Sumário: 1 Introdução, 2 O medo e a cidade: uma interpretação à luz do pensamento de Bauman, 3 A expansão do direito penal punitivo no Brasil, 4 Conclusão, Referências.
1 Introdução
Com o advento das diretrizes neoliberais à política estatal, em que o estado tem seu papel reduzido em benefício do mercado, verificado a partir das últimas décadas do século passado, tendo como consequência imediata o aumento da massa de excluídos que poderão ameaçar o sistema, surge o direito penal como antídoto das possíveis mutações sociais, amplamente apoiado pela “opinião pública”, que absorve o discurso legitimador de um direito punitivo, difundido pelos meios de comunicação.
Desta forma, analisar o papel da mídia é fundamental para a compreensão da política criminal, que se desenvolve na contemporaneidade, “estruturada sobre a estratificação social e o antagonismo de classes, através de mecanismos seletivos[1]”.
Nesta perspectiva, o presente artigo discute, a partir de pesquisa bibliográfica sobre o tema, o papel do discurso midiático na produção do medo nos dias atuais, bem como, as condições sócio-econômicas que possibilitaram o recrudescimento do direito penal punitivo, que é elevado ao máximo, em detrimento às ações de inclusão social e distribuição de renda.
2 O medo e a cidade: uma interpretação à luz do pensamento de Bauman
O pensamento de Zygmunt Bauman parece-nos um dos mais adequados para a compreensão da conjuntura da atual sociedade, a qual ele denomina de modernidade líquida[2], e consequentemente os mecanismos de sujeição dos indivíduos no interior dela.
Para o sociólogo polonês, o fim do século XX marca o início de uma nova fase na história das cidades, que se tornam os centros das transformações sociais, uma vez que é nestes grandes centros urbanos que se encontram as funções mais avançadas do capitalismo.
Assim, as cidades globais passam a constituir o centro de gravidade de indivíduos, com intenso fluxo populacional e de circulação de capitais, marcadas por um processo de ampliação dos cinturões periféricos, destinados à população “supérflua”, em contraposição à formação de uma elite de privilegiados.
A consequência imediata deste processo é obvia: os bairros habitados pelos membros da elite são valorizados, sendo objeto de investimentos urbanísticos, enquanto que os habitados pela população despossuída são marginalizados, como convém à lógica capitalista.
A compreensão desta estrutura social, presente nas cidades globais, é fundamental para o entendimento do processo pelo qual o medo se transforma em uma das forças motriz da política de controle e repressão à criminalidade. Como lembra Bauman “a insegurança moderna, em suas várias manifestações, é caracterizada pelo medo dos crimes e dos criminosos[3]”.
Além disso, a campanha midiática, patrocinada pelo empreendimento neoliberal, no intuito de supervalorizar as ações criminais, no sentido de se legitimar o abandono do estado às questões sociais, conduz inevitavelmente a um sentimento generalizado de insegurança.
No aspecto socioeconômico, o medo é uma constante, uma vez que o processo de globalização da economia, alicerçada sob a égide do neoliberalismo, cria a cada dia novas formas de riscos e inseguranças, em função da “imprevisibilidade e da liquidez das relações sociais[4]”, que transmutam a sociedade de risco em sociedade da incerteza.
Em síntese, vivemos em uma sociedade em que “a complexidade da vida urbana transforma os indivíduos em seres aterrorizados por medos reais ou imaginários, em sujeitos sós, amedrontados e inseguros[5]”, em que a obsessão por segurança ganha cada vez mais espaço.
Por isso, se a proteção de fato disponível e as vantagens que desfrutamos não estão totalmente à altura de nossas expectativas; se nossas relações ainda não são aquelas que gostaríamos de desenvolver; se as regras não são exatamente como deveriam e, a nosso ver, poderiam ser; tendemos a imaginar maquinações hostis, complôs, conspirações de um inimigo que se encontra em nossa porta ou embaixo de nossa cama. Em suma, deve haver um culpado, um crime ou uma intenção criminosa[6].
Eis a lógica norteadora do “direito penal” que se desenvolve modernamente, uma espécie de nova caça as bruxas, que não apenas desvia o foco dos verdadeiros motivos que geram insegurança, como também condicionam o “adestramento” dos indivíduos às relações precárias de trabalho.
O medo difundido na sociedade é fundamental para o exercício do poder punitivo, um discurso que vem sendo responsável por uma legitimação da violência por parte do Estado, ossificada através da mídia, pela propagação de uma situação de terrorismo que a sociedade acredita estar vivenciando, por culpa do tráfico e/ou do crime organizado. O discurso midiático inclui no mesmo rol todo e qualquer crime e “criminoso”, não havendo uma diferenciação entre um crime punível e um pequeno delito, todos devem ser punidos, com a mesma força e veemência.
