Da autonomia privada

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1.1 Autonomia Privada como princípio

Para conceituar “autonomia privada” parte-se de dois elementos: configuração do ordenamento jurídico pátrio e a experiência histórica local. O primeiro delineia autonomia privada a partir do grau intervencionista em que o aparelho estatal pautar-se; o segundo justifica o modelo de autonomia privada adotado tendo em vista os sucessos e fracassos dos modelos anteriormente implantados. Dessa forma, não basta generalizar o conceito em tela porquanto não há unicidade entorno do seu significado, o qual pode consistir tanto em um ato quanto em uma atividade (PERLINGIERI, 2008, p. 334).

No Brasil, com a introdução da Constituição Federal de 1988, viu-se mitigar aqueles institutos civilistas dotados de extrema individualização e liberdade plena à medida que a base principiológica da Carta Magna consolida-se em novas configurações interpretativas através da atuação do Estado voltada para a coletividade, para a função social, para a dignidade da pessoa humana e para a igualdade material entre as partes interessadas.

Nesse sentido, chama-se de constitucionalização do direito civil o processo de adaptação interpretativa, a partir das regras e princípios da Constituição e das leis de direito privado sem que para isso houvesse reformulação na legislação, a qual começa a envolver-se com o manto protetivo constitucional, constituído por orientações de solidariedade econômica, social e familiar nos negócios jurídicos entre particulares, não obstante a identidade privativa dessas composições.

Pois bem, compreendendo-se que a constitucionalização no âmbito do direito civil arrefeceu o princípio da autonomia da vontade - em que o poder das partes determinavam livremente seus negócios jurídicos -, somado ao surgimento dos fundamentos constitucionais de ordem econômica sobre os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e em conjunto com o artigo 421 do Código Civil de 2002 que estabelece a intervenção estatal sobre os desígnios da função social do contrato na liberdade de contratar, renasce o signo da autonomia privada como um princípio configurado pela roupagem da nova ordem constitucional.

Entendendo a autonomia privada como princípio, permite-se destacar a:

força normativa dos princípios jurídicos, que têm incidência própria e direta sem interposição do legislador ordinário, sejam eles constitucionais ou não, legalmente explícitos ou implícitos. [...] Não obstante, [...] nenhum princípio é absoluto ou ilimitado. Sempre sofrerá a concorrência de outros princípios, o que impõe ao intérprete a tarefa de harmonização [...]. (LÔBO, 2012, p. 56-57).

No âmbito legiferante, caracteriza-se por seu conteúdo propositalmente indeterminado, de modo a realizar-se plenamente em cada caso concreto, assim as circunstâncias do fato orientam seu alcance. Aqui, melhor exemplo não há senão a validade jurídica dos contratos atípicos cujo fundamento nuclear mais puro é a incidência da autonomia privada em sua essência privada: “o princípio da autonomia da vontade serve de fundamento para a celebração dos contratos atípicos” (GONÇALVES, 2012, p. 34). Assim, reza o artigo 425 do Código Civil: “É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código” (BRASIL, 2002).

No âmbito jurisdicional, lida-se com os modelos abertos de interpretação e conceituação indeterminada que ajudam na ampliação do processo de subsunção do fato à lei através do livre poder de convencimento do juiz ao realizar o exercício hermenêutico argumentativo e o uso da ponderação epistemológica cuja margem de incertezas nos tribunais ao ter que analisar cada caso concreto como único é o preço a ser pago pela constante adaptação do direito às mudanças sociais em que a qualidade de adaptação dos princípios permite alcançar com mais eficiência (LÔBO, 2012, p. 56).


1.2 Conceito de Autonomia  Privada     

Dentre a bibliografia analisada para este trabalho, detidamente à parte civilista, o conceito de autonomia privada trazido por Pietro Perlingieri em “O Direito Civil na Legalidade Constitucional” mostrou-se ser possuidor de maior precisão conteudista: “[...] o poder reconhecido ou atribuído pelo ordenamento ao sujeito de direito público ou privado de regular com próprias manifestações de vontade, interesses privados ou públicos, ainda que não necessariamente próprios” (PERLINGIERI, 2008, p. 338).

Para melhor compreensão, faz-se necessário discorrer por partes sobre o trecho supratranscrito da obra do nobre autor. Primeiramente, entender que autonomia, em uma escala imaginária e gradual de liberdade, estaria abaixo do termo independência, esta entendida como sendo o sujeito livre de ordens de outrem, soberano em suas vontades.

A autonomia privada entendida como “poder reconhecido ou atribuído pelo ordenamento” faz presumir que é uma concessão de atribuições legitimadas pretérita ou posteriormente pela sistemática jurídica, ou seja, a autonomia privada somente é válida se suas disposições estiverem alinhadas com o direito seja porque partiu do direito a regulamentação em transigir, seja porque partindo-se da deliberação voluntária dos particulares, ao levar-se ao conhecimento dos órgãos públicos competentes, estes deverão validar ou não as manifestações de vontade de acordo com os parâmetros jurídicos. No mesmo sentido, esse poder de autorregulação reconhecido ou concedido pelo ordenamento pressupõe que há um processo de filtragem, sob aspectos constitucionais protetivos, que limita e circunscreve o campo de atuação dos particulares quando da transferência desse poder de regular.

