Responsabilidade civil da União em decorrência da Revolução de 1924

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Abordam-se aspectos jurídicos e históricos da Revolução de 1924, em especial no tocante à responsabilidade civil da União pelos danos causados aos civis na Região Oeste do Paraná.

Resumo: O trabalho tem como objetivo traçar uma linha histórica e jurídica sobre a Revolução de 1924, a chamada “Revolução Tenentista”, que levou tropas Revolucionárias e Legalistas a combaterem em terreno civil, causando prejuízos materiais e imateriais às populações afetadas, com a depredação do patrimônio, invasão dos estabelecimentos comerciais, prejudicando o desenvolvimento econômico de diversas cidades, entre outros. Como principal foco, o trabalho buscará abordar questões atinentes a responsabilidade civil da União no que tange indenizações decorrentes de prejuízos causados a população, verificando a presença da obrigação ou não de indenizar, pelo ente, seja em decorrência de omissão, seja em decorrência de atos comissivos, e, ainda, ressaltar – mesmo que superficialmente - crimes perpetrados pelos revolucionários contra a população. A abordagem tem como pano de fundo os prejuízos causados em especial no teatro de guerra que operou na Região Oeste do Estado do Paraná, na cidade de Catanduvas, e permitirá verificar a previsão normativa então vigente – decorrente da Constituição Federal de 1981 – e, posteriormente, a primeira previsão legislativa traçando o caráter objetivo, ou seja, aquele que dispensa a prova da culpa, que encontramos em nosso ordenamento. Por fim, trazer aos dias atuais enfocando em jurisprudências do Supremo Tribunal Federal acerca da responsabilidade objetiva do Estado.

Palavras-chave: Responsabilidade civil; Objetiva; Revolução de 1924; União.


1  INTRODUÇÃO

O Brasil viveu em 1924 um movimento revolucionário que implicou em produção de prejuízos materiais e morais a toda a população envolvida, voluntária ou involuntariamente, no conflito armado. Tal movimento, que se espalhou por diversos Estados e alcançou o Oeste do Paraná, merece a devida abordagem científica, histórica e jurídica, no sentido de se verificar em que aspectos os institutos da responsabilidade civil poderiam ser - e se de fato foram - aplicados , relativamente à reparação dos danos.

As implicações políticas, jurídicas e histórias que o movimento implicou – e implica até hoje – é a mola inspiradora do trabalho, notadamente porque se ateve a aspectos regionais, identificados com a realidade local da comunidade, já que a revolução atingiu a população civil do Oeste do Paraná, em especial a cidade de Catanduvas.

A abordagem regionalizada do conflito, em especial no tocante à responsabilidade civil, não mereceu a devida abordagem científica, de modo que é de suma importância analisar a teoria da Responsabilidade Civil do Estado no âmbito de eventuais indenizações aos indivíduos que sofreram danos com esta Revolução de 1924.

A responsabilidade à época do conflito era baseada na responsabilidade subjetiva, ou seja, aquela que exige a prova da culpa. Neste enfoque faz se necessário analisar a evolução da responsabilidade do Estado a visão jurisprudencial da época, em comparação com a presente em nosso ordenamento jurídico nos dias atuais.

O principal objetivo da pesquisa é demonstrar com base na metodologia técnica de pesquisa, com instrumentos utilizados no desenvolvimento deste trabalho pelas pesquisas bibliográficas, documental e legislativa, e ainda os artigos de internet, jurisprudências além de outros meios e técnicas de pesquisa direta e indireta, a responsabilidade do Estado em face dos danos causados pela revolução e a possibilidade das vitimas serem indenizadas por tais fatos.

O trabalho tem, portanto, a pretensão de esclarecer através da evolução histórica os motivos pelos quais se justificaria ou não o pagamento por parte do Estado de indenizações aos que sofreram danos patrimoniais e morais decorrentes dos combates entre as tropas na Revolução de 1924, a Revolução Tenentista.

Em um primeiro momento trataremos dos acontecimentos que precederam a revolução, as ações de seus idealizadores e seus desdobramentos.

Em um segundo momento, abordaremos o instituto da responsabilidade civil estatal, com análise de sua evolução histórica e teorias explicativas. E, ainda, sua aplicação decorrente da revolução.

Por fim, faremos uma abordagem sobre a atual roupagem da responsabilidade civil em comparação com os acontecimentos pretéritos.

