imóvel de titularidade de uma pessoa jurídica, desde que sirva de moradia à família e trate-se de empresa familiar. Em decorrência do presente estudo, foi possível chegar as seguintes conclusões:

  • Ao ganhar espaço no centro do ordenamento jurídico, a Constituição, tem em sua órbita as relações jurídicas e sociais;

  • As normas constitucionais passam a servir como fonte de interpretação das relações privadas, tendo como alicerce os seguintes princípios: dignidade da pessoa humana, solidariedade e isonomia;

  • Além dos princípios basilares, deve-se reconhecer a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, no presente caso o direito fundamental a moradia;

  • É possível considerar bem de família, um imóvel, mesmo que de titularidade da pessoa jurídica, basta que ele sirva de moradia e tratar-se de uma empresa familiar;

  • O ordenamento jurídico brasileiro adotou a teoria da realidade técnica, ou seja, tem existência distinta dos sócios;

  • Ao ganhar personalidade surge o tríade efeito: autonomia obrigacional, processual e patrimonial, que decorre o princípio da autonomia patrimonial que, em regra, os bens da pessoa jurídica e dos sócios não se confundem;

  • Visando coibir abusos da autonomia patrimonial surge a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, que no direito brasileiro, está divida em: teoria maior e inversa, as quais necessitam a presença da ilicitude e a teoria menor que necessita do inadimplemento. Nestes casos a teoria é utilizada de forma negativa, ou seja, visa de punir e reprimir os atos ilícitos;

  • Apenas a desconsideração da personalidade jurídica possibilita o afastamento do tríade efeito da personalização e a mitigação do princípio da autonomia patrimonial. No caso de considerar o patrimônio da pessoa jurídica como bem de família o julgador desconsidera a autonomia patrimonial, portanto utiliza a teoria da desconsideração da personalidade jurídica positiva ao reconhecer a impenhorabilidade do imóvel, de titularidade da pessoa jurídica, que servia de moradia aos seus sócios.


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Notas

2 Na concepção do Code (francês) tinha-se o direito absoluto de gozar e dispor dos bens, neste sentido o seu art. 544.

3 Maria Celina Bodin de Moraes defende que ocorreu uma transformação do conceito de Direito Civil, não necessariamente devido ao intervencionismo estatal, mas sim em decorrência da aplicação imediata das normas constitucionais nas relações de caráter privado. (BODIN DE MORAES, 2010, p. 7). Fundamental este posicionamento os seguintes autores: (FLÓREZ-VALDÉS, 1991. p. 88); (RIPERT, 1949, p. 37); (SAVATIER, 1950, p. 3).

4 Ressalta-se que a proteção se dá para a pessoa solitária e não o caso, onde ocorre a separação dos membros família, em caso de existência de dois imóveis que são utilizados por elas, neste sentido: REsp nº 301.580/RJ – Dje 18/06/2013.

5 Os civilistas contemporâneos tendem a se manifestar favorável a tal posicionamento, neste sentido: (TARTUCE, 2014, p. 295); (GAGLIANO, 2003, p. 290 e 291); (FARIAS, 2006, p. 342); (SCHREIBER, 2002, p. 84).

6 Utiliza-se deste conceito, por considerar que o acórdão desconsidera a autonomia patrimonial em prol da proteção da dignidade dos membros familiares.

7 No direito brasileiro Alfredo de Assis Gonçalves Neto (2002, p. 17-18) aproxima-se desta definição, todavia substitui a lei por ordenamento.

8 Existem divergências quanto ao marco inicial.

9 Tal classificação foi formulada por Fábio Ulhoa Coelho em 1999 (2011, p. 67), todavia atualmente entende, o autor, que está superada esta classificação e utiliza os termos aplicação correta e incorreta. Não se pode concordar com tal afirmação uma vez que a teoria encontra-se positivada pelo ordenamento jurídico brasileiro e é inegável a adoção da maior e menor.

10 Desconsiderar a personalidade não tem relação com despersonalizar.

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Sobre o autor
Fábio Brasilino

Doutorando em Função Social do Direito na FADISP. Mestre em Direito Negocial pela UEL (2012). Especialista em Metodologia de Ensino pela UNOPAR (2010) e em Direito Internacional e Econômico pela UEL (2012). Professor da UNOPAR – Campus Arapongas e Faculdade Arthur Thomas. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Artigo originalmente apresentado no XXIII Congresso Nacional do CONPEDI – Universidade Federal da Paraíba.

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