Sumário: Introdução. 1. Das normas gerais sobre licitação 1.1 Licitação obrigatória e facultativa 1.2 Licitação não obrigatória para o desempenho de atividade fim das empresas estatais 2. Licitação para empresas públicas e sociedades de economia mista 2.1 A atuação do Estado como agente econômico em sentido estrito 2.2 Da ausência de estatuto jurídico aplicável às empresas estatais 2.3 Da interpretação sistemática das normas 3. As regras licitatórias aplicáveis especificamente à Petrobras S/A 3.1 Procedimento Licitatório Simplificado, previsto na lei nº 9.478/97 e regulamentado pelo Decreto nº 2.745/98 3.2 O entendimento do TCU X STF. Considerações finais. Referências.
INTRODUÇÃO
Antes de adentrarmos ao mérito deste trabalho, mister deixar consignado o que vem a ser uma empresa pública e o que vem a ser uma sociedade de economia mista, traçando seus laços gerais.
As Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista são pessoas jurídicas de direito privado, integrantes da Administração Indireta, instituídas pelo Poder Público, mediante autorização de lei específica, criadas para exploração de atividades de natureza econômica ou prestação de serviços públicos. Tais entidades são denominadas pela doutrina pátria como empresas estatais.
Estas empresas estatais, quando criadas com o objetivo precípuo de permitir ao Estado a exploração de atividades econômicas, são como bem leciona o Professor José dos Santos Carvalho Filho “verdadeiros instrumentos de atuação doEstado no papel de empresário”.
O art. 173 da CF é claro ao prescrever que a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definido em lei.
Não obstante tais entidades estejam intimamente interligadas à idéia de exploração de atividade econômica, de cunho tipicamente lucrativo, há empresas públicas e sociedades de economia mista que prestam serviços públicos, sujeitando-se, portanto, ao regime aplicável às demais entidades da Administração Pública direta e indireta, regime este distinto das empresas estatais que se dedicam a atividade econômicas, especialmente em razão do princípio da continuidade do serviço público.
Com esse breve intróito, pode-se concluir que as empresas públicas e sociedades de economia mista são entidades de natureza híbrida. Formalmente são pessoas jurídicas de direito privado. Todavia, não estão submetidas integralmente às regras pertinentes as empresas privadas. Para determinar a predominância do regime jurídico aplicável a essas entidades, necessário se faz analisar a natureza do seu objeto e de suas atividades.
É com essa breve introdução, a respeito da natureza jurídica híbrida das empresas públicas e sociedades de economia mista, que iniciaremos esse trabalho, com um olhar crítico maior focado na Petrobras e seu procedimento licitatório simplificado.
1. DAS NORMAS GERAIS SOBRE LICITAÇÃO
1.1 LICITAÇÃO OBRIGATÓRIA E FACULTATIVA
A regra geral presente em nosso ordenamento jurídico, determinada pela própria Carta Magna, é a obrigatoriedade de licitação previamente à celebração de contrato administrativo que vise à realização de obra, à prestação de serviço, à compras, a alienações, concessões e permissões.
Existem, entretanto, determinadas hipóteses em que, legitimamente celebram-se contratos administrativos através de contratação direta, sem prévio procedimento licitatório. Há, portanto, situações em que, pelas circunstâncias, torna-se impossível a realização de licitação e outras que, embora exista viabilidade jurídica de competição, a Lei autoriza a celebração direta do contrato ou mesmo determina a não realização do procedimento licitatório – segundo critério de conveniência e oportunidade da própria administração.
A par disso, um dos temas mais tormentosos do Direito Administrativo gravita em torno da dispensa e inexigibilidade de licitação. Acerca do assunto, todo cuidado é devido pelo operador do Direito que atua na área, uma vez que a Constituição Federal estabelece como regra a obrigatoriedade de licitação para obras, compras, serviços e alienações da Administração Pública. Nesse sentido, dispõe o já conhecido art. 37, inc. XXI, do texto constitucional:
"ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, a qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações".
Contudo, em algumas situações previamente estabelecidas pela legislação, a regra de licitar cede espaço ao princípio da economicidade ou outras razões que revelem nítido interesse público em casos em que a licitação é dispensada ou considerada inexigível. De acordo com Jorge Ulisses Jacoby Fernandes isso ocorre porque "o princípio constitucional da licitação, como todas as regras de Direito, não têm valor absoluto, devendo ser coordenado com os outros princípios do mundo jurídico" 1
Percebe-se que as freqüentes contratações públicas demandam valores incalculáveis e verifica-se que nem sempre é respeitado o princípio da economicidade, que é a busca permanente pelos agentes públicos da melhor alocação dos recursos públicos, adequando-se as contratações à relação custo-benefício. Nestes termos, muitas vezes é mais vantajoso para a Administração Pública contratar determinada empresa através de contratação direta, por meio de dispensa ou inexigibilidade de licitação.
A "licitação dispensável", insculpida nos incisos do art. 24 da lei n. 8.666/93, verifica-se em situações em que, embora teoricamente seja viável a competição entre particulares, o procedimento licitatório afigura-se inconveniente ao interesse público. Isso ocorre porque, em determinados casos, surgem circunstâncias especiais, previstas em lei, que facultam a não realização da licitação pela administrador, que em princípio era imprescindível.
Dentre as hipóteses previstas no art. 24 da mencionada Lei, que são taxativas, destacam-se a dispensa em razão do baixo valor; pelo advento de situações excepcionais, como guerra, grave perturbação da ordem, calamidades; nas hipóteses de licitação deserta ou fracassada; na contratação do fornecimento ou suprimento de energia elétrica com concessionário, permissionário ou autorizado; na aquisição de peças durante o período de garantia; dentre outras.