1.2  A REVOLUÇÃO DE 1924

A década de 20 se iniciou com uma série de transformações na história política brasileira, com sinais de rompimento do sistema de dominação estabelecido nas três primeiras décadas no “Regime dos Governantes” estabelecidos com a República em 1889.

Com o surgimento de pequenas indústrias e consequentemente uma nova classe advinda desse meio, como, por exemplo, pequenos empresários, comerciantes, além de funcionários públicos, surge um sentimento de insatisfação por parte dessas pessoas que se vêm excluídos da esfera política. Esse sentimento atinge também as camadas mais baixas do nosso Exército.

Surge, então, o chamado tenentismo, movimento político-militar organizado por jovens oficiais de baixa e média patente do Exército Brasileiro da década de 20, e que tinha por fim romper com a ordem social imposta pelas oligarquias latifundiárias[3].

O ano era 1922. Artur Bernardes foi eleito e tomou posse como Presidente da República Federativa do Brasil. Nilo Peçanha, candidato derrotado, contava com o explícito apoio dos tenentes e dos capitães do Exército Brasileiro.

Em 15 de novembro, os tenentes se opõem à posse de Artur Bernardes. Mesmo com a oposição, Artur assume o governo e decreta Estado de Sítio, porque sofre com inúmeras ameaças dos grupos militares e também dos civis.

Artur Bernardes percebeu que só manteria a governabilidade se mantivesse o instrumento do regime de exceção, que se caracteriza pela suspensão temporária dos direito e garantias constitucionais de cada cidadão e a submissão dos Poderes Legislativo e Judiciário ao poder Executivo, assim, a fim de defender a ordem pública, o Poder Executivo assume todo o poder que é normalmente distribuído em um regime democrático[4].

1.3 A revolução e seus desdobramentos em relação à população civil

Para Sonia Angélico (2000, p. 47), “o estopim do levante é a prisão do Mal. Hermes da Fonseca e a suspensão do Clube Militar (02/07/22) com base na lei da repressão do anarquismo”.

Os militares, inconformados com o Governo, planejam vários ataques aos pontos principais de estabilidade do governo como, por exemplo, o Forte de Copacabana. Os principais objetivos da revolta, de acordo com Sonia Angélico, é republicanizar a República, retornando os ideais de 1889: Constituinte, Federalismo sem excessos, separação Igreja Estado, voto secreto, proibições de reeleições, fim da corporação eleitoral e dos impostos interestaduais, liberdade de ensino, reforma tributária e aduaneira (Sonia Angélico, 2000, p. 49).

Depois de vários combates os legalistas começaram atacar principalmente as concentrações militares dos rebeldes, porém percebem que estão atacando em demasiado a população civil e as suas propriedades tornado-as vitimas da revolução.

Isso começou tornar a situação dos rebeldes um grande problema para a população, e estava gerando pânico. Com isso as tropas se deslocaram para o Oeste do Paraná, onde o desenvolvimento das cidades ainda era muito pequeno, podendo assim se entrincheirar em meio às matas e em pequenas vilas.

Com o fim dos conflitos entre Revolucionários e Legalistas, as cidades por onde as tropas passaram apresentaram grandes problemas estruturais, principalmente nas casas e comércios locais, com isso a população que sofreu danos com a Revolução pleitearam no âmbito jurídico indenizações do Estado para poderem retomar suas atividades normalmente.


2 Da responsabilidade civil

Com origem no direito civil, a responsabilidade civil se concretiza na obrigação de indenizar um dano patrimonial ou moral decorrente de um fato humano. Espécie de responsabilidade jurídica, deriva da transgressão de uma norma jurídica pré-existente, impondo ao causador do dano a consequente obrigação de indenizar. A violação do dever jurídico originário gera o dever jurídico sucessivo (de indenizar o prejuízo).

A responsabilidade civil do Estado é questão bastante controvertida no direito administrativo, mas pode ser entendida como o dever que o Estado tem de reparar danos causados por seus agentes públicos ou prestadores de serviços públicos a terceiros, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las.

Leciona Celso Antonio Bandeira de Melo ser a responsabilidade de o Estado reparar economicamente os danos lesivos à esfera juridicamente garantida de outrem e que lhe sejam imputáveis em decorrência de comportamentos unilaterais, lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos[5].