Assim, observa-se que a mídia exerce papel crucial na legitimação, não apenas do senso comum punitivo, mas principalmente da política neoliberal e de suas ações atentatórias aos direitos e garantias sociais. Contudo, como observa Nilo Batista, não se pode pensar “que a legitimação do sistema penal pela imprensa seja algo exclusivo da conjuntura econômica e política que vivemos. Existem, contudo, certos elementos inéditos, que não podem ser associados apenas aos recentes saltos tecnológicos[7]”, os quais analisaremos a seguir.
As últimas décadas do século XX foram marcadas por um intenso processo de internacionalização da economia, que se consolida com o fim do chamado Socialismo Real, em 1989, período em que o capitalismo pôde mundializar-se, tornando-se praticamente o único modelo de organização das sociedades, sob os ditames do neoliberalismo.
Esta doutrina econômica, que pouco tem de efetivamente novo, surgiu após o fim da Segunda Guerra Mundial, em oposição ao Welfare State (Estado de Bem Estar), mas que não dispunha de condições materiais para ser aplicada, encontrando ressonância e aplicabilidade apenas na atual conjuntura, preconiza o corte de gastos nos setores sociais e a precarização das relações de trabalho.
A principal consequência desta política é o aumento da massa de excluídos, os “supérfluos humanos” na denominação de Bauman, os quais, em virtude da reestruturação econômica imposta pelo processo de mundialização do capital, “a possibilidade de inclusão é remota”, “não representam mais uma fonte de mão-de-obra barata” (exército industrial de reserva, na analise marxiana), mas sim uma ameaça ao sistema[8], donde se conclui que a mão invisível do Liberalismo só é visível nos seus efeitos sociais perversos[9].
Isto explica, em parte, o fato de “o empreendimento neoliberal precisar de um poder punitivo onipresente e capilarizado, para o controle penal dos contingentes humanos que ele mesmo marginaliza[10]”. Desta forma, observa-se, que o estado neoliberal, tenta compensar o menos estado social, com um maior estado penal[11].
A criminalização, assim entendida, é mais do que um ato de governo do príncipe no Estado mínimo: é muitas vezes o único ato de governo do qual dispõe ele para administrar, da maneira mais drástica, os próprios conflitos que criou. Prover mediante criminalização é quase a única medida de que o governante neoliberal dispõe: poucas normas ousa ele aproximar do mercado livre – fonte de certo jusnaturalismo globalizado, que paira acima de todas as soberanias nacionais –, porém para garantir o “jogo limpo” mercadológico a única política pública que verdadeiramente se manteve em suas mãos é a política criminal[12].
Não por acaso, o recrudescimento penal observado no final do século XX, conhecido como “Tolerância Zero”, surgiu, exatamente, no centro do império, para daí irradiar-se para os demais países.
De Nova York, a doutrina da “tolerância zero”, instrumento de legitimação da gestão policial e judiciária da pobreza que incomoda – a que se vê, a que causa incidentes e desordens no espaço público, alimentando, por conseguinte, uma difusa sensação de insegurança, ou simplesmente de incomodo tenaz e de inconveniência – , propagou-se através do globo a uma velocidade alucinante. E com ela a retórica militar da “guerra” ao crime e da “reconquista” do espaço público, que assimila os delinquentes (reais ou imaginários), sem-teto, mendigos, e outros marginais a invasores estrangeiros – o que facilita o amálgama com a imigração, sempre rendoso eleitoralmente[13].
Segundo Marshall Berman, o ser moderno vivencia todas as contradições, ambigüidades, incongruências e turbulências presentes na vida moderna, os indivíduos se deparam com um turbilhão de emoções e sentimentos[14], o que obviamente, representa um belo receptáculo para o discurso dominante.
Desta forma as “novas tecnologias” do poder e do controle social na contemporaneidade, pode produzir uma grande variedade de medo (pós)-moderno, internalizando-o no imaginário dos indivíduos do século XXI, convertendo-o em: “o medo da maleficência humana”.
3 A expansão do direito penal punitivo no Brasil
A adoção desta política criminal, pelo Estado Brasileiro, revela toda a sua dimensão desumana, uma vez que, por suas características sócio-históricas, nossa sociedade é marcada por uma série de diferenças que necessitam de políticas públicas para corrigi-las.
O Direito Penal, no entanto, ao invés de promover igualdade e inclusão social dos indivíduos que sofrem as mazelas sociais, os vulneráveis, age no sentido de selecioná-los, marginalizá-los e excluí-los, a partir de uma noção da realidade, artificialmente criada pelo discurso oficial, seja ele estatal ou midiático. Este passa de ultima ratio, para prima e/ou única ratio, abandona-se toda e qualquer política no sentido de se reestruturar o sistema, que em última instância, é o grande causador de convulsões sociais.