Em relação à "licitação inexigível", informa o art. 25 da Lei nº 8.666/93 que esta ocorrerá sempre que houver inviabilidade de competição. As hipóteses são meramente exemplificativas. Entretanto, o conceito de viabilidade da competição não é simplisticamente reconduzível à mera existência de uma pluralidade de sujeitos em condições de executar uma certa atividade.
Existem inúmeras situações em que a competição é inviável não obstante existirem inúmeros particulares habilitados a executar a atividade objeto da contratação. Isso se passa inclusive nos casos em que realizar a licitação acarretaria solução objetivamente incompatível com o interesse público.
1.2 - LICITAÇÃO NÃO OBRIGATÓRIA PARA O DESEMPENHO DE ATIVIDADE FIM DAS EMPRESAS ESTATAIS
Ressalte-se que a Constituição Federal, quando alude à obrigatoriedade de licitação não estabelece diferenças entre empresas públicas e sociedades de economia mista prestadoras de serviços públicos ou exploradoras de atividades econômicas, de sorte que, independentemente da natureza da entidade, estão obrigadas a Ilicitar.
Entretanto, essa obrigatoriedade não é absoluta, visto que não alcança os atos tipicamente comerciais ligados ao desempenho de atividade-fim das empresas estatais.
Assim, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal não estão obrigadas a licitar para celebrarem contratos de mútuo ou seguro; os Correios não realizam licitações para a venda de selos; a Embraer (mesmo antes de privatizada) já não vendia seus aviões por intermédio de procedimento licitatório.
As situações acima mencionadas justificam-se porque a licitação é incompatível com a dinâmica do mercado, no qual essas empresas estão inseridas, e acabaria por representar sério entrave ao alcance das finalidades comerciais ou de prestação de serviços buscados por essas entidades. Da mesma forma, vislumbra-se que não estão obrigadas a licitar para aquisição dos insumos necessários ao atendimento de seus precípuos fins.2
Na mesma linha é o entendimento explanado por Celso Antonio Bandeira de Mello: “Ora, quem quer os fins não pode negar os indispensáveis meios. Logo, nestas hipóteses em que o procedimento licitatório inviabilizaria o desempenho das atividades específicas para as quais foi instituída a entidade, entender-se-á inexigível a licitação. Isto ocorre quando suas aquisições ou alienações digam respeito ao desempenho de atos tipicamente comerciais, correspondentes ao próprio objetivo a que a pessoa está proposta e desde que tais atos demandem a agilidade, a rapidez, o procedimento expedito da vida negocial corrente, sem o que haveria comprometimento da boa realização de sua finalidade”.
2 – LICITAÇÃO PARA EMPRESAS PÚBLICAS E SOCIEDADES DE ECONOMIA MISTA
2.1 - A ATUAÇÃO DO ESTADO COMO AGENTE ECONÔMICO EM SENTIDO ESTRITO
Reforçando a asserção constante do caput do artigo 173 da Carta Magna, que estabelece a regra geral segundo a qual o exercício de atividade econômica stricto sensu cabe ao setor privado, devendo o Estado, apenas nos casos previstos em lei ou na própria constituição, atuar de forma direta na economia, como explorador de atividade econômica, portanto, executor de atividade produtiva. In verbis, o artigo em análise:
Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.
A atuação do Estado na economia dar-se-á de maneira subsidiaria, ou seja, somente quando o setor privado não tiver capacidade de atuar suficientemente em determinado setor econômico ou não tiver interesse em produzir em determinado setor, deve o Estado preencher essa lacuna.
Com base nos ditames do artigo em tela, legitimam a atuação do Estado como agente econômico os “imperativos da segurança nacional”, ou “relevante interesse coletivo”, sem que haja necessidade de deficiência de atuação por parte do setor privado, exigindo-se, não obstante, que a lei regule as diretrizes de tais hipóteses.
A atuação direta do Estado no cenário econômico, como regra, é feita por intermédio de pessoas por ele constituída para essa finalidade, como empresas públicas e sociedades de economia mista, que são pessoas jurídicas dotadas de personalidade de direito privado. Assim é porque a atuação no domínio econômico é difícil compatibilizar com a personalidade jurídica de direito público, em face do regime aplicável que é extremamente rigoroso e incompatível com a atividade econômica.
Desta feita, conforme dito em linhas pretéritas, adequada à exploração de atividade econômica é a personalidade jurídica de direito privado, e as empresas públicas e sociedades de economia mista, seja qual for seu objeto, sempre têm personalidade jurídica de direito privado.
2.2 DA AUSÊNCIA DO ESTATUTO JURÍDICO APLICÁVEL ÀS EMPRESAS ESTATAIS
Determina a CF, no art. 22, XXVII, que a União deve estabelecer normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidade, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, nos termos do art. 37, XXI, devendo observar, o disposto no art. 173, §1 (com redação alterada pela EC 19/98) para as empresas públicas e sociedades de economia mista que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços.
Assim, a ressalva feita no art. 173, § 1º da Carta Magna, refere-se às empresas públicas e sociedades de economia mista que atuam na exploração de atividade econômica propriamente dita (de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços de natureza econômica). São entidades que, embora integrantes da Administração Pública em sentido formal, mas se aproximam das pessoas jurídicas de direito privado.
A EC n. 19/1998 não deixa dúvida de que as empresas públicas, as sociedades de economia mista e suas subsidiárias, quando explorem atividade tipicamente econômica, se sujeitarão a regime jurídico específico, a ser estabelecido mediante lei ordinária – estatuto jurídico próprio – que, conforme os ditames do art. 173 da CF/88, abaixo transcrito, disporá sobre:
Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.
§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:
I - sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade;
II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários;
III - licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública;
IV - a constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e fiscal, com a participação de acionistas minoritários;
V - os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores.
§ 2º - As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado.
§ 3º - A lei regulamentará as relações da empresa pública com o Estado e a sociedade.