O trecho “ao sujeito de direito público e privado” permite inferir que a autonomia privada não é própria somente das manifestações dos agentes privados, mas também dos agentes de direito público representantes do Estado. Bem como, mesmo ao ente público, a autonomia não é arbitrária, mas dosada pela mesma filtragem de orientações e limitações. Aqui cabe um aditamento sobre o entendimento anterior de que os conceitos do que é público e do que é privado partiam-se da identificação da natureza dos sujeitos (agente público ou privado) que participam da manifestação de vontade - critério subjetivo -, contudo, hoje, a identificação do ato é feita, segundo o critério do ato ou atividade possuir caráter público ou privado, conforme a natureza preponderante do conteúdo e dos interesses envoltos - critério objetivo.

O trecho “regular com próprias manifestações de vontade” representa o cerne da conceituação na medida em que a autonomia privada possui como núcleo significante a deliberação dos envolvidos em acordar determinadas vontades com base em regras ajustadas entre si autonomamente.

E, por fim, o trecho “interesses públicos ou privados, ainda que não necessariamente próprios” traz o entendimento de que a autonomia privada não exclusivamente se fecha a interesses de cunho privado que, sob perspectiva individualista, colocavam o patrimônio dos indivíduos no centro do ordenamento. Isso porque a constitucionalização rompeu essa relação estritamente biunívoca entre autonomia e interesse privados, na medida em que, como exposto no tópico anterior, a tutela do Estado democrático de direito é legítima para intervir em manifestações privadas tanto nos casos em que o Estado participa ativamente dessas manifestações como parte, quanto nos casos em que se orienta apenas como observador-garante da probidade e legalidade dos procedimentos volitivos privados. 

Data máxima vênia, o distinto autor Perlingieri afirmou nessa mesma obra que o conceito de “autonomia privada” analisado acima tem maior precisão quando usado o termo “autonomia negocial” em vez de “autonomia privada”. Contudo, entendo que deve ser mantido como signo a “autonomia privada” uma vez que é necessário se tornar pacífico o entendimento de que a palavra “privado”, no contexto do Estado democrático de direito, não mais possui o significado de outrora - liberdade plena dos indivíduos de autorregularem-se -, mas sim deve ser compreendida como um espaço concedido aos sujeitos de transigirem-se sob cuidados da força normativa dos princípios constitucionais e dos ideais universalistas e igualitários da tutela estatal.

“A autonomia privada distancia-se da vontade interior e atribui primazia a sua exteriorização e à limitação posta pelo ordenamento jurídico por exigências de justiça social” (LÔBO, 2012, p. 58) e, por isso, não pode ser confundida com autonomia da vontade, a qual dispõe e dá maior relevância à vontade individual na sua dimensão psicológica, por invocar a pretensão dos sujeitos em que se destaca a liberdade de se iniciar algo sem a intervenção do Estado enquanto intenção íntima, uma instância pré-jurídica.


1.3 Do lugar da Autonomia Privada

A autonomia privada deve ser situada como gênero quando presente o termo “autonomia contratual”. Este “acolhe exclusivamente aquelas atividades nas quais há a realização de negócios bi ou plurilateral com conteúdo patrimonial” (PERLINGIERI, 2008, p. 338). Já a autonomia privada engloba, além da autonomia contratual, os “negócios com estrutura unilateral e com conteúdo não patrimonial” (PERLINGIERI, 2008, p. 338).

Todavia, doutrinamente afirma-se que a imprecisão terminológica de “autonomia privada” remete a uma limitação de significado ao suprimir aquelas situações em que sujeitos não privados realizam atos autonomamente. Nesse sentido, o termo “autonomia negocial” surge como alento a esses pensadores que coadunam com a compreensão de que assim essa expressão “postula a credibilidade científica e operativa do conceito de negócio jurídico (PERLINGIERI, 2008, p. 338).

Na contramão dessa aderência doutrinária em massa ao termo autonomia negocial, entendo ser preciosa a manutenção do signo “autonomia privada” na medida em que a incidência da constitucionalização na seara civilista trouxe a novação hermenêutica de todos os seus institutos sem que para isso fosse necessária a reforma literal das suas palavras na legislação senão a mudança de paradigma interpretativo desses mesmos institutos, mostrando assim a força jurídica que o estudo e o aprendizado sistemático do direito peculiarmente permite realizar, sem que para tanto todo o arcabouço de nomenclaturas e terminologias precisassem ser reescritos.

Após situar a autonomia privada como gênero na teoria dos atos e da atividades jurídicas negociais, salutar é trazer as duas correntes teóricas que introduziram os primeiros entendimentos acerca do significado de autonomia privada: a Teoria Voluntarista e a Teoria Preceptiva/Normativa.