Outro agravante no que tange tal política reside no fato de que o Estado Democrático de Direito, ainda não se consolidou plenamente no Brasil, nunca houve no país um Welfare State real, que assegurasse direitos sociais, a maioria da população.
Além disso, nossas instituições de controle social são herdeiras do autoritarismo, seja ele senhorial, oligárquico ou militar, um “Direito Penal” nestes moldes, dá margem para se legitimar a tortura e a outros meios de violação aos direitos humanos, assegurado pela Constituição Federal.
Assim, manter-se-á o status quo do nosso sistema penal, que historicamente, ao invés de garantir segurança e paz social, protegendo os bens jurídicos, entre eles a vida, sempre serviu de “instrumento de controle das classes subalternas, infundindo-lhes o terror, de forma a preservar a segurança e os interesses das classes hegemônicas[15]”, configurando-se na verdade “a institucionalização da exclusão social[16]”, e instrumento de manutenção do sistema capitalista e de obtenção de lucros, para aqueles que exploram o inesgotável mercado da (in)segurança. A alquimia neoliberal transforma tudo em mercadoria: medo, segurança, insegurança, violência, a paz, a guerra, os seres “humanos”, a vida, etc., tudo isso tem um preço, o que logicamente significa lucro para os “donos do poder”.
“Neste diapasão, a criminalidade, ou melhor, o medo de tornar-se vítima de um delito, transforma-se em mercadoria da indústria cultural, razão pela qual a imagem pública desta mercadoria é traçada de forma espetacular e onipresente[17]”.
Segundo Zaffaroni, a presença massiva de pobres e marginalizados nas cadeias é fonte de renda para seus exploradores, movimenta a economia, mantém a “ordem pública”. Os pobres e marginalizados finalmente passam a cumprir uma função não só social, mas econômica também: a presença deles na cadeia mantém o discurso promocional acerca da violência e criminalidade, faz com que o poder político não troque de mãos[18].
Neste sentido, o papel desempenhado pelos meios de comunicação, na difusão de crenças, culturas e valores, como meio de manutenção dos interesses mercadológicos, é fundamental para a manutenção deste sistema. O caráter oligopolista dos grupos que exploram o mercado da informação no Brasil condiciona a formação de um pensamento único, na medida em que as informações são selecionadas e manipuladas, conforme os interesses que representam, de forma a torná-la fonte legitimadora das políticas criminais.
A realidade torna-se uma construção de um discurso pseudocientífico/midiático pré-elaborado, a despeito do fato em si, o controle sobre as teorias, meios de divulgação e a hegemonia da informação, nos impõem algumas "verdades", que sacrifica a realidade factual em proveito de uma realidade ficcional.
Esse processo de manipulação da realidade e o poder estão mutuamente interligados, através de práticas específicas, que por sua vez, estão intimamente intrincados à produção do discurso, que é "regulado, organizado e redistribuído[19]", existindo relações que implicam em determinadas posições políticas e ideológicas que, por sua vez, incluem formações discursivas atuantes entre si, que determinam o que pode e o que deve ser dito. "Não se tem o direito de dizer tudo, não se pode falar tudo em qualquer circunstância, qualquer um não pode falar de qualquer coisa[20]".
Por mais que o discurso se apresente despretensioso, as interdições que o atingem revelam logo sua ligação com o poder. O qual emerge na forma de um monólogo, suprimindo-se o contraditório, “não há debate, não há atrito: todo e qualquer discurso legitimante da pena é bem aceito e imediatamente incorporado à massa argumentativa dos editoriais e das crônicas[21]”.
Dentro desse cenário, muitas vezes, a divulgação reiterada de crimes, através de métodos sensacionalistas por alguns veículos de comunicação, acaba por potencializar um clima de medo e insegurança.
O compromisso da imprensa – cujos órgãos informativos se inscrevem, de regra, em grupos econômicos que exploram os bons negócios das telecomunicações – com o empreendimento neoliberal é a chave da compreensão dessa especial vinculação mídia sistema penal, incondicionalmente legitimante. Tal legitimação implica a constante alavancagem de algumas crenças, e um silêncio sorridente sobre informações que as desmintam. O novo credo criminológico da mídia tem seu núcleo irradiador na própria idéia de pena: antes de mais nada, crêem na pena como rito sagrado de solução de conflitos[22].
O indivíduo é “adestrado” pelo poder midiático, que lhe internaliza “o repúdio a tudo o que se refere à política. Incrementado pelo entretenimento e divertimento diários (futebol, novelas, etc.) que desviam a atenção das questões importantes da vida política, tornando-as tediosas[23]”, afastando-se assim de sua condição de sujeito de direito, tornando-se apenas, mero consumidor.