§ 4º - A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.
§ 5º - A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular.
O §1º, do art. 173 prevê que a lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo inclusive sobre o seu regime licitatório. Ocorre que, esta Lei ainda não foi criada.
O artigo 119 da Lei 8.666/93 fixa normas a serem seguidas pelas entidades da Administração Indireta, determinando que editarão regulamentos próprios, devidamente publicados e aprovados pela entidade de nível superior a que estiverem vinculados, ficando sujeitos à disposições da Lei.
Este tratamento diferenciado funda-se no fato das pessoas jurídicas de direito público estarem sujeitas a normas de operacionalidade mais rígidas que as empresas de direito privado; portanto, aquelas para que possam competir com as demais empresas privadas devem sujeitar-se ao regime próprio das pessoas jurídicas de direito privado e não ao regime rígido das pessoas jurídicas de direito público. 3
Art. 119. As sociedades de economia mista, empresas e fundações públicas e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União e pelas entidades referidas no artigo anterior editarão regulamentos próprios devidamente publicados, ficando sujeitas às disposições desta Lei.
Parágrafo único. Os regulamentos a que se refere este artigo, no âmbito da Administração Pública, após aprovados pela autoridade de nível superior a que estiverem vinculados os respectivos órgãos, sociedades e entidades, deverão ser publicados na imprensa oficial.
Muitos doutrinadores acreditam, contudo, que mesmo a ausência deste estatuto jurídico não torna a Lei no 8.666/93 diretamente aplicável às licitações das estatais que exercem atividade econômica, haja vista a completa ausência de interseção entre seus campos de incidência.
Nestes termos, acredita-se não haver qualquer óbice a que se utilizem procedimentos análogos ao da mencionada lei quando da condução e normatização dos certames licitatórios pelas estatais que praticam atividade econômica.
A criação de um regime jurídico diferenciado, para estas empresas estatais, têm por objetivo evitar o estabelecimento de uma concorrência desleal entre as empresas governamentais (exploradoras de atividade econômica) e as do setor privado, em plena consonância com o princípio da livre concorrência, informador da ordem econômica na atual Carta Magna, insculpido no art. 170, inciso IV.
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
IV - livre concorrência;
Utilizando as palavras de Gustavo Scatolino e João Trindade, atente-se para o fato de que a Constituição não retira das empresas estatais a obrigatoriedade de fazer licitação, apenas admite que observem regras mais simples, a fim de compatibilizar com sua natureza privada e possibilitar a concorrência com as demais empresas do setor.4
O professor Celso Antônio Bandeira de Mello ilustra tal entendimento:
“Com efeito, a Constituição, no §1o do art. 173, estabelece que ‘a lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e suas subsidiárias que explorem atividade econômica (…)
Sem dúvida, a adoção do mesmo procedimento licitatório do Poder Público seria inconveniente com a normalidade de suas atuações na esfera econômica, isto é, não seria exeqüível em relação aos seus rotineiros procedimentos para operar o cumprimento das atividades negociais em vista das quais foram criadas. As delongas que lhe são próprias inibiriam seu desempenho expedito e muitas vezes obstariam à obtenção de negócio mais vantajoso. Dela não haveria cogitar tais casos.”
Analisando este estatuto jurídico conclui-se que o art. 173, §1o trata-se de norma constitucional de eficácia limitada e aplicabilidade mediata, seguindo-se a doutrina do eminente constitucionalista José Afonso da Silva.
Frise-se que, cabe a pertinente ressalva feita por Celso Antônio Bandeira de Melo, que argumenta no sentido de que a exigência de licitação será afastada na rotineira aquisição de seus insumos e na rotineira comercialização dos bens ou serviços que colocam no mercado, ou seja, nas atividades fim.
O entendimento supra é corroborado pelo Tribunal de Contas da União (TCU), o qual em resposta a consulta formulada pelo então ministro da Ciência e Tecnologia, Eduardo Campos, consolidou o entendimento de que só existe a possibilidade de as empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias que explorem atividade econômica dispensarem o uso de licitação para contratação de bens e serviços que constituam sua atividade-fim.
O entendimento do TCU é de que, enquanto essa lei específica não for editada, toda a administração pública se sujeita às regras gerais de licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, conforme expressa previsão constitucional. No entanto, a regular atividade negocial das empresas, que atuam num mercado de concorrência, não pode ser prejudicada pela obrigatoriedade de licitar. Dessa forma, as estatais podem utilizar de uma situação de inexigibilidade quando da contratação de serviços que constituam sua atividade-fim, enquanto não for editado seu estatuto jurídico - que deverá dispor sobre suas regras de licitação.
Assim, por exemplo, em uma sociedade de economia mista que opera em regime similiar aos bancos da iniciativa privada, não se exigirá licitação para promover a venda de produtos e serviços bancários à população em geral. Trata-se da própria atividade-fim para a qual a entidade foi criada, nesse caso, de atuar na excepcional exploração de atividade econômica, conforme permitido pelo texto constitucional.
No que concerne à Petrobras, objeto de estudo deste Trabalho, cumpre salientar que esta Sociedade de Economia mista tem conseguido no STF várias decisões permitindo a utilização de Procedimento Licitatório Simplificado, previsto no art. 67 da Lei 9.478/97 – regulamentado pelo Decreto 2.745/98, dispensando, assim, a utilização da Lei 8.666/93 em qualquer hipótese. No entanto, o TCU considera inconstitucional a aplicação destes dispositivos, reiterando o posicionamento de que enquanto não for criado o estatuto, tais empresas estatais devem observar os ditames da lei 8.666, podendo prescindir de licitação, apenas, para a contratação de bens e serviços que constituam sua atividade-fim.