A primeira considera que o ato de autonomia é vinculante à real vontade do sujeito quando da sua expressão de vontade, tal manifestação é digna de tutela no limite em que a vontade explicitada for coerente à efetiva vontade interior do declarante, em outras palavras, o referencial da autonomia encontra-se na vontade interna e não necessariamente àquela manifestada. Já a segunda confia à autonomia sua incidência sobre o conteúdo publicizado do declarante e não sobre o que ele desejou internamente (PERLINGIERI, 2008, p. 340-341).

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Ora, verifica-se acertos e incongruências nessas duas correntes doutrinárias:

Na Teoria Voluntarista, apesar de possuir ampla aceitação doutrinária, a crítica inicial dava-se por sacrificar uma possível proteção aos destinatários das ofertas dos declarantes ao julgo da vontade interna destes, podendo haver avaliação mais clara somente sob os desdobramentos subjetivos de vício, que recai sobre a intenção de prejudicar. Por um lado acerta, partindo-se do pressuposto da vigência da Teoria Voluntarista, porque a vontade de prejudicar dos contraentes estaria mais exposta porquanto o foco está centrado no querer interno. Por outro lado, tal teoria prejudica a exigência de segurança e de lealdade na circulação dos bens, seja pelos ditames do brocardo latino pacta sunt servanda, seja pelos desígnios do princípio da confiança, exceto nos casos de vícios de consentimento resultante de erro, dolo, coação, simulação ou fraude em que a anulação independe da teoria adota.

A Teoria Preceptiva se orienta no sentido de que o contrato deve ser cumprido não apenas pelo fato de as partes terem firmado o negócio jurídico, mas pela sua consequência socioeconômica. Essa teoria desenvolve-se em torno das relações recíprocas de condutas alinhadas, fruto da expectativa do correto cumprimento das vontades exteriorizadas para então satisfazer as funções socioeconômicas sem o dirigismo estatal, isto é, a precepção da norma permite, além do reconhecimento da obrigatoriedade contratual, que o negócio possua segurança jurídica necessária para que as relações comerciais tenham reflexos na harmonia econômica e social entre as partes porque interessa à sociedade a tutela das situações objetivamente geradas, bem como salienta-se a observância do que fora efetivamente acordado sem precisar recorrer à figura da intenção firmada na época do negócio. Embora essa teoria tenha nascido promovendo uma igualdade formal entre as partes, que ao firmarem um consenso, dispõem de obrigações impostas como lei entre os contratantes, não consideraram possíveis desproporcionalidades de forças reais dos participantes que hoje se deve observar:

A atual legislação social e interventora que afasta a igualdade formal e, com base na desigualdade substancial de fato existente entre os sujeitos, tende – através de uma regulamentação devida não à vontade das partes, mas, sim, à intervenção do Estado ou de um poder de qualquer modo estranho àquele dos sujeitos – a privilegiar a parte mais vulnerável em relação à outra mais forte. Se deixasse a possibilidade de autorregulamentação aos sujeitos interessados, provavelmente o resultado seria oposto, no sentido de que seria mais favorável ao contratante forte: o legislador intervém para estabelecer uma disparidade de tratamento a favor do contratante mais vulnerável com a intenção de colocar os sujeitos em um plano de igualdade substancial de direito. (PERLINGIERI, 2008, p. 344).

Merece, portanto, hoje ser revisitada na medida em que o contrato assumiu um fundamental valor normativo, às vezes de superior estima à própria lei, pois há o fenômeno da “objetivação” do negócio jurídico:  

[...] o qual indica que o regulamento negocial, uma vez concretizado e tomado socialmente perceptível, acaba por ter existência tendencialmente autônoma em relação à vontade do autor ou dos autores do próprio negócio (PERLINGIERI, 2008, p. 340).

Desse modo, uma vez assinado pelas partes, o contrato personifica-se porquanto o aspecto econômico não é privativo dos contratantes mas também compartilhado em nível de tutela coletiva, sob direção do pacta sunt servanda, como ato ou atividade negocial detentora de um valor em si próprio, um regulamento de cumprimento obrigatório e dotado de interesses recíprocos, um objeto cuja existência, uma vez plubicizada, possui lugar autônomo e é possuidor de características e razão de ser próprias, transcendente, voltado para o vislumbre do interesse público do qual o contrato é regido e circunscrito por liames da moral e do bom costume.

Hodiernamente vige o que pode se chamar de uma moderna concepção da Teoria Voluntarista que foi introduzida pelo Código Civil, art. 112, com a seguinte redação: “Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido da linguagem” (BRASIL, 2002). Verifica-se, portanto, um hibridismo entre as teorias voluntarista e normativa com predominância da primeira teoria sem contudo excluir a segunda na medida em que o Código Civil de 2002 possui diretrizes modernas baseadas no poder de adaptação e constante amadurecimento jurídico dos termos positivados. Esse pensamento de inclusão entre intenção e prescrição normativa, permite ao judiciário obter maior alcance do controle dos contratos a fim de promover a igualdade substancial por meio da ponderação entre autonomia privada, legislação e interesse público.

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