Com o advento da Constituição de 1988 o instituto da responsabilidade civil do Estado mudou de subjetiva, onde deveria se provar a culpa ou dolo do agente causador, para a responsabilidade objetiva, ou seja, dispensa qualquer indagação acerca da subjetividade. Marcelo Alexandrino ensina que

No âmbito do Direito Público, temos que a responsabilidade civil da administração Pública evidencia-se na obrigação que tem o Estado em indenizar os danos patrimoniais ou morais que seus agentes, atuando em seu nome, ou seja, na qualidade de agentes públicos, causem à esfera juridicamente tutelada dos particulares. Traduz-se, pois, na obrigação de reparar economicamente danos patrimoniais, e com tal reparação se exaure. (ALEXANDRINO, 2010 .P. 722)

2.1 A evolução da responsabilidade civil do Estado

Primeiramente, se faz necessário conhecer as origens do instituto da Responsabilidade Civil do Estado, que tem início com a Revolução Francesa. A Revolução Francesa significando o fim do absolutismo e dos privilégios da nobreza. O povo ganhou direitos sociais que passaram a ser respeitados[6]. Anteriormente à revolução o Estado de modo algum poderia ser responsabilizado, ou seja, não respondia por quaisquer danos.

A responsabilidade do Estado consagrada em nossa carta Magna como responsabilidade objetiva passou por varias transformações até chegar ao conteúdo atual. E o seu desenvolvimento é resultado de vários momentos históricos.

Em um primeiro momento vigorou a teoria da irresponsabilidade fundada na teoria do direito divino dos reis que por se tratar de um ser indicado por deus o rei era infalível detentor de um poder absoluto, não podendo ser de forma alguma responsabilizado por seus atos[7].

Nessa época, havia a ideia de que toda a estrutura do Estado girava em torno de uma só pessoa, assim, com a centralização do poder político nas mão de um soberano que se achava divino e não podia responsabilizado, muitas arbitrariedades eram cometidas sem qualquer tipo de limite. 

A partir da Revolução Francesa, onde se destacava o lema “Liberdade, Igualdade e a Fraternidade”, têm inicio movimentos para responsabilizar o Estado e desenvolvem-se doutrinas em sentido de coletividades públicas. Desse modo, se tornaria possível conter o poder exercido pelo Estado sobre o povo, fazendo com que esse povo conheça seus direitos e garantias individuais. Esses movimentos resultam na queda do autoritarismo monárquico, e na transformação da irresponsabilidade em uma responsabilidade subjetiva do Estado, dependendo assim da comprovação da culpabilidade do agente público.

Surgem, então, as primeiras teorias que visam à responsabilização do Estado, chamadas de teorias civilistas, com base no direito civil, de certa forma diminuíram o desequilíbrio entre o Estado e os particulares.

A teoria da culpa civil, segundo a qual o Estado tem o dever de reparar os prejuízos causados a terceiros por seus agentes, desde que o particular demonstre que houve dolo ou culpa por parte do agente público. Esta teoria pretendeu equiparar o Estado ao indivíduo prevendo responsabilidade estatal nas mesmas hipóteses que haveria responsabilidade por parte dos indivíduos.[8]

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Alerta Marcelo Alexandrino que como o Estado atua por meio de seus agentes, somente existia obrigação de indenizar quando estes, os agentes, tivessem agido com culpa ou dolo cabendo ao particular o ônus da prova[9].

No Código Civil de 1916, vigorava a Responsabilidade Subjetiva onde o terceiro que sofreu os danos deve provar a culpa do Estado nos danos causados. E com isso o individuo que sentiu lesado deverá provar o nexo causal existente entre a ação ou omissão do agente público e o prejuízo sofrido[10]. Provar que realmente provocou tais danos, como por exemplo, como saber quem destruiu o comércio, se foram os Legalistas ou os Revolucionários, nesse caso quem deveria arcar com as indenizações seria quem causou a destruição.

Apesar de a responsabilidade subjetiva ser de grande relevância e representar um grande avanço em relação aos direitos dos cidadãos, ainda assim comprovar a culpa dos agentes públicos que causaram dano representava uma grande dificuldade para o individuo que sofreu o dano, haja vista que a comprovação da culpa do agente era de extrema complexidade.

Em uma interpretação descontextualizada, poderíamos concluir que a Constituição Brasileira de 1891 já dispunha sobre responsabilidade civil, uma vez que em seu artigo 82 dispunha que os funcionários públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e omissões em que incorrerem no exercício de seus cargos, assim como pela indulgência ou negligência em não responsabilizarem efetivamente os seus subalternos[11].