2.3 DA INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DAS NORMAS
A boa interpretação da norma legal deve: esclarecer seu significado, mostrando sua validade; demonstrar o alcance social da norma, bem como demonstrar que o conflito pode ser resolvido conforme os fins sociais da norma e concretizando valores que levam ao bem comum.
Toda norma precisa de interpretação, por mais óbvio que sejam as palavras do texto, não sendo correto o entendimento constante no antigo brocardo in claris cessat interpretario (as normas claras não precisam ser interpretadas).
É perigosa a análise de uma norma, sem as devidas interpretações que lhes são correlatas, entendo-as apenas no sentido imediato de seus dizeres, sem analisar o contexto em que se encontra o texto, suas razões, conexões histórias e suas finalidades.
Elucidando o tema acerca da interpretação jurídica, traz-se à colação um exemplo citado pelo Professor e novel Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, o qual explica que uma placa em que esteja escrito “Proibida a entrada usando sungas, maiôs, biquínis e similares”, parece conter uma regra clara, cuja interpretação é óbvia. Todavia, o sentido da norma varia de acordo com o contexto. Se a placa for afixada na porta de um restaurante próximo ao mar, a regra extraída do texto é “Para entrar no estabelecimento, vista-se”. Já se a mesma placa for afixada numa árvore, na entrada de uma praia de nudismo, a norma extraída do texto é “Para entrar aqui, dispa-se”.
Como qualquer fenômeno jurídico, envolvendo as contratações públicas e o evidente processo de seleção dos contratados que as antecedem, demanda considerar o ambiente social, econômico, político e jurídico no qual se inserem em um determinado momento histórico. Impossível evadir-se da lição clássica de que o direito é fruto de processo histórico, portanto mutável como a própria sociedade. 5
Cumpre ao operador do direito, quando da análise da aplicação de determinada norma sobre um caso sub judice eleger quais sejam os referentes metodológicos que entende suficientes e necessários a esta operação de compreender o fenômeno jurídico, e dar a ele a aplicação concreta.
Traz-se a baila as palavras do notável jurista Pontes de Miranda:
Hoje, o artigo tal do Código A pode não exprimir, exatamente, o que, no ano passado, exprimia; porque não diz ele o que está nas palavras, mas algo de mutável que as palavras tentaram dizer. Toda codificação é o pródromo de um fracasso: pretende fixar, parar, fotografar, não no espaço, mas no tempo; e muda o próprio objeto, de modo que se há de olhar a realidade de hoje, que é adulta, e o retrato de outrora, para descobrir, não mais a imagem exata, e sim os traços que indiquem a identidade.6
Fazendo uma adequação ao tema, traz-se a colação, ainda, os dizeres da sempre lúcida Maria Berenice Dias:
É necessário adequar a justiça à vida e não engessar a vida dentro de normas jurídicas, muitas vezes editadas olhando para o passado na tentativa de reprimir o livre exercício da liberdade.7
Esta análise parte da evidente e inafastável constatação de que as normas relativas à licitação devem ser analisadas em perspectiva, com base no contexto fático e jurídico vigente. Assim, é necessária a interpretação sistemática das normas licitatórias a fim de enquadrá-las no caso concreto.
A interpretação sistemática analisa normas jurídicas entre si. Pressupondo que o ordenamento é um todo unitário, sem incompatibilidades, permite escolher o significado da norma que seja coerente com o conjunto. Principalmente devem ser evitadas as contradições com normas superiores e com os princípios gerais do direito.
O interprete deve lançar mão, também, do método científico-estrutural que baseia-se na premissa de que o aplicador da lei deve levar em conta os valores subjacentes ao texto constitucional, integrando o sentido de suas normas a partir da “captação espiritual” da realidade da comunidade. Adota-se a idéia de que a interpretação visa não tanto a dar resposta ao sentido dos conceitos do texto constitucional, mas, fundamentalmente, a compreender o sentido e a realidade da constituição, em sua articulação com a integração espiritual da comunidade.
Utilizado as palavras de Alexandrino e Vicente Paulo, o método supra é de cunho eminentemente sociológico, que analisa as normas constitucionais não apenas pelo sentido textual, mas precipuamente a partir da ordem de valores subjacentes ao texto constitucional, a fim de alcançar a integração da Constituição com a realidade espiritual da comunidade. 8
Desta feita, todas as normas relativas ao Procedimento licitatório simplificado aplicável à Petrobrás e a Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos e a qualquer outro correlato à análise terão seu sentido extraído de acordo com a ponderação, partindo sempre do vetor hermenêutico, que é a Constituição Federal e seus princípios norteadores.
Destarte, a vexata questio, qual seja, a possibilidade de utilização de um procedimento licitatório simplificado para a Petrobrás há de nortear-se pela dinâmica da mudança de paradigma da sociedade. As constantes mudanças no contexto social fazem com que o interprete tenha que se adequar a tais parâmetros sob pena de tornar a aplicação normativa obsoleta.
Deve-se compreender que o Estado não exerce suas atribuições da mesma forma que há alguns anos e que os mecanismos e instrumentos de ação estatal também não são os mesmos.
O Procedimento Licitatório Simplificado veio atender à dinâmica do setor, caracterizado por um ambiente de livre competição com outras empresas, onde agilidade é fundamental para o desenvolvimento das atividades operacionais com economicidade e rentabilidade. Na avaliação dos legisladores, a adoção do sistema de licitação imposto pela Lei 8.666/93 é inadequada e incompatível com o ambiente de livre concorrência e também com o princípio constitucional de eficiência.
Passando a haver a livre concorrência na produção de petróleo, principalmente com empresas internacionais de grande porte, não seria adequado forçar a Petrobras às amarras mais apertadas impostas pela Lei 8.666/93. O objetivo foi, então, dar alguma flexibilidade à empresa nos seus atos de contratação de bens e serviços. Desta forma, os contratos da Petrobras são regidos por normas de direito privado e pelo princípio de autonomia.
