Da autonomia privada

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1.4 Desdobramentos da  Autonomia Privada

É possível constatar reflexos da autonomia privada em distintas esferas das atividades em sociedade: no jusnaturalismo da liberdade individual e no liberalismo econômico aliado às relações mercantis.

O jusnaturalismo da liberdade individual se apresenta como um direito inerente ao ser humano, em que a liberdade mais primitiva de um ser é possuir certo dirigismo em suas ações, livre de amarras externas sobre sua vida e vontades. Na vida em sociedade esse campo é discricionário, não arbitrário. Para tanto, a autonomia aqui se insere como uma forma de expressão do indivíduo que possui em sua natureza um valor em si capaz de decidir e se manifestar consensualmente com seus pares. Em outras palavras, a autonomia privada permite que as atividades dos sujeitos sejam formas exteriorizadas de expressão da própria liberdade porquanto mostra ser um aparelho motriz de cada regulação de interesses recíprocos e conscientes.

O liberalismo econômico aliado às relações mercantis possuem estreita ligação com a autonomia privada porquanto a dinâmica das relações econômicas requerem a imediatidade que a intervenção intermitente do Estado nem sempre conseguiu acompanhar:

[...] pois que, em todos os tempos, a velocidade da vida econômica e as necessidades sociais estimularam a criação de toda uma tipologia contratual que o legislador não pode prever, e que os Códigos absorveram após a prática corrente havê-la delineado (GONÇALVES, 2012, p. 34).

Nesse interim, o capitalismo desenvolto por meio da industrialização crescente somado ao surgimento de sociedades empresariais, conduziu à defasagem entre os contratantes. O liberalismo está intimamente ligado ao ato da iniciativa privada de negociar já que este ato dispõe de uma manifestação de vontade ou exteriorização da pretensão de alcançar um resultado desejado. Desse modo, a autodeterminação individual é protagonista nas ações em que envolvem a autonomia privada sobre as relações mercantis como fonte de expressão jurídica sempre que essa autorregulação esteja sob a observância dos limites estabelecidos pelo ordenamento.


1.5 Relativização da  Autonomia Privada

Com a presença do Estado democrático de direito e a positivação acerca dos direitos sociais, a liberdade que o ordenamento defere ao indivíduo para gerar efeitos jurídicos por meio da autonomia privada tem sofrido limitações na autonomia de vontade devido à prevalência do interesse social. A explicação acerca da mitigação do decisionismo dos contraentes fica a cargo da primazia do interesse público frente o privado porquanto prospera a verificação na história de que sem a regulamentação estatal, a dinâmica econômica entre as partes propicia desproporcionalidades de prevalências de vontades dos mais fortes sobre os mais fracos. Experiências anteriores mostraram que o liberalismo econômico extremo dotado de individualismo e da busca pelo lucro a qualquer custo não alcançou o escopo da universalização de oportunidades almejado.

Da mesma sorte, a limitação exclusivamente negativa a que o Estado foi imposta pelos revolucionários caracterizou-se “com a predominância do individualismo e a pregação de liberdade em todos os campos, inclusive no contratual” (GONÇALVES, 2012, p. 33) e, assim, fez-se presente também no liberalismo econômico e político, que sem dúvidas teve seus méritos por se contrapor ao Regime Antigo que o precedeu. Contudo, uma vez assentado o ideal de liberdade do indivíduo, essa limitação apenas negativa do Estado tornou-se incompatível com os fundamentos de um Estado social, pois o individualismo proclamou a liberdade e a igualdade política sem assegurar a igualdade econômica.

Notadamente sintetizada pela observância da justiça social, prescreve a Constituição Federal de 1988 no artigo 170 em relação à atividade econômica, bem como o Código Civil de 2002 no artigo 421 cujo conteúdo expressa que a razão de ser da liberdade de contratar é a promoção da função social (LÔBO, 2012, p. 62).

Progressivamente surgiram os modelos jurídicos concernentes à limitação positiva em que se prima pela atuação de ofício e intervencionista do Estado sob o prisma de um bem maior, o interesse público. Rege-se, assim, o acompanhamento estatal nas atividades dos particulares, especialmente as de cunho econômico, mas não se bastando nessas.

Faz-se assim mister a intervenção do Estado em certas áreas estratégicas para estabelecer e assegurar a igualdade entre os contratantes, já que a ampla liberdade de contratar causava desequilíbrios e exploração do economicamente mais fraco. Nesse diapasão, os direitos sociais tomaram frente ao movimento de consolidação da proteção estatal a partir de leis destinadas a garantir a supremacia da ordem pública, da moral e dos bons costumes.

A intervenção do Estado na vida contratual é hoje tão intensa em determinados campos que se configura, por vezes, em um verdadeiro dirigismo contratual. Essas limitações positivas que propiciam a regulamentação legal e a revisão judicial ao exercício da autonomia privada incidem sobre: a liberdade no âmbito contratual, abrangendo a escolha de quem contratar e sobre o conteúdo dos contratos, parcial ou totalmente.

Argumentos em contrário afirmam que ao Estado cabe intervir para o necessário equilíbrio entre as partes materialmente distintas de autonomia e poder, através do estabelecimento por parte do legislador e do magistrado de disparidades de tratamento a favor do contratante mais vulnerável porquanto não há lugar para a plena liberdade ou consciência dos sujeitos.

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Apesar de ser sedutor para o capitalismo, em um lado da balança tem-se o discurso empresarial em que se insere a crítica ao dirigismo contratual do Estado que por vezes emperra a liberdade e o desenvolvimento econômico inerente de celeridade procedimental e que visa o lucro imediato. Tal sacrifício, por sua supressão ou mitigação através da burocratização dos procedimentos e da nulidade de disposições contrárias à coletividade, é válido quando se pesa o outro lado da balança, em que se mostra essencial a atuação do “estado social de direito voltado à solidariedade, à igualdade, ao respeito da pessoa e sua dignidade; [...] nem tudo que é desejado pelas partes é merecedor de tutela razoável e proporcional” (PERLINGIERI, 2008, p. 343), na medida em que quanto maior o interesse social, menor será a autonomia das vontades.

Portanto, a fim de elucidar o papel contemporâneo do Estado frente à autonomia privada, cita-se o trecho da obra “Instituições de Direito Civil” de Caio Mário da Silva Pereira (2012, p. 24), que apesar de ater-se sobre a autonomia contratual nesta afirmação, apresenta um sentido genérico de identificação dos ditames da autonomia privada:

[...] medrou no direito moderno a convicção de que o Estado tem de intervir na vida do contrato, seja mediante a aplicação de leis de ordem pública, que estabelecem restrições ao princípio da vontade em benefício do interesse coletivo, seja com a doação de uma intervenção judicial na economia do contrato, instituindo a contenção dos seus efeitos, alterando-se ou mesmo liberando o contratante lesado, por tal arte que logre evitar que por via dele se consume atentado contra a justiça.

Mostra-se de suma importância, portanto, o papel do Estado como protagonista dos atos e atividades próprios da autonomia privada, atuando como garantidor da correta forma dos negócios jurídicos, sob a compreensão do atual entendimento de que “[...] o contrato, que reflete por um lado a autonomia da vontade, e por outro submete-se à ordem pública, há de ser conseguintemente a resultante deste paralelogramo de forças, em que atuam ambas estas frequências” (PEREIRA, 2012, p. 23).


REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 21.11.2014.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro: contratos e atos unilaterais. 9. ed. São Paulo: Saraiva. 2012.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil.: Contratos. Rio de Janeiro: Saraiva, 2011.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco – Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

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