Com a vigência da Constituição de 1934 vigora, embora ainda subjetiva, a responsabilidade civil que passou a ser solidária com os seus agentes pelos danos que esses causassem a terceiros com culpa ou com dolo. Conforme disposição em seu artigo 171 que previa: “os funcionários públicos são responsáveis solidariamente com a Fazenda Nacional, Estadual e Municipal por quaisquer prejuízos decorrentes de negligencia, omissão ou abuso no exercício dos seus cargos”[12].

A Constituição de 1937, por sua vez, nada inovou em relação ao tema, apenas reproduziu o artigo 171 da Constituição anterior em seu artigo 158[13].

A Constituição de 1946 dispôs em seu artigo 194 que as pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis pelos danos que seus funcionários, nessa qualidade, causarem a terceiros, com previsão de ação de regresso em seu parágrafo único. Curiosamente não houve referencia a elementos subjetivos do agente. Essa disposição se repetiu nas Constituições seguintes[14].

Com isso, novas teorias foram surgindo todas no sentido de resguardar o direito das vítimas, a como, por exemplo, a teoria da culpa administrativa, que representou uma transição entre a doutrina subjetiva da culpa civil e a responsabilidade objetiva. Sobre essa teoria Marcelo Alexandrino explica que:

(...) o dever de o Estado indenizar o dano sofrido pelo particular somente existe caso seja comprovada a existência de falta do serviço. Não se trata de perquirir da culpa subjetiva do agente, mas da ocorrência de falta na prestação do serviço, falta essa objetivamente considerada. (ALEXANDRINO, 2010 . P. 723)

Em uma nova fase desenvolve-se a teoria da responsabilidade objetiva, onde não precisa provar a culpa, nem o Estado nem a vítima dividindo-se em teoria do risco administrativo e teoria do risco integral. A obrigação governamental de proteger a população, trás a baila a responsabilidade do mesmo em indenizar o particular. Na primeira teoria, entendida como a mais correta pela maioria da doutrina, independentemente da existência de falta do serviço e da culpa do agente público, a vitima deverá ser indenizada. Assim basta que exista o dano, sem o que o particular tenha concorrido para isto. Porém esta responsabilidade objetiva, não possui caráter absoluto, de modo que há excludentes de responsabilidade, como o caso fortuito, força maior e também a culpa exclusiva da vítima. Como ensina Rui Stoco,

As causas clássicas de exclusão da responsabilidade são: a) caso fortuito e força maior, deixando de lado a discussão acerca do entendimento de que constituem a mesma coisa; e b) culpa exclusiva da vítima, pois são as únicas com força de romper o liame causal entre a atuação do Estado e o dano verificado. (STOCO, 2007.p. 1014)

Já a segunda teoria, a do risco integral, representa um exagero no que tange a responsabilidade civil da administração, bastando um evento danoso e o nexo causal para surgir a obrigação de indenizar.

Conforme o exposto, não há duvida que a teoria utilizada é a da responsabilidade objetiva, por que visa garantir de forma mais benéfica os direitos dos vitimados da atuação estatal. Isso tudo é fruto de uma longa caminhada por parte da população que estava inconformada com os pressupostos do Estado.

Assim, caso ocorra um novo conflito como a Revolução de 1924 a União terá o dever de indenizar os estragos causados decorrentes dos combates.

Esta teoria encontra respaldo na legislação brasileira na Constituição Federal de 1988 no artigo 37, § 6º:

§ 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

E também no artigo 43 do atual Código Civil brasileiro, responsabilizando também as pessoas jurídicas de direito público interno:

Art. 43. As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo.

Para Alexandre de Morais,

A responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público e das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público baseia-se no risco administrativo, sendo objetiva. Essa responsabilidade objetiva exige a ocorrência dos seguintes requisitos: ocorrência do dano; ação ou omissão administrativa; existência de nexo causal entre o dano e a omissão administrativa e ausência de causa excludente da responsabilidade estatal. (MORAES, 2007. p. 450)

A responsabilidade, portanto, é formada pelo dano material ou moral sofrido por alguém, por uma ação ou omissão antijurídica imputável ao Estado, e um nexo de causalidade entre o dano e a ação ou omissão estatal.

A vítima, por sua vez, pode buscar sua indenização judicial ou administrativamente, podendo o Estado, se reconhecer o direito ou for condenado, promover ação de regresso desfavor do agente publico causador do dano, comprovada a culpa ou o dolo. Exemplos atuais de reparação administrativo dos danos causados por agentes do Estado são aqueles autorizados pela Comissão de Anistia, instituída pelo Governo Federal, e que vem indenizando as vítimas do período da Ditadura Militar (1964-1985).