A Petrobras não desobedece a lei ao adotar em suas contratações o procedimento licitatório simplificado e baseado nesta concepção já obteve junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) dez liminares favoráveis a aplicação do decreto 2.745/98.
Para facilitar o acesso do mercado fornecedor nas compras de materiais e contratações de serviços, bem como proporcionar confiança à Petrobras quanto à qualidade e competência de seus fornecedores, de forma que os mesmos atendam às necessidades empresariais e aos requisitos específicos da área petrolífera, a aludida Sociedade de Economia mista possui um cadastro corporativo de fornecedores de bens e serviços conforme requisitos do Decreto Lei n° 2.745/1998, que regulamenta as licitações na Companhia.
Portanto, o contexto social atual exige procedimentos mais rápidos e menos burocráticos para que entes da administração direta, como empresas públicas e sociedades de economia mista, que exercem atividades de cunho eminentemente privado, possam desenvolver seus trabalhos com maior produtividade para a sociedade.
A afirmativa de ser inadmissível a aplicação de um decreto na regulamentação de licitação, por não ser lei em sentido estrito, âncora que se apega alguns doutrinadores, é insuficiente para por cobre à polêmica.
3 – AS REGRAS LICITATÓRIAS APLICÁVEIS ESPECIFICAMENTE À PETROBRAS S/A
3.1 PROCEDIMENTO LICITATÓRIO SIMPLIFICADO, PREVISTO NA LEI Nº 9.478/97 E REGULAMENTADO PELO DECRETO Nº 2.745/98
Na linha do que já dispusemos, não vislumbramos qualquer óbice a que Estados, DF e Municípios editem suas normas específicas sobre licitação, desde que não violem as regras gerais contidas na Lei no 8.666/93.
Deveras, a própria União pode editar norma específica sobre licitação, desde que essa lei se aplique apenas em âmbito federal.
Isso não é conjectura acadêmica: a União procedeu dessa forma ao editar os arts. 14 a 22 da Lei no11.079/04 (que estabelece normas gerais para licitação e contratação de Parcerias Público Privadas e normas específicas para a própria União, nos artigos mencionados).
Em 1997 foi editada a Lei no 9.478, dispondo sobre a política energética nacional e as atividades relativas ao monopólio do petróleo, instituindo o Conselho Nacional de Política Energética e a Agência Nacional do Petróleo, além de outras providências.
Todo o Capítulo IX desta Lei (arts. 61 a 68) foi dedicado à Petrobras. O art. 67 dispunha sobre o procedimento simplificado, a ser definido em Decreto.
Como se percebe, a Lei em questão estabeleceu para o Sistema Petrobras a necessidade de instaurar procedimento licitatório simplificado previamente à celebração de seus contratos. De eficácia limitada, a lei delegou à autoridade máxima da República a edição de decreto para regulamentá-la.
Em 04/08/1998 (ou seja, após a edição da EC no 19, de 04/06/1998), foi publicado o Decreto no2.745/98, dando plena eficácia à norma do art. 67 da Lei no 9.478/97, como se percebe no item 1.1 do Regulamento.
Nessa linha cronológica, a Lei no 9.478/97, regulamentada pelo Decreto no 2.745/98, é o próprio Estatuto Jurídico de Licitações da Petrobras.
A prática nos demonstra que não é válido qualquer argumento de que o regulamento ser veiculado por Decreto viola a legalidade, já que o Decreto no 3.555/00 (anterior à Lei no 10.520/02) instituiu Regulamento para licitação sob a modalidade de Pregão, consoante dispositivo da sintética MP no 2.026-3, editada em 28/07/2000 (regulamentou o art. 37, XXI, da CRFB instituindo a modalidade de pregão em âmbito federal, e apenas em 2002 foi convertida na Lei no 10.520).
Fazendo um esforço de síntese, percebe-se que a MP no 2.026-3 está para o Decreto no 3.555/00 assim como o art. 67 da Lei no 9.478/97 está para o Decreto no 2.745/98.
Caso também bastante parecido é o da Empresa Brasil de Comunicação S.A., empresa pública de prestação de serviço público com criação autorizada pela Lei no 11.652/08 e com Regulamento Simplificado de Licitação aprovado pelo Decreto no 6.505/08. Logo, não faltam exemplos de decretos instituidores de regulamentos licitatórios.
É com base nestes fatos que, ausente o estatuto de que trata o art. 173, §1o, entendemos que a Lei no 9.478/97, em seu art. 67, funciona como uma lei específica para a Petrobras, estatal que exerce atividade econômica, corroborando, assim, o argumento acerca da constitucionalidade do referido diploma legal.
Não obstante o supra relatado, alguns doutrinadores advogam a tese de que tal dispositivo legal resta inconstitucional, pois afronta o art.22, XVII da Constituição, uma vez que somente a lei formalmente editada pela União poderia versar sobre tal matéria, o que fica definido de forma diversa, quando o art.67 da supramencionada lei estatui que o Decreto Presidencial regulará o procedimento licitatório. Outrossim, segundo competência definida no art.173, §1°, III, também elegeu-se a legislação específica como sendo capaz de versar sobre a matéria licitatória.
Aduzem que, o Decreto Presidencial que versar sobre a matéria invade a competência do Poder Legislativo, art.2° da Constituição. Aceitar tal decreto é admitir a existência do Decreto Autônomo em nosso ordenamento jurídico, o que resta inconcebível.