Como referido anteriormente, o medo e a sensação de insegurança são predominantes na modernidade líquida, o que ao lado da campanha midiática no sentido de supervalorizar a violência, explica em parte a banalização do direito penal, como forma de resolução dos conflitos.
O que ocorre é uma sociedade que tem a segurança como pressuposto de legitimação do poder, razão pela qual o clamor social e as expectativas dos indivíduos se direcionam ao Direito Penal. Por isso, a realidade, impulsionada pela mídia e publicização dos riscos, provoca a expansão do Direito Penal com o escopo simbólico de por fim à insegurança dos indivíduos[24].
Como exposto na citação acima, o direito penal passa por um processo de expansão, principalmente pela criação de normas penais, com fins essencialmente eleitoreiros, uma vez que o ambiente é propício para se criar na população a impressão da existência de um legislador atento à questão da violência, capaz de dá resposta imediatas aos anseios populares no que tange o combate à criminalidade[25].
Os argumentos normalmente invocados para se justificar a aprovação destas normas de enrijecimento das penas, não se revestem de criticidade, uma vez que são constituídos essencialmente por acontecimentos episódicos, como um crime de grande repercussão social, e de “dados”, empiricamente não demonstrados, como a tese do aumento da criminalidade, que se relaciona muito mais ao poderio midiático na exploração dos delitos de forma “espetacular”, do que necessariamente à realidade concreta. “Pouco importa que a criminalização provedora seja uma falácia, uma inócua resposta simbólica, com efeitos reais, atirada a um problema real, com efeitos simbólicos[26]”, mantêm-se assim o círculo da indústria do medo da insegurança, uma vez que, os medos coletivos são tranquilizados, resgata-se a confiança nas instituições e na capacidade do Estado no enfrentamento da questão, contudo sem alterar a configuração social, que em verdade, é a grande causa da violência estrutural existente em nossa sociedade.
Assim, o Direito Penal, como instância de controle formal, torna-se cada vez mais, fruto e instrumento do pensamento da classe dominante, em defesa do sistema econômico vigente, e não da nação como um todo, o qual é direcionado para as classes subalternas, com baixa capacidade econômica, a já visto que, a população carcerária brasileira, é constituída, em sua grande maioria, de pessoas das classes mais baixas.
É a força da classe que está no topo da pirâmide da sociedade, que detém o poder econômico e os meios de produção contra os que não se encaixam na lógica do capitalismo. Partindo desta premissa, o discurso construído visa “neutralizar” as classes subalternas, visando estabelecer uma espécie de “ordem”, na qual o ambiente é “organizado” de uma forma que, aqueles que detêm poder de consumo tenham a primazia, como bem explica Aury Lopes Júnior:
A visão de ordem nos conduz, explica BAUMAN, à de pureza, a de estarem as coisas nos lugares “justos” e “ convenientes”. É uma situação em que cada coisa se acha em seu justo lugar e em nenhum outro. O oposto da pureza (o imundo, o sujo) e da ordem são as coisas fora do seu devido lugar. Em geral não são as características intrínsecas cãs coisas que as transformam em “sujas”, senão o estar fora do lugar, da ordem. Exemplifica o autor com um par de sapatos, magnificamente lustrados e brilhantes, que se tornam sujos quando colocados na mesa das refeições. Ou ainda, uma omelete, uma obra de arte culinária que dá água na boca quando no prato do jantar, torna-se uma mancha nojenta quando derramada sobre o travesseiro. O exemplo é interessante e bastante ilustrativo, principalmente num país como o nosso , em que vira notícia no Jornal Nacional o fato de um grupo de favelados terem “descido do morro” e “ invadido” um shopping center no Rio de Janeiro. Ou seja, enquanto estiverem no seu devido lugar, as coisas estão em ordem, mas, ao descerem o morro e invadirem o espaço da burguesia, está posta a (nojenta) omelete no travesseiro. Está feita a desordem, a quebra da organização do ambiente[27].
A relação entre mídia e direito penal torna-se cada vez mais estreita, não sendo plausível ao estudioso do direito ignorar tal axioma. Um bom exemplo disso é o processo de criminalização tácita, realizado pelos meios de comunicação ao MST (Movimento Trabalhadores Rurais Sem-Terra), o que demonstra toda vilania da imprensa brasileira, que nunca o viu como, um movimento popular legítimo, mas sim, como um bando de camponeses vagabundos, perturbadores da ordem, que não respeita o direito à propriedade, desconsiderando, porém, o pré-requisito previsto na Constituição de função social desta garantia constitucional.
Esta relação se revela não apenas na produção, organização e difusão de argumentos punitivos, mas também na demarcação, através da propaganda, do espaço destinado a cada classe, o que na prática significa, que se um indivíduo miserável penetrar em um ambiente destinado aos membros das classes privilegiadas, este representará uma ameaça, motivo pelo qual deverá ser constantemente observado.