2.2 Os danos perpetrados pelos revoltosos e legalistas contra a população civil

No decorrer da Revolução, os revoltosos e os legalistas, para que pudessem sobreviver e se manterem ativos, atingiram a população de várias formas, com os combates armados atingiram as pessoas com tiros e ainda realizaram vários saques nas residências e no comércio, em busca de alimentos e objetos de valor para poder   usar como objeto de troca por armas e também alimentos. Os crimes perpetrados foram esbulho, posse violenta, furto, roubo e outros. Em várias passagens do livro “As noites das Grandes fogueiras”, Domingos Meirelles descreve com riqueza de detalhes as pilhagens realizadas:

São Paulo, que sofrera tanto com os bombardeios, vai conhecer agora outro tipo de violência: o saque das tropas legalistas. Das janelas, as famílias assistem o horror, ao arrombamento das lojas comerciais. Os depósitos da Casa Durchen, na Rua Borges de Figueiredo, são invadidos pelos soldados. As grandes latas de biscoitos e cestas de champanhe são abertas a ponta de baioneta, seu conteúdo espalha-se pelo chão. A turba fadada carrega latas de conserva, garrafas de bebida, depreda o escritório da empresa, queima documentos e livros de contabilidade. (MEIRELLES, 1995, p. 183).

Varias cenas de roubos, furtos e de destruição continuava acontecendo, a população de São Paulo já não estava mais suportando tanto descaso por parte do novo governo, mas mesmo assim os saques continuavam a acontecer:

A pilhagem estende-se por toda a cidade, e cada um leva o que pode. Numa carroça, um grupo de soldados empilha caixas de bebidas junto com a máquina de escrever do gerente da loja. As residências, abandonadas por causa do bombardeio, são saqueadas com fúria. Os soldados das Polícias Militares do Rio e de Minas Gerais roubam tudo que pode ser transformado em dinheiro. (MEIRELLES, 1995, p. 183).

Quando os revoltosos perceberam que São Paulo já estava perigoso demais para eles, saem rumo ao Oeste do Paraná, deixando para trás varias casas que ocuparam utilizando-as como ponto de encontro e desenvolvimento de novas estratégias. E os moradores colocados à força para fora de suas próprias residências como também relata Domingos Meirelles em seu livro: A Polícia Política invade o sobrado da avenida Vauthier, 27, onde se reuniam clandestinamente as principais lideranças da revolução (MEIRELLES, 1995, p. 185).

Com o fim dos conflitos, a população começou buscar no Judiciário alguma forma de ressarcimento, para os prejuízos, por parte do governo como forma de reaver seus bens a dignidade. Com isso entraram com ações de indenização implicando a responsabilidade dos estragos no governo causados pela Revolução.

E foi nesse momento que surgiu um grande problema a responsabilidade civil na época era a responsabilidade civil subjetiva onde se deve provar o dolo ou a culpa e o ônus da prova cabe a vítima. Nesse período a regra geral era a responsabilidade patrimonial subjetiva instituída de artigo 15 do Código Civil de 1916:

Art. 15. As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos dos seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano.

Conforme disposto acima a responsabilidade do Estado resta comprovada com o dano efetivo, a ação ou omissão e o nexo de causalidade.

No caso dos danos causados durante a revolução tenentista, o Estado deve responder civilmente quando houver a comprovação da ocorrência dessas três situações, o que poderia ser presumível por se tratar de atos de violência.

Nesse sentido tem sido as ações do Estado que paga indenizações por meio de processos administrativos em virtude do desaparecimento e de mortes pessoas durante o regime militar. Nos dias atuais mais precisamente com a outorga da Constituição de 1946, obviamente algumas mudanças aconteceram, e uma das mais importantes foi no que concerne ao estatuto da responsabilidade do Estado que agora se torna Objetiva. Nesse sentido Celso Bandeira de Melo ensina:

O reconhecimento da responsabilidade do Estado, à margem de qualquer texto legislativo e segundo princípios de Direito Público, como se sabe, teve por marco relevante o famoso aresto Blanco, do Tribunal de Conflitos, proferido em 1º de fevereiro de 1873. Ainda que nele se fixasse que a responsabilidade do Estado “não é em geral absoluta” e que se regula por regras especiais, desempenhou a importante função de reconhecê-la como um princípio aplicável mesmo à falta de lei. (BANDEIRA DE MELLO, 2010, p. 1002).