Aqui, insta reproduzir a feliz ordem de idéias desenvolvida por Marçal Justen Filho:
“Em primeiro lugar, a CF/88 determinou que certas matérias fossem discriminadas por lei. Há explícita referência tanto no art. 22, inciso XXVII, quanto no art. 37, inc. XXI, como no art. 173, § 1º, inciso III, à competência legislativa da União para dispor sobre licitação, contratos administrativos e hipóteses de contratação direta. Essas determinações não significam a vedação à remessa da regulamentação normativa por meio de decreto. Portanto, não há impedimento a que decretos complementem a disciplina contida na lei. Mas não há cabimento em adotar solução equivalente à da delegação de competência pelo Legislativo ao Executivo. Se a CF/88 determina que a lei disporá sobre certo assunto, é inconstitucional que uma lei omita qualquer norma sobre o tema e determine que o tema será objeto de disciplina por meio de regulamentação presidencial.”
O Decreto é, em regra, ato administrativo secundário a que visa dar regulamentação específica a uma determinada lei. É por meio dele que existe a regulação do funcionamento da organização dos setores que abrangem o serviço público.
De toda forma, não pode o decreto legislar contra legem ou além daquilo definido na lei que dá o sentido de sua existência. Deve regulamentar nos exatos termos e limites da lei anterior que o prevê. No momento em que foge do fim delimitado pela Constituição, deve-se ajuizar Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, definido no art.102, §1° da Carta de Lei Maior.
Nota-se que, no caso sub examine, não se observa na relação entre tais atos normativos, igualmente, hipótese de delegação disfarçada, mas de mera regulamentação, eis que o Decreto é mero instituidor de procedimento. Sobre a diferença entre tais institutos, Clèmerson Merlin Clève:
“Não há delegação quando o Executivo apenas detalha os conceitos ou categorias referidos pelo Legislador, ou disciplina os procedimentos utilizados pela Administração nas relações travadas com particular em decorrência de lei. Se o Legislador, nesse caso, poderia exaurir o âmbito de regulação da matéria legislada e não o fez, o Executivo pode regulamentar a lei em virtude de competência própria com ou sem autorização legal (regulamentos de execução: art. 84, IV, CRFB).”
É com base nestes fatos que, ausente a lei geral de que trata o art. 173, §1o, entendemos que a Lei no 9.478/97, em seu art. 67, funciona como uma lei específica para a Petrobras, estatal que exerce atividade econômica.
A própria PETROBRAS na impetração de Mandado de Segurança contra Ato do Tribunal de Contas da União argumenta que vincular os procedimentos licitatórios da companhia aos preceitos da Lei n. 8.666/93 “significa retirar dela os mecanismos que lhe permitem sobreviver em ambiente constitucional e infraconstitucional de livre concorrência e regido em função das condições de mercado, o que fere o princípio da razoabilidade, assim como da eficiência imposto pelo caput do art. 37 da CRFB, contra os quais investe a ilegal e abusiva decisão objeto deste mandado de segurança”.
Dentro do novo posicionamento econômico do país, a nova regulamentação do setor de petróleo norteou-se por princípios constitucionais afetos à ordem econômica (competitividade, livre iniciativa, livre concorrência,). Assim, a Lei nº 9.478/97 ofereceu um novo papel a ser desempenhado pela Petrobras no mercado, o qual impõe a ela não mais o exercício do monopólio estatal do petróleo, mas a participação como agente econômico de mercado com atuação empresarial plena.
3.2 O ENTENDIMENTO DO TCU X STF
São duas as principais justificativas apresentadas pelos doutrinadores que defendem a aplicação da Lei Geral de Licitação – 8.666/93 - às empresas públicas e sociedades de economia mista exploradoras de atividade econômica: a) considera-se que a utilização de recursos financeiros do Estado para o incentivo da entidade, por si só, avocaria o regime jurídico público; b) a Lei Geral de Licitações (Lei nº 8.666/1993) prevê em seu primeiro dispositivo que qualquer entidade controlada pelo Estado estaria sujeita à sua aplicação.
É o que se extrai do voto proferido pelo Ministro Relator Ubiratan Aguiar, no acórdão TCU nº 1.070/2003:
[...] não tenho dúvida, existem entidades privadas que, por alguma razão, podem-se ver impossibilitadas de aplicar, de forma plena, a lei de licitações. Entretanto, a regra é a utilização da Lei nº 8666/93 e as exceções devem ser devidamente justificadas para cada caso concreto. (BRASIL, 2003)
O Tribunal de Contas da União já repudiou a aplicabilidade do Decreto licitatório da Petrobras, como se verifica na Decisão nº 663/2002 – Plenário. Na concepção do TCU a Petrobrás tem que se submeter à Lei nº 8.666/93, enquanto não houver o advento do estatuto previsto n° 173, § 1º da CF/88.
No entanto, o Supremo Tribunal Federal deferiu liminar, mantendo a vigência do aludido Decreto nº 2.745/98, como se constata na ementa a seguir transcrita:
A turma, resolvendo questão de ordem, deferiu medida cautelar para emprestar efeito suspensivo a recurso extraordinário interposto pela Petróleo S/A – Petrobrás contra acórdão do STJ que, também em medida cautelar, restabelecera a eficácia de tutela antecipada que suspendera as suas licitações, as quais utilizavam procedimento licitatório simplificado, previsto na Lei 9.478/97 e regulamentado pelo Decreto 2.745/98. Consideram-se presentes os requisitos necessários à pleiteada concessão. Quanto à plausibilidade jurídica do pedido, asseverou-se que a submissão da Petrobrás a regime diferenciado de licitação estaria, à primeira vista, justificada, tendo em conta que, com o advento da EC 9/95, que flexibilizara a execução do monopólio da atividade do petróleo, a ora requerente passara a competir livremente com empresas privadas, não sujeitas à Lei 8.666/93. Nesse sentido, ressaltaram-se as conseqüências de ordem econômica e política que adviria com o cumprimento da decisão impugnada, caso a Petrobrás tivesse que aguardar o julgamento definitivo do recurso extraordinário, já admitido, mas ainda não distribuído no STF, a caracterizar perigo de dano irreparável. Entendeu-se, no ponto, que a suspensão das licitações realizadas com base no Regulamento do Procedimento Licitatório Simplificado (Decreto 2.745/98 e lei 9.478/97) poderia tornar inviável a atividade da Petrobrás e comprometer o processo de exploração e distribuição do Petróleo em todo o país, com reflexos imediatos para a indústria, comércio e, enfim, para toda a população. (AC 1193 MC-QO / RJ, rel. Min. GILMAR MENDES, 09/05/2006)
A Lei 9.478/1997 – que trata da Política Energética Nacional – prevê, em seu artigo 67, que os contratos celebrados pela Petrobras para aquisição de bens e serviços serão precedidos de procedimento licitatório simplificado, a ser definido em decreto do presidente da República. Todavia, para o TCU, o Decreto 2.745/98, que regulamentou o procedimento licitatório simplificado utilizado nas licitações e contratos realizados pela Petrobras, é inconstitucional
Já para a Petrobras, o TCU não teria competência para declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, prerrogativa exclusiva do STF. Além disso, argumenta que a obediência à decisão do TCU conduziria à prática de ato ilegal, já que a Petrobras é obrigada por lei a utilizar procedimento licitatório simplificado.