Em 1924 ano da Revolução ainda vigia a Constituição de 1891, assim não responde a União pelos danos causados à propriedade particular, se as forças armadas, em atividade depredam patrimônio particular virtude de acabar com a revolta.

Hoje com a vigência da Constituição de 1988, e o instituto da responsabilidade civil objetiva, poderiam os cidadãos ficarem mais tranquilos pois a União teria a obrigação de indenizar as famílias que sofrerem com os combates. Com tudo ainda podemos nos assegurar na Lei 10.744, de 09.10.2003, que dispõe que os danos causados por atos de guerra dispensa-se até o elemento nexo causal, não sendo admitido qualquer excludente.

A principal questão é saber se a União é obrigada a indenizar tais vítimas O artigo 927 de Código Civil de 2002 prevê que qualquer um que por ato ilícito causar dano a outrem estará obrigado a indenizar, veja-se:

Art. 927 Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa nos casos especificados em lei, ou quando normalmente a atividade desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

Fica claro a responsabilidade objetiva do Estado no que concernente a obrigação indenizatória, com o advento da já citada Lei 10.744 de 2003 em seu artigo 1º, em casos de guerra:

Art. 1o. Fica a União autorizada, na forma e critérios estabelecidos pelo Poder Executivo, a assumir despesas de responsabilidades civis perante terceiros na hipótese da ocorrência de danos a bens e pessoas, passageiros ou não, provocados por atentados terroristas, atos de guerra ou eventos correlatos, ocorridos no Brasil ou no exterior, contra aeronaves de matrícula brasileira operadas por empresas brasileiras de transporte aéreo público, excluídas as empresas de táxi aéreo.

Portanto, a responsabilidade objetiva e nesses casos responsabilidade integral, quando em qualquer caso o Estado tem a obrigação de indenizar, fica descartada todas as formas de excludente de responsabilidade.

2.3.  Precedentes jurisprudenciais históricos da responsabilidade civil em decorrência da Revolução de 1924

Instado a se pronunciar em diversas ocasiões acerca dos prejuízos causados à população civil em decorrência da Revolução de 1924, o Poder Judiciário teve decisões ora favoráveis, ora desfavoráveis à tese quanto à aplicação da responsabilidade civil.

Em 13 de abril de 1934 a Corte de Apelação da Capital do Estado de São Paulo, por maioria, entendeu como ilegal a proibição de circulação de jornal durante Estado de Sítio decretado, e, reconhecendo que o ato partiu do Governo Estadual, condenou a Fazenda Pública a indenizar os prejuízos resultantes de seu ato.

Assim decidem porque: a) está provada a responsabilidade da Fazenda Estadual. Não obstante o Estado de Sítio em que se achava o País, o Governo Paulista conservava sua autonomia. Não havia interventor nomeado. O Chefe do Governo era o mesmo Presidente, eleito pelo povo. Se, pois, o Secretário da Justiça de então autorizou um ato ilegal, e não se provou que o tivesse feito mediante requisição das autoridades federais, por esse ato responde, civilmente a Fazenda do Estado; mas b) os danos de se queixa o Autor não foram bem calculados. (Apelação 20.303, rel. Mario Guimarães, RT 90/349).

Já em outra decisão, desta vez unânime, da Quarta Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo, em 10 de maio de 1939, confirmando sentença do então Juiz de Direito da 3ª Vara da Fazenda Pública da Capital, Alexandre Delfino de Amorim Lima, na qual se postulava a condenação do Estado de São Paulo em decorrência do assassinato, pelos legalistas, do marido e pai dos autores e do filho e irmão dos autores (Antonio Augusto de Oliveira e Antonio Augusto de Oliveira Filho) decidiu-se que “se as forças, a que se atribui o ato danoso, estavam incorporadas às forças federais, sob um comando federal, e no exercício de uma função federal, os atos por elas praticados não podem ser inculcados ao Estado, para os efeitos de responsabilidade civil” (RT 122/169). A sentença reconheceu a carência de ação dos autores, e, embora tenha julgado o feito sem o mérito, afastou a responsabilização do Estado no caso concreto.

Já o Supremo Tribunal Federal, em 13 de abril de 1949, em Acórdão relatado pelo Min. Hahnemann Guimarães, e em votação unânime, reconheceu a responsabilidade da União pelos danos causados à população civil, assim ementado: “responde a Fazenda Pública pelo dano resultante de ato ilícito que durante movimento revolucionário pratiquem representes do Governo nessa qualidade” (Ação Rescisória 137/SP, DJU 16/01/1951, p. 109, RT 191/938).