O argumento da Petrobras tem por fulcro a inaplicabilidade da súmula 347 do Supremo Tribunal Federal. Referida regra sumular, aprovada em dezembro de 1963, sob a vigência da Constituição de 1946, dispõe que o Tribunal de Contas, no desempenho de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público.
Ocorre que, a validade jurídico-constitucional do mencionado verbete diante da Constituição de 1988 tem sido posta em xeque por julgados mais recentes da Suprema Corte brasileira. Capitaneadas pelo entendimento do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, tais decisões têm afastado a aplicação da citada súmula ao principal fundamento de que o contexto constitucional no qual foi editada diverge substancialmente do atual, sobretudo no que concerne à evolução ocorrida no sistema brasileiro de controle de constitucionalidade.
O Min. Gilmar Mendes, propôs uma revisão desta Súmula no MS 29.123-MC/DF, sob o argumento de que na época em que ela foi feita se justificava essa possibilidade, pois somente o PGR tinha legitimidade para propor ação de inconstitucionalidade. No entanto, a CF/88 ampliou o rol dos legitimados para a propositura de ADIN, não justificando que o Tribunal de Contas, órgão auxiliar do Poder Legislativo realize um controle de constitucionalidade que é função típica do judiciário.
E, superado o argumento supra, destacamos que essa atuação dos Tribunais de Contas não afasta a possibilidade de posterior apreciação da lei ou ato normativo, objeto da controvérsia, pelo Poder Judiciário, se provocado. Desta feita, o ultimato acerca da questão não é do TCU, visto que o STF tem competência para apreciar a matéria.
Segundo a Petrobras, as normas declaradas “inconstitucionais” pelo TCU (Decreto 2.745/98 e Lei 9.478/97) foram editadas para “harmonizar” as atividades relativas ao monopólio do petróleo às novas diretrizes impostas pela Emenda Constitucional n° 9/95, que flexibilizou o monopólio da União sobre a exploração do petróleo.
A aludida Emenda, editada em meados de 1995, usualmente referida como “flexibilização” do monopólio, trouxe o entendimento de que a União, se julgar mais adequado ao interesse público, tem a faculdade de explorar as atividades, correlacionadas com a exploração petrolífera, descritas nos incisos I a IV do art. 177 da CF/88, sob regime de monopólio ou mediante a contratação de empresas privadas.
Portanto, se coaduna com o entendimento supra, o fato de que as atividades descritas nos incisos I a IV do art. 177 podem ter seu exercício, à critério do interesse público da União, contratado com empresas privadas, observadas as condições estabelecidas em lei, conforme art. 177, §1° in verbis:
Art. 177. Constituem monopólio da União:
I - a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos;
II - a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro;
III - a importação e exportação dos produtos e derivados básicos resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores;
IV - o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados básicos de petróleo produzidos no País, bem assim o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de qualquer origem;
§ 1º A União poderá contratar com empresas estatais ou privadas a realização das atividades previstas nos incisos I a IV deste artigo observadas as condições estabelecidas em lei.(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 9, de 1995)
Em análise ao Mandado de Segurança (MS) 28745, a ministra Ellen Gracie9, do Supremo Tribunal Federal (STF), deferiu pedido de liminar feito pela Petrobras contra decisão do Tribunal de Contas da União (TCU) que determinou a aplicação da Lei n° 8.666/1993 – a Lei de Licitação – aos procedimentos licitatórios da autora. Com a decisão da ministra, a determinação do TCU ficará suspensa, até julgamento do mérito, e a estatal continuará a adotar regime diferenciado para realizar licitações.
Conforme o MS, a Petrobras firmou contratos com várias empresas a fim de modernizar e adequar o sistema de produção da Refinaria do Vale do Paraíba (REVAP/SP). Os processos de seleção e contratação dessas empresas foram realizados de acordo com o Decreto 2.745/98, que regula o Procedimento Licitatório Simplificado.
A Petrobras sustenta, em síntese, que a adoção de tal procedimento licitatório “objetiva atender a dinâmica do setor petrolífero, caracterizado por um ambiente de livre competição com outras empresas e regido em função das condições de mercado, onde agilidade é fundamental”. Dessa forma, a adoção do sistema de licitação e contratação contido na Lei 8.666/93 (Lei das Licitações e Contratos Públicos) “seria incompatível com tal ambiente e com o princípio da eficiência, previsto art. 37, caput, da Constituição Federal”.