Em sentido contrário, a Suprema Corte também entendeu, na Apelação Cível nº 6447, que a falta de dolo ou de culpa e a verificação de força maior não autorizaria reparação dos danos causados pela Revolução de 1924 em decorrência de incêndios saques e prejuízos causados à Companhia Paulista de Alimentação. “Força maior”, no caso, compreendida com os “danos de guerra, ocasionados no teatro da ação bélica (...) que não hão de lograr a ação privada de indenização”:

A revolta, a insurreição, a guerra civil sob qualquer forma, constituem ataques agressões hostilidades que têm por objeto negar, destruir, arruinar as leis, e o poder público. Esses movimentos, enquanto não são dominados e vencidos, suspendem de fato a autoridade do governo e das leis, nos lugares em que dominam. Nesse sentido circunstâncias é evidente que o Estado não pode responder pelos atos dos desordeiros e insurgentes. (RT 95/473).

Em outra decisão do Supremo Tribunal Federal, de 31 de junho de 1934 – ainda que tratando de prejuízos não em decorrência da Revolução de 1924, mas sim um movimento revoltoso deflagrado em 1913 -, definiu-se alguns parâmetros para verificação da responsabilidade civil da União em casos de tal natureza, à época:

A União só responde pelos atos ilícitos dos seus funcionários quando praticados in oficio, sem usurpação de funções não conferidas por lei sem fazer a menor distinção motivada, pela natureza do ato, licito ou ilícito, de império ou de simples gestão. Não é á União, mas o próprio Estado, que incumbe a polícia e a preservação da ordem interna e que assim, quando de tal omissão pudesse resultar, contra o que está assentado, o dever de indenizar, esse dever caberia no caso ao Estado e não á União.

O princípio universalmente aceito é que não há responsabilidade por atos praticados por insurgentes que dispunham de força suficiente para dominar uma região de modo absoluto, de modo a tornar inerte e impotente a autoridade. A ideia de força maior que é necessário ligar o princípio da irresponsabilidade do Estado pelos atos calamitosos das perturbações revolucionárias e dos aos de guerra. (RT 100/571).

Por fim, em 10 de abril de 1951, no Recurso Extraordinário nº 17.252, apreciado pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, tendo por relator o Ministro Orozimbo Nonato, e em votação por maioria, mais uma vez admitiu-se a responsabilidade da União pelos danos causados em decorrência da Revolução de 1924, e que pelos excepcionais argumentos lançados merece a transcrição integral do voto do relator, pelo provimento do recurso:

O caso dos autos é de indenização de danos derivados do bombardeio de São Paulo, na Revolução de 1924.

Concluíra o E. Tribunal Federal de Recursos pela irresponsabilidade da União. E se esse remate com o tomado por diversos acórdãos, inclusive de outros, como os certificados às fls. 463/460.

Provado o dissídio de arestos, aliás, notório, posto seja vacilante e voltaria, ao propósito, a jurisprudência dos tribunais, conheço do recurso, como se tem feito em causas persemelhantes e como opina, no parecer de fls.501, o eminente Procurador Geral, Exmo. Sr. Dr. Plinio Travassos.

Mas, contra a opinião de s.excia, e data vênia, dou provimento ao recurso.

O acórdão recorrido, com o proclamar, no caso, a irresponsabilidade da União tomou de esteira contrária, exdiàmetro, à que tenho seguido, em pronunciamento, já numerosos, neste Supremo Tribunal Federal. O assunto foi objeto de voto, a todas as luzes, notável preclaro Ministro Filadelfo Azevedo.

Com S. Excia. tenho que, no caso, insuficientes e inadequados se mostram os critérios civilísticos da culpa, já repulsados no livro famoso de Amaro Cavalcanti e veemente combatidos, neste Tribunal, por Pedro Lessa.

A responsabilidade do Estado deriva de outras fontes: da equidade, das razões de alta política jurídica da alusão de Maurice Hauriou das ideias solidaristas, da distribuição, pelos membros do consórcio civil, dos ônus e dos cômodos.

E elas confluem, no caso, para o reconhecimento da procedência da ação, valendo realçar que a tendência da doutrina e da jurisprudência é para relegar, no caso, os critérios de direito civil sobre a culpa e reconhecer a responsabilidade do Estado pelos atos de guerra.