Segundo a Petrobras, somente o Supremo tem a prerrogativa de declarar, com efeitos erga omnes a inconstitucionalidade do art. 67 da Lei 9.478/97 – que dispõe sobre a política energética nacional, as atividades relativas ao monopólio do petróleo. Por isso, o Tribunal de Contas não poderia extrapolar suas competências, previstas pelo artigo 71, da CF.
Para a ministra Ellen Gracie, neste primeiro exame dos autos, é evidente a plausibilidade jurídica no pedido formulado pela Petrobras. Conforme ela, a submissão legal da empresa a um regime diferenciado de licitação parece estar justificado pelo fato de que, com a relativização do monopólio do petróleo trazida pela Emenda Constitucional n° 9/95, a Petrobras passou a exercer a atividade econômica de exploração do petróleo em regime de livre competição com as empresas privadas concessionárias da atividade, “as quais, frise-se, não estão submetidas às regras rígidas de licitação e contratação da Lei n° 8.666/93”. “Lembre-se, nesse sentido, que a livre concorrência pressupõe a igualdade de condições entre os concorrentes”, completou a relatora.
Assim, a ministra frisou que a declaração de inconstitucionalidade, pelo TCU, do artigo 67, da Lei 9.478/97 e do Decreto 2.745/98, obrigando a Petrobras, conseqüentemente, a cumprir as exigências da Lei 8.666/93, “parece estar em confronto com normas constitucionais, mormente as que traduzem o princípio da legalidade, as que delimitam as competências do TCU (art. 71), assim como aquelas que conformam o regime de exploração da atividade econômica do petróleo (art. 177)”. No mesmo sentido foram as decisões da Corte proferidas nos MS 25986, 26410, 27837 e 27232, entre outros.
considerações finais
Por todo exposto neste breve estudo, e uma vez apresentadas as posições do Tribunal de Contas da União (TCU) e do Supremo Tribunal Federal (STF), parece mais correta àquela favorável à aplicação do regime de licitação simplificado garantido pela Lei nº 9.478/97 e regulamentado pelo Decreto nº 2.745/98. Isso porque, o objetivo da reforma administrativa é coibir o desperdício e racionalizar o gasto público, o que é mais facilmente alcançado com procedimentos mais ágeis e com a livre concorrência.
O argumento do TCU, desfavorável à aplicação do procedimento simplificado cai por terra quando a própria Petrobrás S/A aduz que, as normas declaradas “inconstitucionais” pelo TCU (Decreto 2.745/98 e Lei 9.478/97) foram editadas para “harmonizar” as atividades relativas ao monopólio do petróleo às novas diretrizes impostas pela Emenda Constitucional n° 9/95, que flexibilizou o monopólio da União sobre a exploração do petróleo.
Refutando, ainda, o argumento do TCU, conforme exarado no Parecer AC 15 da advocacia geral da União de julho, 2004, constata-se, portanto, que foge à competência da Corte de Contas o controle da constitucionalidade de leis e decretos, cabendo-lhe fiscalizar a legalidade dos procedimentos administrativos. Em consequência, a manifestação quanto à inconstitucionalidade representa um posicionamento, mas não uma decisão. Desta forma, em pleno vigor a lei e o decreto de que aqui se trata e, em relação a eles - vigentes - nenhuma ilegalidade foi apontada como tendo sido praticada pela empresa. Ao contrário, o que se lhe imputa é exatamente a observância dos mesmos.10
O parecer AC 15 da AGU dispôs da seguinte maneira acerca da constitucionalidade do ato, “a inaplicação - por alegada inconstitucionalidade do regime simplificado - a todo o Grupo PETROBRÁS, esbarra no respeito ao princípio da presunção de constitucionalidade das leis e da legalidade dos atos da administração até que sobrevenha decisão judicial em contrário, sendo insuficiente a opinião do TCU a quem cabe tão só julgar a regularidade das contas”.
Finalizando o presente estudo, observa-se que a aplicação deste Procedimento Licitatório Simplificado é de suma importância para que a Petrobras, e suas subsidiárias que estão umbilicalmente ligadas na sua atividade, no seu destino e até na responsabilidade processual (conforme entendimento corroborado pela AGU) atendam à dinâmica do setor petrolífero, caracterizado por um ambiente de livre competição com outras empresas, onde agilidade e eficiência são fundamentais para o desenvolvimento das atividades operacionais com economicidade e rentabilidade.
REFERÊNCIAS
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MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 24ª ed. São Paulo: Malheiros, 1999.
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DE MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 25ª ed. São Paulo: Atlas, 2009.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Sistema de ciência positiva do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, tomo I, p. 99.
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JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, São Paulo: Dialética, 2005.
DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
Parecer AC 15 da advocacia geral da União julho, 2004. Disponível na internet em: <http://www.agu.gov.br/sistemas/site/PaginasInternas/NormasInternas/AtoDetalhado>.
1FERNANDES. Jorge Ulisses Jacoby. Contratação Direta sem Licitação, 5ª. ed., Brasília Jurídica, 2004, p. 178).
2MIRANDA, Henrique Savonitti. Curso de Direito Administrativo. 5. Ed. Brasília – 2007.p. 337.
3MEIRELLES. Hely Lopes. 2004
4SILVA, Gustavo Scatolino; TRINDADE, João. Manual de Direito Administrativo. 2012. Ed. Jus Podium. p. 583.
5José Anacleto Abduch Santos. Mestre em Direito pela UFPR. In artigo intitulado: licitação e terceiro setor.
6 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Sistema de ciência positiva do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, tomo I, p. 99.
7 DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
8 ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Constitucional Descomplicado. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Impetus, 2008, p. 71.
9 Notícia de 17/05/2010 extraída do site do STF - http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=151918
10 Parecer AC 15 da advocacia geral da União julho, 2004. Disponível na internet em: <http://www.agu.gov.br/sistemas/site/PaginasInternas/NormasInternas/AtoDetalhado>.