Não importa que art. 15 do Código Civil aluda à responsabilidade das pessoas jurídicas de direito público por ato de seus representantes “que causem dano a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito, ou faltando a dever prescrito por lei”.

Porque, nesse passo, o Código Civil apenas aludiu a um dos aspectos do problema e assegurou ao Estado o direito regressivo contra os causadores do dano.

Outros aspectos apresenta a questão que deve ser resolvida em termos de direito público, como faz o art. 194 da Constituição vigente, que exclui, no caso, o elemento da culpa.

É exato que, no tema de obrigações derivadas, assim do contrato, como do delito, o princípio da irretroatividade é de fundamental, como disse Donato Faggella, citando gravíssimos juristas – Struve e Unger, Savigner e Bergmann, Heuberger e Demolombe, Chahot de L’ Allier e maither de Chassat:

“Uno princípio fondamentale domina il diritto transito – rio in tema di obbligazione e di contratti: la legge che li regola e quella del tempo in cui sorgono” (in Corso, de Bianchi, vol. 2º, pags. 750-751).

É também, o ensino de Roubier, Les Conflits de Lois dans le temps, vol. II, pags. 13 e 51; de Gabba, Della Ret., IV, pags.7, 207-208; de Espínola Filho A lei de Introdução ao Cod, vol. I, número 1.117, de Carlos Maximilia no, Dir. “Communis opinio”.

Entretanto, o argumento, no caso, desperta duas objeções. É a primeira a de que a lei constitucional deve ter a maior irradiação possível, deve ter aplicação intensa, como disse Josserand. E a segunda é a de que o art. 194 da Constituição Federal não traduz ius novum. Se é exato que veiu da fecho e cláusula a dúvida que antes dela imperavam, também é verdade que , ainda sem esse dispositivo, já seria possível procurar a fonte da responsabilidade do estado fora da culpa, como o fizeram Amaro Cavalcanti em livro publicado no princípio do século e Pedro Lessa que já atribuía à opinião contrária as marcas da velhez e do arcaísmo. Ainda que não lhe arroje essa coima, exato é que a outra doutrina, a que responsabiliza o Estado pelas razões de politica de Hauriou, por motivo de solidariedade social e pela distribuição dos ônus e cômodos a todos os membros do consócio civil já era compatível com as leis anteriores à Constituição vigente, como procurei mostrar em votos anteriores, a que me reporto, data vênia.

O caso não era simples revoltilho dominável, ao fácil, pelas forças policiais do Estado, mas revolução em que se emprenham forças do Exército, da polícia e o povo.

E para subjugá-las desenvolveram-se operações militares de vulto de que resultaram os prejuízos cuja reparação pede o recorrente.

O justo, e equitativo, o que orna com o princípio da distribuição dos ônus e cômodos por todos os membros do consórcio civil é que este pague os prejuízos que um sofreu para a restauração da ordem que beneficiaria a todos.

Superada a “fase civilística na evolução da ideia da responsabilidade do Estado, embora ainda lhe pague preito doutores do porte de Sourdat, Aubry et Rau, Giorgi e outros domina atualmente a “fase do direito público” que tende, como observa Gaudemet a estabelecer a respinsabilidade do Estado em fundamentos objetivos e nessas ideias nitidamente se filiou a vigente Constituição Brasileira.

A min me bastam as razões agora rapidamente esboçadas e que encontram maior desenvolvimento em voto anteriores para dar, como deu, provimento ao recurso.

(RE 17252, Relator(a):  Min. OROZIMBO NONATO, Tribunal Pleno, julgado em 10/04/1951, DJ 07-06-1951 PP-05004 EMENT VOL-00041-02 PP-00310 ADJ 29-11-1952 PP-05736)

Como se percebe, o Poder Judiciário expressou entendimentos diversos por ocasião da aplicação da responsabilidade civil em decorrência dos danos causados à população civil em decorrência dos conflitos do período revolucionário, ora reconhecendo força maior – excludente da responsabilidade civil, ora atribuindo a responsabilidade do Estado ou da União, posto que os prejuízos causados não teriam como ficar sem qualquer reparação.

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Sobre os autores
Paulo Roberto Pegoraro Junior

Doutorando em Direito pela PUC/RS. Mestre em Direito pela Unipar. Professor de Processo Civil da graduação e pós-graduação da Univel. Advogado.

Carla Carolina Capovilla

Bacharel em Direito pela Univel.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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